Seija Musou | The Great Cleric Vol 03
– Arco 4: O Curandeiro Que Mudou o Mundo –
Capítulo 01 [As Palavras do Fundador]
Já fazia dez dias desde que eu me tornara um curandeiro de Rank S. Dez longos dias... e, ainda assim, nada na minha rotina havia mudado muito, embora isso pudesse ser porque eu já não fazia muita coisa para começo de conversa. A maior mudança era provavelmente o fato de que agora eu não podia mais sair da Sede sozinho. Para onde quer que eu fosse, alguém precisava me acompanhar, e Jord se ofereceu para a tarefa com um entusiasmo suspeito. Quase como se tivesse esperado essa chance a vida toda.
Falando no Jord, ele estava mais uma vez parado no meu quarto.
— Vai sair de novo hoje, Senhor Luciel?
— Sim. Não é como se eu tivesse algo melhor para fazer. Mesmo com esse novo status de Rank S, não tenho nenhum trabalho de verdade, então vou continuar fazendo o que sempre faço.
— Oh. Só isso? — Ele perguntou, perdendo o brilho nos olhos quase que imediatamente.
— Uhum, só isso. E, aliás, esse negócio de Rank S é só um título. Eu realmente apreciaria se você falasse comigo como fazia antes. Não precisa esperar até sairmos.
— Deus me livre, meu bom senhor! Nunca se sabe quem pode estar ouvindo.
Jord abriu um sorriso radiante, como se estivesse se divertindo de alguma forma. Ele claramente tinha mais ousadia do que eu. Fora do castelo, ele vivia fazendo piadas e parecia relaxado, mas dentro dessas paredes, era puro profissionalismo.
"Astuto" era uma palavra que eu usaria para descrevê-lo, mas não conseguia desgostar do cara.
— O que você tá rindo aí? — Uma coisa sobre ele era que ele era péssimo em esconder quando estava se divertindo.
— Oh, eu estava sorrindo? Estranho. De qualquer forma, para onde irei escoltá-lo hoje? — E, assim, a conversa já tinha sido desviada. A especialidade do Jord.
— Para o Guilda dos Aventureiros. Eu sei que da última vez você desmaiou, mas preciso reabastecer meu estoque de Substância X.
O sorriso dele sumiu na mesma hora. A tragédia que ocorrera há poucos dias claramente passou pela mente dele.
— A... Guilda dos Aventureiros, é isso mesmo? Nossos superiores podem não gostar nada disso de novo.
— Depois do meu discurso, isso não me preocupa nem um pouco. E relaxa, os aventureiros não vão te incomodar dessa vez.
Jord estava ocupado demais desmaiando da última vez para perceber o respeito que ganhou ao engolir a Substância X na frente de todo mundo. Para os aventureiros, ele era meu seguidor leal.
— Se insiste. Mas só para que saiba, e digo isso para o seu próprio bem, seu novo status vem com grande autoridade, mas existem muitas facções dentro da Igreja, e nem todas concordam com você.
Meu corpo ficou tenso. Eu não fazia ideia de quais ideologias existiam dentro da Igreja, e precisava dessas informações se quisesse saber como lidar com elas. Granhart era o primeiro da minha lista de pessoas a perguntar, mas desde a minha promoção mal havíamos falado. Ele me parabenizou de forma educada—e estoica—mas foi só isso. Considerei pedir para Jord sondá-lo, mas ficaria óbvio que eu o havia mandado.
Mas os "e se" poderiam se prolongar para sempre. Ficar só pensando não ia me levar a lugar nenhum, e eu já tinha tudo o que precisava para nossa saída na minha bolsa mágica.
— Aviso anotado. Agora vamos.
— Sim, senhor!
Desde o momento em que saímos do meu quarto, fomos bombardeados por olhares julgadores. Já estava acostumado com isso desde que entrei nos treinamentos das Valquírias. Jord, por outro lado, estava se segurando no limite. Quando finalmente saímos do castelo, o rosto dele parecia a máscara trágica de Melpômene.
— Como você tá aguentando? — Perguntei.
— Como eu tô aguentando? Como você aguenta tudo aquilo, cara? — Falando em máscaras, a persona de "seguidor leal" do meu companheiro desapareceu assim que saímos da Sede, e voltamos a nos tratar como iguais.
— Desde que me envolvi com as Valquírias tem sido assim. Já acostumei.
— O que eu acabei de dizer sobre facções? Isso não te assusta nem um pouco?
— Bom, eu não estou procurando problemas, mas veneno e maldições não funcionam contra mim, então posso lidar com alguns olhares feios se for só isso. Eventualmente, eles vão se cansar.
— Você é meio maluco.
— Como assim?
— Normalmente, quando alguém tem facções inteiras contra si, a primeira coisa que faz é... sei lá, se aliar a uma. Você não tem medo de ficar sozinho?
Jord de repente começou a fazer muito sentido. Do ponto de vista da Igreja, ele estava certo. Meu novo status dava muito mais peso às minhas ações, e eu precisava ter cuidado com isso. Mas se os problemas com as facções da Igreja se agravassem como Jord temia, e eu fosse forçado a sair, sempre teria um emprego esperando por mim na Guilda dos Aventureiros local ou na de Merratoni. Na verdade, provavelmente seria muito mais seguro e tranquilo por lá.
— Claro, um pouco, mas não vai adiantar nada ficar me preocupando. E eu não estou sozinho. Tenho você, as Valquírias, a papisa... Sou grato por ter todos vocês ao meu lado.
— Ha, algo me diz que você vai se tornar alguém importante. Quer dizer, você já meio que se tornou, mas deu para entender.
— Eu sou só um curandeiro com talento para magia sagrada. Definitivamente não preciso ficar maior do que isso. Nem quero imaginar a confusão que isso poderia causar.
— Agora eu tô entendendo por que a Guilda dos Aventureiros gosta tanto de você. Curandeiros caridosos são raridade.
— Você não disse que era meio como eu na sua cidade natal?
— Sim, mas, sabe... Eu não consegui manter minhas convicções como você. Te respeito muito por isso.
— Chega de elogios. É estranho vindo de você.
— É mesmo? De qualquer forma, sempre quis te perguntar: por que te chamam de Santo Esquisitão?
— Vamos mudar de assunto, por favor.
— Você consegue falar de envenenamento e maldições como se não fosse nada, mas um apelido te incomoda? Você é demais — riu Jord.
Ah, que bom que meu sofrimento te diverte. — Sabe, Jord, você realmente se solta quando sai do castelo.
— Dá pra me culpar? Lá dentro é sufocante. Não suporto. E curandeiros não têm muitas chances de sair.
— Por quê?
— A Igreja não anda muito popular ultimamente, sabe?
Hesitei por um momento. E se essa pergunta fosse uma armadilha, alguém tentando me testar? Mas, por outro lado, minhas opiniões sobre a Igreja não eram exatamente segredo. Confiei no meu instinto.
— É, verdade. Foi difícil no começo, mas depois que tomei um pouco de Substância X e comecei a curar as pessoas por um preço justo, elas passaram a gostar mais de mim.
— E é por isso que você é estranho.
— Por quê? É tão difícil assim para outros curandeiros circularem por aí?
— Eu diria que sim. Eles não gostam de ser encarados por onde passam. Mas acho que alguns ficam presos por causa das disputas entre as facções.
— Pera aí, é por isso que você se voluntariou para...
Jord pigarreou alto. — Vamos continuar, meu senhor!
Ah, ele era esperto, sem dúvidas. Eu podia aprender uma ou duas coisas com ele. — Se quer continuar saindo comigo, larga essa formalidade.
— Tá, tá. Ah, chegamos já.
— Pois é. Tá esperando o quê? Anda, entra logo.
Empurrei Jord para dentro do salão da guilda. Era meio da tarde, então só havia alguns aventureiros por lá, para o alívio evidente de Jord. Ele me lembrava do meu eu mais jovem. Não consegui evitar um sorriso.
— O que foi? — perguntou ele.
— Você tá igualzinho a como eu estava quando vim a uma guilda de aventureiros pela primeira vez. Bateu uma nostalgia.
— Você também ficou nervoso?
— Ah, e como. Tava apavorado, achando que iam me matar só por olhar torto pra alguém. Mas, por sorte, ninguém era tão homicida assim.
— É... reconfortante? Se fossem, seriam bandidos, né?
— Exato. Agora vamos até o refeitório.
Havia poucos aventureiros por lá, e Grantz estava atrás do balcão. Assim que me viram entrar, alguns saíram correndo, deixando apenas três clientes que ainda almoçavam. Jord suspirou, aliviado por ninguém ter comentado sobre suas vestes da Igreja.
Enquanto caminhava até o mestre da guilda, me perguntei se havia pacientes precisando de cura. — Oi, Grantz. Vim reabastecer meu estoque de Substance X.
— Voltou com teu cão de guarda, hein? — resmungou ele com um sorriso. Melhor do que a cara feia que fez pro Jord da última vez, mas, pelo jeito, não muito melhor, a julgar pela careta do meu colega.
— Ele é mais um criado do que um cão de guarda. Só estou dando um pouco de ar fresco pro membro da facção "Por Favor, Me Deixem Sair do Castelo".
— Essa é boa! — Grantz gargalhou. — Quantos barris precisa?
— Dez, por favor.
— Quer um caneco pra viagem?
— Hmmm, por que não? Quem sabe aqueles aventureiros ali não se juntam a mim?
O trio entrou em pânico imediatamente.
— Nem pensar, Santo Esquisitão! Acabamos de voltar de uma missão!
— É, somos aventureiros, não monges ascetas! Poupe a gente desse sofrimento!
— Ei, cara, você é o motorista dele ou sei lá o quê, né? Dá um jeito nisso! A coisa desanda quando o Santo começa a encarar desse jeito! Até o mestre da guilda perde a cabeça!
Os três imploraram com os olhos para Jord.
— Ahm... Acho que a gente devia fugir enquanto ainda dá tempo — murmurou ele, procurando uma rota de escape. Mas era tarde demais.
— Abram essas bocas, seus covardes. Tomem um pouco de Substância X e o almoço é por minha conta. E nem tentem escapar dessa. Você também, parceiro.
— Maldito seja, Santo Esquisitão! — lamentaram os aventureiros, sabendo que não havia mais esperança.
Jord, no entanto, continuava se debatendo, buscando uma saída por não ser um aventureiro.
— Com licença, ééé... por que eu?
— Achei que fosse o servo dele.
Sem escapatória. Seu destino estava selado.
— Você tem um coração frio, Luciel — choramingou ele.
O Mestre da Guilda trouxe nossos canecos de Substância X, e eu fui o primeiro a virar o meu.

— Jord e os outros observaram com nojo antes de, a contragosto, levarem os canecos aos lábios. Surpresa… Desmaiaram na hora.
Conversei com Grantz para passar o tempo até que eles voltassem a si. — Por que sou sempre eu que eles xingam? Você é tão culpado quanto eu.
— Porque você é um alvo fácil? É jovem. Vira saco de pancada. E tem aquele papo sobre essa coisa te deixar mais forte.
— Na verdade, tem um fundo de verdade nisso. Mas tem que tomar cuidado, porque impede de subir de nível.
— Desde quando?!
— Só olhar pra mim. Sou a prova disso.
Quem diria que minha incapacidade de sair do nível um era culpa da Substância X esse tempo todo? Nem Brod nem Gulgar, os desgraçados que me forçaram a beber, faziam ideia. Mas, para ser justo, meus status ainda aumentavam, e minhas habilidades não eram nada desprezíveis, então não era de todo ruim.
— Mas tem um motivo pra beber isso, né?
— Depende da situação. No meu caso, eu não saio matando monstros todo dia, então não subiria de nível de qualquer forma. Se continuar assim por mais um ano, espero que minhas resistências fiquem bem sólidas.
— Resistências, é? Valeu pela informação.
Quase ninguém sabia as vantagens e desvantagens da Substância X, nem mesmo Brod, segundo a carta dele. Mas talvez, só talvez, se mais aventureiros começassem a beber, eles parassem de chamar minha língua de “defeituosa”.
— Não precisa agradecer. Devo muito à guilda. Alguma novidade?
— Nada demais, só uns novatos querendo treinar com você.
— Com um curandeiro? Por quê?
— Pela fama. Por que mais?
— Fama? Tem glória em bater num curandeiro? O que eu sou, um procurado?
— Sei lá, parceiro, mas você com certeza não é um curandeiro normal. Já vi como luta com o Furacão.
— O que isso quer dizer? Eu estava lutando pela minha vida naquela época! E meu mestre me destruiu!
— Mas isso não te impediu de se curar repetidamente. Não te chamam de Zumbi Masoquista à toa.
— Dá pra ficar só no Santo Esquisitão? Já tô de saco cheio dos outros apelidos.
Grantz caiu na gargalhada. — Bom, só pra avisar, você deve receber alguns desafios em breve, caso não se importe de aceitar um round.
Que tipo de mestre da guilda incentivava brigas assim? — Não, valeu, tô de boa. Se eu derrotar eles, vão vir os de alto escalão em seguida.
— E qual a graça nisso? Vamos fazer uma aposta. Quem perder tem que beber Substância X. Vai ser ótimo pra guilda, hein?
— Ótimo pra guilda, horrível pra mim. O que eu ganho com isso?
— A chance de lutar contra gente forte.
Já estava tendo mais do que o suficiente com as Valquírias. Meu cronograma de treino de combate estava mais do que lotado.
— Olha, eu sou um curandeiro.
— Você também é um aventureiro.
— Isso não vai acontecer. Tô ocupado demais.
— Bah, tanto faz — ele suspirou. — De onde você tirou esse atendente, afinal?
Finalmente ele se deu ao trabalho de perguntar. Meu status de curandeiro de rank S era um segredo para o público, o que tornava as coisas complicadas.
— Pelo visto, sou meio problemático. Felizmente, pude escolher quem seria meu acompanhante, então escolhi o Jord.
— Você levou bronca por causa dos tumultos de outro dia?
— Não, o problema não foi esse. Eu meio que… quebrei uma certa coisinha na sede.
— Pelo jeito, você é mais aventureiro do que curandeiro.
— Pode ser. Só fico feliz por não terem me jogado numa cela.
— Minhas portas estão sempre abertas se você enjoar daquele lugar.
— Vou aceitar a oferta se acabar fugindo.
— Você tem muitos cúmplices por aqui.
Quando Jord e os outros acordaram, guardei os barris de Substance X na bolsa e saímos da guilda. No caminho de volta, Jord insistiu em passar na rua principal para olhar itens mágicos. Quando finalmente chegamos à sede, ele estava visivelmente desanimado.
— Voltamos, Jord. Não dá pra ficar emburrado pra sempre.
— Dá sim. A vida é sofrimento, e nunca mais serei feliz. Isso aqui é a Cidade Sagrada, pelo amor de Deus! Como podem ter itens mágicos tão sem graça?!
— Você devia ter me dito que era isso que estava procurando.
Jord foi ficando cada vez mais quieto conforme visitávamos as lojas, e quando perguntei o motivo, descobri que comprar esses itens era o principal motivo para ele querer sair do castelo. Infelizmente, nada do que encontramos chegava nem perto do que a loja fora do labirinto tinha em estoque.
— Cara, e eu já fui exorcista! Devia ter me esforçado mais!
— Que tal eu perguntar pra Catherine se os itens da loja estão à venda na próxima vez que eu a vir?
— Você faria isso?!
— Claro. Vou perguntar para alguns aventureiros também.
— Senhor Luciel, juro solenemente que me tornarei o melhor atendente que você já teve. Agora, avante!
Jord entrou no castelo radiante de alegria. Fiquei observando por um momento, sorrindo de canto, antes de segui-lo.
Quando chegamos ao meu quarto, falei: — Desculpa jogar essa em você, mas quero encontrar Granhart para saber mais sobre essas facções. Pode avisá-lo?
— Para o senhor Gran? Claro! Espere aqui, senhor! — respondeu ele, saindo às pressas.
Logo ouvi batidas na porta.
— Entre.
A maçaneta girou, e Granhart entrou.
— Oh, senhor Granhart! Não esperava que viesse até mim.
— Por favor, como já disse antes, senhor, não precisa me chamar assim. Na verdade, eu mesmo queria discutir um assunto com você, então não foi incômodo.
— Ah, nesse caso, por favor, sente-se. Vou preparar um chá.
— Não quero incomodar.
— Não está incomodando. Vai levar só um segundo.
Puxei uma cadeira para ele e convoquei um bule de chá recém-feito e alguns petiscos leves da minha bolsa.
— Esse é um item impressionante que você tem aí.
Achei que ele soubesse sobre a minha bolsa mágica. Ele estava menos informado do que eu esperava.
— Eu não teria conseguido colocar as mãos em uma se não fosse pelo labirinto. É graças a você, já que me designou para a Unidade de Exorcistas de Combate.
— Entendo. — Ele abaixou os olhos. — Isso é uma sorte.
Não tinha sido ele quem me designou?
— Só para deixar claro, não quis dizer isso de forma negativa.
— Eu sei. Não se preocupe. Agora, por favor, me corrija se eu estiver errado, mas você deseja saber mais sobre os grupos que compõem a Igreja?
— Isso mesmo. E o que você queria conversar comigo?
— Em breve começarão as discussões oficiais sobre as diretrizes legislativas para a cura que você propôs em seu discurso inaugural.
— O quê?! Como você sabe disso? — Quando diabos isso tinha sido decidido, e por que o papa não me informou sobre algo tão importante?
— Alinhar-se a uma facção dá acesso a certas informações. Quis que você soubesse disso.
Minha cabeça estava focada apenas no labirinto por tanto tempo que só agora percebia o quanto a Igreja estava dividida. Até onde eu realmente poderia ir sozinho?
— Então, você quer algo de mim, não é?
— Está certo.
— Posso perguntar o que é?
— Quero mostrar ao povo que nós, da Igreja de Saint Shurule, existimos para sua salvação. Quero acabar com o ódio aos curandeiros e melhorar nossa instituição.
— O que você quer dizer com isso? — Nunca imaginei que ouviria tais palavras saindo da boca desse homem.
Ele abriu um sorriso amargo.
— Você se lembra do seu primeiro dia aqui? Quando questionou a liderança da guilda?
— Como poderia esquecer? Tudo se conecta ao motivo de eu ter sido chamado para a Sede em primeiro lugar. Lembro-me de ter levantado a necessidade de regras padronizadas para o custo da cura.
— Para ser sincero, na época, duvidei das suas afirmações. Achei que você fosse apenas um jovem eloquente.
A franqueza de Granhart, de todas as pessoas, me pegou de surpresa. Senti um certo orgulho por ele ter passado a confiar em mim.
— Não te culpo. Você parecia não querer acreditar em mim.
— Não queria mesmo. Então, precisei ver com meus próprios olhos. Conduzi investigações em guildas de todas as nações, supervisionadas por terceiros, comerciantes, aventureiros e outros, em nome da objetividade.
— Você foi tão longe assim? — Sua dedicação à Igreja me surpreendeu.
— Uma parte de mim queria não ter ido. Foram tantas descobertas, tantas verdades que não posso mais ignorar.
— Mas nada disso é culpa sua.
— Eu também sou culpado. Estava cego para tudo ao meu redor, tudo que não estivesse diretamente dentro da Sede da Igreja.
Fiquei me perguntando se Granhart havia sido criado dentro da Igreja, talvez filho de um membro. De que outra forma ele poderia ter passado tanto tempo sem ouvir sobre toda essa insatisfação?
Conversar com ele sempre era tenso, e eu ia sufocar se essa conversa ficasse ainda mais carregada. Então, mudei de assunto.
— Sua facção está ciente de tudo isso?
— Sim. O que estou pedindo é que me permita ajudá-lo na elaboração das diretrizes. — Ele se levantou, com um fogo ardente nos olhos. — Antes que o nome da nossa instituição seja ainda mais manchado.
— Eu adoraria contar com sua ajuda. Mas com qual facção você está alinhado?
— Sim, desculpe. Deixe-me explicar as filosofias dentro da Igreja. Existem três grupos principais: os Lealistas, que priorizam a vontade do papa acima de tudo; os Reformistas, liderados por executivos gananciosos; e o meu grupo, os Moderados, cuja única preocupação é o bem-estar do povo.
Visto de fora, eu provavelmente parecia um Lealista, já que era subordinado direto de Sua Santidade.
— Qual é a diferença entre os Lealistas e os Moderados?
— Os Lealistas, como o nome sugere, são leais apenas a Sua Santidade. Suas ordens são absolutas, a palavra final. Já os Moderados não seguem cegamente figuras de autoridade. Nossa única lealdade é para com o povo.
Poucos tinham o privilégio de se encontrar com ela, mas o papa certamente não era um ditador. Ela parecia extremamente mente aberta, então eu não via sentido nessa distinção.
— Então, sua facção quer garantir que o papa não tenha poder absoluto. Mas os Reformistas são os que mais têm influência no momento, certo? Por que os Lealistas e os Moderados não trabalham juntos?
— Por curiosidade, por que você diz que os Reformistas são os mais influentes?
— É apenas a minha impressão. Isso se encaixa na narrativa atual. Não acho que as pessoas chamariam os curandeiros de gananciosos se não houvesse uma facção gananciosa no poder.
— Só isso?
— Em grande parte, sim.
Por mais que eu quisesse, ainda não podia confiar completamente em Granhart. Ele foi quem orquestrou minha transferência para a Sede com base na carta de Bottaculli, então não podia descartar a possibilidade de ele ser um Reformista. Ainda assim, eu precisava do conhecimento que ele podia fornecer. Talvez fosse algo para discutir com Sua Santidade e Catherine.
— Muito bem. O que acha da minha oferta de ajuda?
— Acho que temos os mesmos objetivos. Você se preocupa com a Igreja do mesmo jeito que eu me preocupo com o futuro dos curandeiros, e poderíamos fazer muita coisa boa se trabalhássemos juntos.
— Obrigado. Eu também acredito nisso.
— Não, eu é que deveria agradecer. — Estendi minha mão, e Granhart a apertou sem hesitação.
— Agora, por onde começar? Talvez pelas figuras notáveis dentro das facções.
— Estou ouvindo.
O tempo voou enquanto começávamos a redigir as novas diretrizes para os curandeiros com seriedade.
*
O progresso no livro de regras havia diminuído consideravelmente, e o principal culpado por isso era o problema das taxas de cura preexistentes. Cada um tinha seus próprios critérios para valorizar sua magia, e fazer mudanças drásticas nos preços sem critério poderia colocar em risco o sustento de muitas pessoas. Eu sabia que passaria o resto da vida me arrependendo se deixasse essa oportunidade escapar, mas parecia ser o único que sentia a necessidade de arrancar o curativo de uma vez e reconstruir o sistema do zero.
Eu estava cheio de hesitação e indecisão. Então, procurei alguém em quem pudesse confiar.
— E é por isso que tenho priorizado outros trabalhos em vez do labirinto ultimamente.
— Eu me perguntava como você estava passando seus dias. Mas tem certeza de que sou a pessoa certa para confiar nisso? — perguntou Lumina, tentando esconder sua confusão.
— Você acha que não? Imaginei que não haveria problema em falar com você sobre isso, além do mais, não tem ninguém por perto para ouvir. Quem imaginaria que estaríamos tendo uma discussão séria no meio de um treino?
— Isso porque conversas casuais tendem a deixar a pessoa bem aberta.
Vi seu movimento repentino, e um instante depois, minhas costas se chocaram violentamente contra algo duro, tirando todo o ar dos meus pulmões.
— Foi tão ruim assim? — ofeguei enquanto conjurava uma Cura em mim mesmo.
— Eu acabei de te jogar no chão.
— Isso você fez. Onde aprendeu a fazer isso? — Não era algo que eu já tivesse visto as Valquírias treinarem.
— Supere-me e talvez eu te conte. Mas chega de conversa fiada, quero ver você dando o seu melhor. Dê tudo de si; temos suas habilidades de cura para lidar com os ferimentos.
"Conversa fiada"? Achei que estava me abrindo com ela, mas tudo bem. Ai.
— Certo, mas posso perguntar sua opinião sobre algo antes?
— O que seria?
— Você viajou bastante, certo? É justo dizer que seu entendimento sobre como as coisas funcionam fora da Sede e sobre a percepção das pessoas em relação aos curandeiros é melhor que o da maioria?
Ela inclinou a cabeça. — Já faz algum tempo desde a última vez que fui designada para uma inspeção, então temo não poder falar sobre detalhes. — Em seguida, assentiu. — Mas suponho que possa falar com alguma autoridade.
— Qualquer coisa já ajuda. Só queria saber... Você acha, objetivamente, que os curandeiros são odiados?
— Acho que a grande maioria é, sim. Existem exceções como você, mas, baseando-me na minha experiência, aventureiros tendem a desprezá-los. Especialmente os povos ferais.
— A supremacia humana é um problema profundo, então não vejo uma solução rápida e fácil para isso. Mas fico aliviado em saber que concordamos. Como você resolveria algo assim?
— Você seria mais adequado para encontrar essa resposta por si mesmo, Luciel.
— Ah, não quero te colocar nesse problema. Só estou refletindo sobre isso e queria ouvir a opinião de outra pessoa. — Não era arrogante a ponto de achar que minhas ideias eram mais válidas do que as de qualquer outra pessoa.
— Hm... Seu objetivo é melhorar a imagem pública dos curandeiros, certo?
— Isso e, ao mesmo tempo, garantir que os próprios curandeiros fiquem satisfeitos. — Eu sabia o quão impossível isso soava, mas precisava apenas de um fio de ideia para me agarrar.
— E se reduzíssemos os preços temporariamente como prova de conceito?
— Desculpe, mas tente não pensar dessa forma. — Reduzir drasticamente os preços para depois aumentá-los de volta ao normal era praticamente um convite para tumultos. Era arriscado demais.
— Nem todos vão concordar com você. Acho uma tolice tentar satisfazer todas as pessoas ao mesmo tempo.
— Concordo com você nisso, mas me sinto ansioso, como se precisasse agir rápido antes que outros aspirantes a curandeiros fossem pegos no ódio e na corrupção.
— Então por que não deixar a decisão para o indivíduo?
— O indivíduo? Você quer dizer deixar o paciente escolher seu curandeiro e a magia com a qual será tratado?
— Você disse uma vez que a magia utilizada para curar alguém deveria ser baseada em um exame minucioso, certo? Se os resultados desse exame fossem comunicados ao paciente e a escolha fosse dele, a responsabilidade não recairia sobre o curandeiro.
Essa era uma opção interessante. Duas cabeças pensam melhor do que uma. Da próxima vez que tivesse oportunidade, precisaria lembrar de perguntar a opinião das outras Valquírias também.
— Tem algumas falhas nessa ideia, mas você me deu alguma esperança de fazer esse rascunho ser aprovado. Agradeço.
— Fico feliz em ajudar. Em que ponto estão seus pensamentos agora?
— Bem, vejamos...
*
— Luciel? Luciel! Está ouvindo? — Uma voz além da minha consciência interveio justo quando eu estava prestes a explicar o cerne da minha proposta para Lumina em meu devaneio. — Luciel! O que está murmurando aí?
— Hã? Ah, desculpe, Catherine. Me perdi pensando em algo de mais cedo hoje.
Eu havia me perdido em pensamentos, mas Catherine me trouxe de volta ao presente. Nomes de peso de todas as facções estavam sentados ao nosso redor, analisando os documentos que eu havia preparado.
— Por favor, mantenha o foco. Estamos todos aqui porque você insistiu que havia um problema a ser corrigido.
— Desculpe.
Ela estava absolutamente certa. Quão estúpido seria estragar tudo assim depois de ter chegado tão longe? As informações de Granhart, o conselho de Lumina e meu rascunho finalizado teriam sido em vão.
— O garoto deve estar cansado. Não faz nem um mês desde sua grande cerimônia e ainda assim preparou uma quantidade admirável de material para esta reunião — comentou o arcebispo. De acordo com Granhart e Catherine, Mardan era uma figura proeminente dentro da facção dos Moderados, mas um homem gentil e piedoso.
Os documentos que todos tinham à sua frente eram minhas diretrizes propostas para os serviços de cura. Elas tornavam o exame do paciente um passo obrigatório no processo de tratamento e garantiam ao paciente o direito de saber como seria curado e quanto pagaria. Também estabeleciam novas opções de preços para a magia, proibiam o uso indiscriminado de feitiços de alto nível e consideravam várias medidas que a própria Igreja poderia tomar em sua liderança sobre a guilda.
— Isso é um ponto justo; no entanto, devo dizer que esperava que este documento estivesse relacionado a práticas legislativas, não à reestruturação total da profissão de curandeiro.
O orador, Muneller, era um homem com uma expressão que lembrava um vendedor de rua. Seu título exato era um mistério, mas ele era a mão direita do papa, frequentemente aparecendo em eventos nacionais e internacionais no lugar de Sua Santidade.
Antes desta reunião, ele me puxou de lado e disse:
— Não vou fingir ser seu aliado, mas lhe deram a palavra, e seria sensato aproveitá-la bem.
— Concordo. Os curandeiros fariam uma greve em massa se isso se tornasse lei — declarou Dongahar (sim, esse era mesmo o nome dele). Ele era o líder dos Reformistas e se opôs a essa reunião até o último instante.
Normalmente, a oposição do líder da facção mais poderosa seria uma sentença de morte para qualquer legislação, mas a purga realizada por Sua Santidade contra os membros mais corruptos da Igreja atingiu os Reformistas com força, fazendo com que perdessem uma parte significativa de sua influência. Isso deu ao papa margem para negociar com eles e permitiu que a reunião acontecesse.
— Mas quem somos nós para desobedecer a Sua Santidade? — comentou o ex-capitão templário.
Depois de uma lesão que o forçou a se aposentar do serviço ativo, Bulteuse se dedicou à Igreja como curandeiro e subiu rapidamente ao posto de arcebispo, tornando-se alvo de muitos rumores maldosos. No entanto, sua personalidade afável o tornava bem-quisto entre seus pares. Embora fosse um Lealista no coração, era relativamente independente e, segundo Granhart me contou, quase tão influente quanto alguns Reformistas. Junto com Catherine, ele estava moderando a discussão.
— De fato, mas a verdade é que uma rebelião seria altamente provável se de repente acorrentássemos os curandeiros, privando-os das liberdades que possuíam — insistiu Dongahar. — Na verdade, como o responsável por essa mudança, a vida de Luciel poderia estar em perigo por causa disso.
Um calafrio percorreu minha espinha. Aquilo não era uma demonstração de preocupação — era um aviso. Eu era resistente o suficiente para não me preocupar com um atentado que não me matasse de imediato, mas fiz uma anotação mental para manter minha guarda alta.
— Não podemos ignorar esses problemas por mais tempo. Ou será que querem ver a Igreja e sua autoridade ruírem completamente? — desafiou Mardan.
— Ah, bom, então suponho que devemos encaminhar imediatamente os planos de Luciel para ratificação de Sua Santidade, arcebispo — Dongahar lançou-me um olhar fulminante, e eu soube no mesmo instante que ele seria um problema.
— Não imediatamente, não. Há lacunas a preencher e detalhes a serem discutidos, como estou certo de que sabe muito bem.
— Contanto que as mudanças não sejam drásticas, suponho que mereçam consideração.
Para um grupo chamado “Reformistas”, Dongahar parecia incrivelmente conservador.
— Então estamos de acordo que nossa tarefa atual é ver a reestruturação da Guilda dos Curandeiros — afirmou Muneller.
Mardan sorriu e assentiu, mas Dongahar fez questão de demonstrar sua relutância ao dizer:
— Muito bem. O que faremos? Certamente esses documentos não devem servir como base.
— Luciel — o idoso Mardan me chamou —, essas diretrizes realmente restaurarão o nome dos curandeiros e da Igreja?
Finalmente. Estava ali sentado, me perguntando quanto tempo demorariam para reconhecer minha presença.
— Francamente, não. Elas não são nem de longe suficientes.
— Não são suficientes? — repetiu o Reformista.
Mas ainda era muito cedo para as discussões se acalorarem tanto. Eu estava só começando.
— Como disse no meu discurso, “curandeiro” e “ganancioso” quase se tornaram sinônimos por um motivo. Enquanto curandeiros corruptos destroem vidas cobrando preços exorbitantes, a Igreja e a guilda que a supervisiona permaneceram em silêncio. Coniventes.
— Vejo sua lógica, mas é simplesmente impossível para nós sabermos o que acontece em cada clínica — rebateu Dongahar. — E se um feitiço de alto nível for considerado necessário para curar uma ferida, e o paciente contestar o julgamento do curandeiro após o tratamento?
Essa era uma ótima questão. Se priorizássemos demais os pacientes, os próprios curandeiros sofreriam. Foi aí que um certo sistema de bom senso da minha vida passada me veio à mente: o seguro de saúde.
— Podemos nos proteger disso solicitando o consentimento do paciente e pedindo que ele assine um termo antes do tratamento. Nos casos em que estiver inconsciente, pediríamos a um amigo ou familiar para assinar por ele.
— Entendo. Criamos uma responsabilidade conjunta.
— Exatamente. Também estou considerando a possibilidade de a Guilda dos Aventureiros cobrir parte dos custos do tratamento de seus membros, se necessário.
Se isso seria útil para as pessoas, ou mesmo se aceitariam esse sistema, eu não podia afirmar com certeza. Mas achei que apresentar a ideia a um grupo de líderes de facção não faria mal.
— A Guilda dos Aventureiros não é responsável pelos ferimentos de seus membros. Simplesmente não consigo imaginar por que aceitariam sua proposta — disse Muneller.
— Você está absolutamente certo. Só é possível se registrar como aventureiro após concordar com a cláusula de que a guilda não é responsável por suas ações. Mas pense no que aconteceria se um curandeiro dissesse a um aventureiro ferido que ele não poderia ser tratado sem dinheiro.
— A culpa recairia sobre o curandeiro. Ele seria considerado ganancioso.
A objetividade pura era essencial aqui. Eu não podia deixar minhas emoções interferirem. Eles queriam saber como isso beneficiaria a Guilda dos Curandeiros.
— Exato, e isso seria injusto. Então, ao transferirmos a responsabilidade do pagamento para a Guilda dos Aventureiros, a culpa recai sobre eles, não sobre o curandeiro.
Dongahar soltou uma risada.
— Agora sim, essa é uma ideia! Você quer inverter o jogo contra eles.
— Não será tão fácil se os curandeiros forem os únicos beneficiados.
— Mas implementar suas diretrizes equilibraria a balança — observou Mardan.
— Em teoria. Tenho certeza de que os curandeiros que se acomodaram no sistema atual se oporão ferozmente a essas mudanças, mas acredito que isso ajudaria a tornar a cura uma profissão respeitável novamente.
Seguiu-se um silêncio enquanto os presentes refletiam sobre a proposta, aparentemente de forma favorável, até que Mardan perguntou:
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— O que te motiva? Por quem você defende esses ideais? Me diga honestamente.
Hesitei por um momento. Mas senti que sabia a resposta, como se já a conhecesse vagamente há algum tempo.
— Essa é uma boa pergunta. Parte disso é pelo povo, claro, e parte pelos meus companheiros curandeiros. Mas, ao mesmo tempo, sinto que—no início, pelo menos—era por mim mesmo.
— Por você mesmo?
— Em Merratoni, onde me tornei curandeiro pela primeira vez, havia uma clínica cheia de talento, com curandeiros capazes de usar magias como Cura Avançada. Como todos aqui devem saber, é necessário ter pelo menos nível seis em Magia Sagrada para lançar esse feitiço, então, quando ouvi falar desse lugar pela primeira vez, fiquei cheio de respeito e admiração pelo esforço que eles dedicaram apenas para ajudar os outros.
Se Bottaculli não estivesse brincando com a vida dos aventureiros, eu adoraria ter aprendido com ele.
— Mas somos apenas humanos, e somos atraídos por bens materiais, assim como tenho certeza de que aquela clínica também era. No fim, a única intenção deles era arrancar cada cobre possível de seus pacientes, sabendo muito bem que suas ações gerariam ódio.
— Então seu objetivo com tudo isso é evitar ser odiado?
— De certa forma. Acredito que dedicar-se a um ofício por tanto tempo apenas para usar seus talentos em benefício próprio é um desperdício horrível. Ao definir claramente as taxas e os serviços, e criar um ambiente acessível para que todas as pessoas recebam tratamento, podemos tornar a cura acessível a todos. Nosso trabalho ficará mais intenso, mas podemos fazer com que os curandeiros sejam reverenciados novamente.
Sem falar nos avanços de classe e nível de habilidade que isso poderia gerar.
— E então, talvez um dia, as crianças dirão a seus pais: "Quero ser um curandeiro quando crescer." Esse é o futuro com o qual sonho. Não importa os obstáculos que eu enfrente, não importa as tempestades que eu tenha que suportar, eu não vacilarei. Sou um curandeiro de rank S e levarei esperança ao povo.
É claro que eu estava ignorando o fato de que as crianças não podiam realmente escolher o que queriam ser quando crescessem—essa escolha era feita para elas na cerimônia de maioridade. Mas ainda assim...
A sala ficou completamente silenciosa. Eu me empolguei um pouco ali, e agora todos estavam me encarando. Em silêncio.
Olhei desajeitadamente para os moderadores, e Catherine pareceu despertar de seu transe.
— Luciel claramente pensou muito sobre o futuro dos curandeiros. Como a mesa responderá?
— Esse homem tem convicção. Acho que devemos deliberar mais profundamente sobre sua proposta.
A postura de Dongahar mudou completamente do nada, e ele começou a reler meu rascunho com seriedade.
Todos os outros o seguiram, e logo o único som na sala era o de páginas sendo viradas.
— "Sou um curandeiro de rank S, o portador da esperança." Talvez seja a juventude que o leva a citar palavras tão lendárias — murmurou Dongahar —, ou talvez seja esse fogo que o levou à sua posição atual.
Agora Dongahar estava me elogiando. "Palavras lendárias"? Eu não podia estar mais perdido.
— Com licença, o quê?
— Eu sabia que essa proposta era importante para você — disse Catherine —, mas nunca imaginei que você sentia tão fortemente a ponto de citar o fundador da guilda, Lorde Reinstar Gustard.
Reinstar o quê? Eu citei alguém? Lembrei-me de ter lido uma história sobre um tal de Reinstar-alguma-coisa em Merratoni, mas já havia esquecido quase tudo sobre isso. E algo em toda essa situação me dizia que aquele não era o melhor momento para perguntar quem ele era.
— Por favor, não há necessidade de fazer alarde sobre isso. Como eu me sinto é irrelevante para determinar se isso é certo para a Igreja ou não.
— Oh, mas não estamos exagerando — disse Bulteuse. — Este é seu primeiro ato como um rank S, Luciel. Se algum dia os feitos da sua vida forem registrados em um livro, essa reunião será mencionada nos anais da história em todo o mundo.
Se eles não estavam exagerando antes, agora definitivamente estavam. Bulteuse começou a ditar instruções ao cronista como se minha biografia já estivesse sendo escrita.
— Devemos nos esforçar para garantir que Luciel não passe necessidade alguma em suas viagens — disse Mardan com paixão.
Desde quando viajar fazia parte da descrição do cargo de rank S?
— Seria muito perigoso para ele partir sozinho, como fez Lorde Reinstar. Devemos considerar a organização de uma guarda pessoal — acrescentou Muneller.
— Devemos reunir companheiros entre os cavaleiros? — sugeriu Dongahar.
— Pelo que sei, Luciel tem boas relações com as Valquírias, mas designar tanto o Capitão da Guarda quanto aquelas mulheres para acompanhá-lo seria exigir demais.
Granhart havia me dito diretamente para não esperar que as facções chegassem a um consenso. Nunca. O que tornava tudo isso ainda mais confuso para mim. E agora estavam falando sobre companheiros e viagens, e não parecia que estavam se referindo a algumas simples paradas pelo país. O que eu fiz para merecer isso?
— Me desculpe, Luciel, mas não podemos enviar as garotas com você — disse Catherine, desculpando-se.
— Hm... Tenho um péssimo pressentimento sobre isso.
— Não diga mais nada — interrompeu Dongahar. — Você, é claro, tem total liberdade para adquirir escravos no exterior, caso precise de combatentes habilidosos para sua jornada.
— Não, não é isso que eu...
— Fique tranquilo. Seu cartão de curandeiro de Rank S garantirá que você receba o devido respeito e veneração, mesmo em Illumasia — acrescentou Muneller.
Nenhum deles entendia minha ansiedade. Viajar dentro do país já era uma aposta de vida ou morte para mim, e agora queriam que eu cruzasse o mundo inteiro? Isso era por causa daquela maldita bênção do dragão? Não, isso seria um exagero... Embora uma turnê internacional fosse uma desculpa surpreendentemente conveniente para libertar os irmãos dele que estavam presos. Ainda bem que não havia a menor chance de eu sair conquistando mais labirintos.
— Ele provavelmente investigará atos de corrupção em seus destinos, então precisará de um cristal de comunicação arclink. Teremos que entrar em contato com Neldahl. Eu informarei Sua Santidade — disse Bulteuse.
— Vou preparar um mapa para ele — acrescentou Mardan.
— Sua habilidade em equitação precisará melhorar se pretende viajar, Luciel. Aqui em Shurule é relativamente seguro, mas ao atravessar nossas fronteiras, terá que se preocupar mais com bandidos e outros perigos. Pode pedir ajuda às Valquírias para isso?
— Ah, claro?
Catherine provavelmente sabia que Forêt Noire era o único cavalo que eu conseguia montar de verdade. O nível de habilidade não determinava se você podia montar qualquer cavalo, mas Forêt era o único que não me jogava no chão assim que eu tentava subir.
— Ah, como eu queria ser jovem o bastante para acompanhá-lo, mas infelizmente... — lamentou Dongahar.
— Vamos fazer tudo ao nosso alcance para que Luciel parta bem preparado e o quanto antes! — declarou Mardan.
Todos concordaram em uníssono, e logo a discussão voltou à questão das diretrizes.
Nos dias seguintes, reunimo-nos com especialistas de cada facção para finalizar o rascunho. Ver aquele documento, antes tão básico, evoluir para uma legislação formal, com um cronograma real de implementação, e acompanhar os avisos sendo enviados para as filiais da guilda, me fez perceber o quão pouco eu sabia sobre o processo. Não havia quase nada que eu pudesse fazer.
Por algum milagre, apenas dez dias após nossa primeira reunião, quase todos os pontos do meu rascunho original foram incorporados, aprovados por todas as facções e, em seguida, ratificados pelo próprio papa.
Ironicamente, isso não me deixou animado, mas sim preocupado com a fragilidade daquilo. A qualquer momento, qualquer um dos grupos fragmentados da Igreja poderia simplesmente barrar as diretrizes num piscar de olhos, assim, do nada.
Tradução: Carpeado
Para estas e outras obras, visite Canal no Discord do Carpeado – Clicando Aqui
Se gostou do capítulo, compartilhe e deixe seu comentário!