Nageki no Bourei wa Intai shitai | Let This Grieving Soul Retire Volume 04 – Capítulo 2 [Um Julgamento Estranho]
Mesmo quando comparada às capitais de nações vizinhas, a capital imperial de Zebrudia estava entre as mais prósperas. Suas ruas eram limpas e iluminadas por lampiões. Com exceção do distrito decadente, a capital era bem iluminada à noite. A população era grande e, devido à presença de muitos caçadores turbulentos, cavaleiros patrulhavam a cidade com frequência.
No entanto, bastava dar um passo para fora das muralhas da capital para se encontrar em um mundo onde os mais fortes sobreviviam, assim como em qualquer outro país. Não havia fontes artificiais de luz e monstros apareciam com frequência.
Havia fantasmas vagando para longe de seus lares, como no recente incidente da Toca do Lobo Branco, e também havia bandidos à espreita. O império direcionava recursos para manter a paz, mas até mesmo sua incapacidade de erradicar completamente as ameaças era um sinal de quão perigoso era o mundo exterior.
Com a carruagem seguindo em ritmo constante, deixamos a capital, e eu já começava a me arrepender da decisão de tirar férias. Olhei pela janela e vi nuvens densas cobrindo o céu, escondendo a lua de vista. A paisagem do lado de fora estava envolta em uma escuridão quase total, e eu não conseguia enxergar nada por não ter visão noturna.
Devíamos ter partido pela manhã, pensei. Eu sou um idiota. Isso não é como o incidente da Toca do Lobo Branco. Eu tinha liberdade para escolher a hora da partida e, ainda assim, escolhi sair à noite por algum motivo. Quero voltar no tempo e dar um soco no eu de algumas horas atrás.
Entre os caçadores, era senso comum partir pela manhã, a menos que houvesse um motivo específico para sair em outro horário do dia. Afinal, a maioria dos monstros e fantasmas conseguia enxergar no escuro. Liz, Sitri, Tino e até Eva sabiam disso. Gostaria que pelo menos uma delas tivesse perguntado se eu tinha certeza sobre partir à noite. Sim, a culpa era minha, mas elas pareciam confiar demais em mim.
Eu mal saía da sede do clã, muito menos da capital, então fazia tempo que não viajava de carruagem. As vibrações peculiares que sentia pelo corpo eram estranhamente nostálgicas.
Quando um caçador de tesouros começava a ficar financeiramente confortável, geralmente passava a usar carruagens. Não tanto para se transportar, mas principalmente para carregar seus espólios. Caçadores que utilizavam carruagens e eram competentes o bastante para protegê-las viam seus rendimentos dispararem.
Grieving Souls usava uma carruagem, mas Ansem era grande demais para caber dentro, e tanto Liz quanto Luke corriam do lado de fora. Então, só eu e, ocasionalmente, Lucia viajávamos dentro dela. Pensando bem, aquilo tinha seu lado divertido. Eu não gostava dos últimos perrengues pelos quais passei, mas aquelas antigas aventuras eram boas memórias.
A carruagem que Eva conseguiu era de tamanho médio e provavelmente projetada com caçadores em mente. Não era espaçosa o suficiente para que eu pudesse esticar as pernas e dormir, mas era resistente, e o teto tinha um assento para vigia. Também contava com um sistema de suspensão que reduzia as vibrações. Considerando a bagagem, não havia espaço para um grupo inteiro viajar na cabine, mas isso era comum para caçadores.
A carruagem continuava seguindo em frente, ignorando meus arrependimentos. Black e White estavam conduzindo, enquanto Gray estava no assento de vigia. Fiquei impressionado com a capacidade deles de manter a carruagem em movimento naquela escuridão.
Mais uma vez, parecia que eu era o único incapaz de enxergar no escuro. O Olho da Coruja estava carregado, mas não era o momento certo para usá-lo.
Sentada à minha frente, Sitri tinha um mapa aberto e lançava olhares para a irmã, que estava ao seu lado.
— Por que você não está correndo, Lizzy? Você sempre corre...
— Hã? Isso porque, se eu deixar você sozinha com o Krai Baby, vai colocar suas mãos imundas nele. Você acha que eu vou deixar isso acontecer?
— Eu só estou um pouco preocupada por White, Black e Gray serem os únicos do lado de fora. Eu esperava que você corresse junto com eles.
— Você acha que está preocupada?! Além disso, qual é o problema? Matadinho e aquela quimera estão lá fora. E por que você está aqui dentro desta vez, Siddy? Normalmente, você senta no banco do condutor.
— Isso porque estou testando White e Black—
Em meio à escuridão, Liz e Sitri começaram a discutir, os olhos faiscando chamas.
Em um canto da carruagem, Tino, que havia sido praticamente sequestrada por Liz, estava sentada, abraçando os joelhos, assim como eu. Parecia que ela ainda não tinha superado o incidente da máscara. Não disse uma única palavra além de algumas saudações e desculpas no começo. Era solitário não ter ninguém para conversar, mas era difícil falar com ela sabendo que provavelmente seria ignorado.
Uma coisa pela qual eu podia ser grato era não precisar olhar para os três brutamontes que Sitri havia contratado. Ainda assim, não achava que alguém olharia para nós e pensaria que estávamos saindo de férias.
Talvez não fosse tão ruim se tivéssemos partido de manhã... Comecei a pensar, quando nossa carruagem foi ultrapassada por um macho cinzento montado em um leão estranho. Era Matadinho montado em Drink.
Drink rosnava de empolgação enquanto Matadinho segurava as rédeas com entusiasmo. O vigor esmagador deles me dava ânsia de vômito, então desviei o olhar da janela.
Sentado em silêncio, percebi algo: não tínhamos encontrado muitos monstros. Com aquilo correndo ao lado da carruagem, até mesmo os monstros deviam estar evitando chegar perto. Drink e Matadinho eram mais monstruosos que qualquer coisa naquela floresta. Pareciam saídos de um pesadelo. Naquele deserto selvagem, havia algo que não deveria existir.
Parece que a viagem será segura.
— Krai, qual rota vamos seguir? — perguntou Sitri.
Ela colocou o mapa aberto ao lado de um frasco brilhante, que o iluminava vagamente. O mapa estava centrado na capital imperial e mostrava as áreas ao redor. Anotações da própria Sitri estavam rabiscadas aqui e ali.
Nosso objetivo atual era ganhar tempo, aproveitar as férias e nos encontrar com o restante dos Grieving Souls. Eles estavam no Palácio Noturno, que ficava dentro de Zebrudia, mas a uma boa distância da capital. Mesmo uma viagem direta até lá não deveria ser muito difícil.
— Alguém tem alguma opinião?
Liz prontamente respondeu sem demora.
— Eu vou para onde você for.
Sitri também sorriu e assentiu.
Elas sempre foram assim desde que nos tornamos caçadores. Eu continuava falhando como líder, mas ou elas eram resilientes demais ou tinham fé demais em mim, algo que eu não sabia muito bem como me sentir a respeito.
Olhei para Tino e, com lágrimas nos olhos, ela ergueu a cabeça e assentiu.
Eu queria protegê-la. Não que eu pudesse.
— Eu vou para onde você for — ela disse.
— Ah, desculpe pela T. Acho que ela perdeu a confiança — disse Liz.
— É, acontece — respondi.
Liz parecia ainda mais animada do que o normal.
Eu não mostrava meu lado bom para Tino há um tempo. Nessa viagem, eu precisava lembrá-la ao menos uma vez de que ela podia contar com seu mestre.
Estendi a mão e desenhei um grande círculo ao redor de uma área entre o Palácio da Noite e a capital.
— Para começar, vamos evitar passar por aqui.
— Entendido, não passaremos por aqui — disse Sitri. — Posso perguntar o motivo?
— Intuição. Nem um único passo nesse território.
A área em questão pertencia ao Conde Gladis.
Eu podia ser sem talento, mas tinha experiência. O Mil Truques nunca hesitava. Eu já tinha causado alguns problemas com Lady Éclair, então fiz questão de pesquisar bem os limites do território da família dela. Eu não havia aceitado, mas me deram uma missão nomeada. Mesmo sem aceitá-las, essas missões já eram problemáticas; eu não queria nem imaginar o que aconteceria se eu aceitasse.
Sitri não pareceu se importar com a falta de uma explicação racional para minha decisão e apenas sorriu calorosamente. Isso me fez sentir melhor.
Ao evitar o domínio do Conde Gladis, estaríamos pegando um caminho bem mais longo até o cofre do tesouro. Na verdade, o pior que poderia acontecer era não encontrarmos o restante dos Grieving Souls, mas minha política era segurança em primeiro lugar.
— Entendido. Então ou atravessamos as montanhas ao norte ou passamos pela floresta a oeste. Montanhas ou floresta, hein? — Sitri parou para pensar. — O que acha, T? O que soa melhor, um dragão do trovão ou um ogro errante?
— Hã?!
Tino olhou para cima e, por alguma razão, olhou para mim em vez de Sitri. Ela exibia uma expressão tímida, como um esquilo assustado. O dragão do trovão, como era de se esperar, era um dragão poderoso e raro, capaz de controlar trovões e relâmpagos. O ogro errante era, bem... na verdade, algo que eu nunca tinha ouvido falar antes, mas só a menção já foi o suficiente para paralisar Tino.
Tentei negar rapidamente as implicações de Sitri.
— Não vai ter dragão, ogro ou qualquer coisa ruim!
Dragões do trovão eram uma espécie rara. Sim, eles viviam em regiões montanhosas—eu mesmo já tinha encontrado um—, mas eram raros até mesmo entre os dragões. Normalmente, você não encontraria um nem se tentasse.
Quanto ao outro monstro, eu nem conhecia o nome, então não podia dizer nada. No entanto, eu sabia bastante sobre criaturas da floresta, então, se nem eu tinha ouvido falar dele, devia ser bem raro. Sitri estava exagerando.
Liz estufou as bochechas, cruzou os braços e veio me dar suporte.
— A gente não vai encontrar nada disso, Siddy. Você não ouviu o Krai Baby? Estamos atrás de outros humanos! Para de fazer previsões pela metade!
Eu disse que não vai acontecer nada de ruim! Acho que elas simplesmente não têm fé em mim.
— O que há de errado em tentar seguir a linha de raciocínio do Krai? Tudo bem que eu erro bastante, mas acho que esses são palpites razoáveis — disse Sitri. — Estou errada, Krai?
Não vai acontecer nada. Tenho certeza absoluta. Isso é um passeio, não uma aventura!
Decidi que era melhor pecar pelo excesso de cautela. Não respondi à pergunta ansiosa de Sitri, apenas deslizei o dedo pelo mapa. Evitar o domínio Gladis no caminho para o Palácio da Noite envolvia atravessar uma floresta ou uma cadeia montanhosa. A floresta seria um desvio mais longo, mas não estávamos com pressa.
— Não é o caminho mais demorado? — perguntou Liz.
— Demoraríamos muito para chegar ao Palácio da Noite assim — protestou Sitri. — As planícies não são um bom lugar para encontrar monstros raros. Nosso lucro seria mínimo. Talvez eu esteja me intrometendo, mas vou lembrar vocês de não segurarem a mão por causa do Preto, Branco e Cinza. Acredito que riscos devem ser tomados com moderação.
Sitri raramente dizia não para mim, mas seu argumento fazia sentido.
Ela é uma estudiosa, mas acho que no fundo é uma caçadora de tesouros. O que ela quer dizer com "lucro"?
Normalmente, eu cederia aos argumentos delas, mas dessa vez era diferente. Decidi deixar minha posição bem clara.
— Tudo bem, nosso objetivo é aproveitar as férias! Ei, não fique tão preocupada, Tino. Confie em mim nisso.
— M-Mestre...
Olhei para Tino, que tinha lágrimas nos olhos, e depois para as outras duas antes de soltar um suspiro.
— Isso realmente é apenas um passeio. A vida tem estado agitada ultimamente, e não só para você, Tino. Liz, Sitri, vocês duas também têm se esforçado demais. Eu tirei vocês da capital, mas acho que devem aproveitar essa oportunidade para descansar. Isso é só uma viagem. Um passeio. Uma pausa de monstros e fantasmas. Vamos comer bem, relaxar e nos divertir—nada de perigoso. Estou falando sério.
Provavelmente parecia engraçado ouvir isso de um cara que sempre levava as coisas na tranquilidade—eu tinha acabado de enfiar um trabalho de coleta de carcaças para a Tino, afinal—, mas era como eu me sentia. Eu era tanto o cara que jogava trabalho nelas quanto o que pedia para descansarem depois.
Os ombros de Tino tremeram, e ela me encarou diretamente.
— P-Posso acreditar em você, Mestre?
Sim, claro que pode, Tino.
No momento em que comecei a assentir afirmativamente, ouvi o som de gotas de chuva. Olhei pela janela e vi que várias gotas haviam caído no vidro em questão de segundos. Era difícil acreditar que não havia precipitação alguns minutos atrás.
O vento uivava com intensidade, e a chuva martelava a carroça. A mudança repentina deve ter assustado os cavalos, pois o veículo balançou. A cabine estava bem selada, então nenhuma gota de chuva entrou, mas aqueles cavalos lá fora eram criaturas vivas. Isso provavelmente não seria nada para um mustangue de platina, mas era impossível para um cavalo comum correr nessas condições.
Em meio ao vento e à chuva, ouvi algumas vozes pequenas e irritadas. Comecei a me perguntar se Black, White e Gray estavam bem.
Eu ainda tentava decidir o que fazer sobre o mau tempo quando um relâmpago cortou o céu. Em seguida, veio o trovão. Logo depois, a carroça deu um solavanco e parou. Consegui segurar um grito. Seria muito vergonhoso gritar quando ninguém mais parecia perturbado.
O vento e a chuva continuaram castigando a carroça, sem sinais de que iriam parar tão cedo.
O que fazer... Podemos acabar morrendo aqui fora. Se essa tempestade tivesse chegado um pouco antes, teríamos adiado a partida. Que péssimo timing.
Comecei a sentir frio. Peguei uma jaqueta e a abotoei bem. Não era a primeira vez que eu era pego por uma tempestade ao ar livre. Na verdade, a chuva parecia me perseguir. Isso acontecia porque minha sorte era péssima.
— Que tempestade repentina... — murmurei.
— Que tal darmos uma olhada lá fora? — perguntou Sitri. — Os cavalos são alugados, então devemos cuidar bem deles.
— Certo, T — disse Liz de repente. — Vamos correr.
— Hã?! — Tino ficou boquiaberta.
Liz ignorou a reação dela, levantou-se e fez alguns alongamentos leves. Talvez por causa do frio, leves fios de vapor subiam de seu corpo. Ela deu mais uma olhada pela janela e acenou com satisfação.
— Que tempestade... O que mais você poderia querer para uma sessão de treino? — disse ela. — Você nunca me decepciona, Krai Baby! Siddy, você tem algumas poções, não tem? Aah, vamos treinar resistência a raios, então pode nos dar um para-raios líquido, por favor?
— Sem problemas — respondeu Sitri.
Sério, até o clima agora é culpa minha?
Sitri tirou de sua bolsa uma poção branca e cintilante. Para-raios líquido. Eu já tinha visto antes—era uma poção insana feita para atrair raios. Eu até conhecia os princípios básicos dela, mas não conseguia lembrar direito.
Além do para-raios, Sitri rapidamente separou uma variedade de outras poções, colocou todas em uma caixa circular e entregou a Liz.
Tino estava dura como uma estátua. Ela olhava para Liz com uma expressão vazia, como se tudo aquilo fosse um sonho. Talvez sua vida estivesse passando diante de seus olhos.
— Liz— — tentei impedir a loucura, mas Liz me lançou seu sorriso mais brilhante daquele dia.
— Não se preocupe, Krai Baby! T tem bastante material de mana e tem treinado. Provavelmente não vai morrer com um único golpe!
— Hã?! Mestre...
— Só um instante!
Instintivamente, interrompi Liz. Eu não podia deixar que ela submetesse nossa novata a um teste tão cruel. Tino me olhava com olhos lacrimejantes.
"Não se preocupe. Vai ficar tudo bem."
— Você é um preocupado, Krai Baby — disse Liz. — Relaxa, T não é mais uma criança e é responsável por si mesma. Meus cálculos dizem que ela tem resistência suficiente, e enquanto ela não morrer na hora, Siddy pode socorrê-la com as poções.
Os olhos dela brilhavam enquanto expunha essa lógica absurda. Era um treinamento extremamente rígido, mas foi exatamente assim que o mentor de Liz a treinou no passado. A única diferença agora era que Liz estava participando também. Que loucura.
A diferença de poder entre Liz e sua discípula era absurda. Tino me olhava, suplicando por ajuda. Foi então que me lembrei de que tinha o item perfeito comigo. Alcancei o bolso e tirei algo gosmento.
A cor sumiu do rosto de Tino. Era Evolve Greed, meu item especial para liberar o poder latente de alguém. Eu não tinha certeza se deveria levá-lo comigo, mas como era uma nova adição à minha coleção, achei que poderia encontrar um bom uso para ele.
Eu não conseguia usar o Evolve Greed, mas quando Tino o vestiu, ele aprimorou suas habilidades. Sua velocidade, força e resistências provavelmente aumentaram. Tirando a leve euforia que causava, era uma Relíquia poderosa, e eu sentia que seus efeitos psicológicos poderiam ser superados.
Evolve Greed falou com uma voz cansada após tanto tempo enfiado no meu bolso.
— Que experiência horrível. Oh, está na hora do meu grande momento?
Eu tinha certeza de que a resistência de Tino contra raios aumentaria se ela usasse a máscara. Ela parecia um pouco traumatizada, mas esperava que conseguisse superar isso. Olhei para ela com grandes expectativas.
— Lizzy, eu... eu decidi que quero começar o treinamento agora mesmo! — gritou.
— Ah—
Tino quase tropeçou ao sair voando da carroça. Liz ficou boquiaberta, e eu ainda segurava a máscara em minhas mãos. Ela deixou a porta aberta, fazendo com que ventos fortes e chuva entrassem na cabine. Depois de um minuto de silêncio, Liz bateu palmas.
— Muito bem, Krai Baby! Só você poderia acabar com a covardia da T tão rápido. Eu vou com ela, beleza?
— Lizzy, T, deixei alguns para-raios líquidos prontos, então não se esqueçam de pegá-los! — Sitri chamou. — Sério, T, você tem uma tendência a fugir da realidade.
"Isso é mesmo fuga da realidade?"
Liz pegou um para-raios líquido e desapareceu na escuridão, saindo do meu campo de visão. A última coisa que vi antes de Tino partir foi o olhar de traição que ela me lançou. Olhei para a coisa gosmenta em minhas mãos.
As coisas preciosas sempre escapam dos meus dedos. Sempre.
— Vou preparar a tenda. Krai, pode esperar na carroça por um tempo — disse Sitri.
E como se nada de estranho tivesse acontecido, Sitri começou a montar o acampamento, com um sorriso no rosto.
Pela janela, vi Matadinho montado em uma grande quimera branca, uivando na tempestade. Parecia o fim do mundo. Que viagem horrível. O trovão ribombou, como se quisesse silenciar meus pensamentos.
***
Ventos ferozes e chuva batiam contra as janelas do salão da sede do clã Primeiros Passos. Nuvens densas cobriam o céu, e trovões retumbavam de tempos em tempos.
O salão estava lotado. Alguns estavam prestes a partir em missões, mas desistiram assim que a tempestade começou. Outros não tinham para onde ir depois que sua estalagem habitual fechou devido ao mau tempo. E havia aqueles que decidiram que não conseguiriam sair no dia seguinte e preferiram se refugiar ali.
Todos estavam sentados às mesas, observando o céu pelas enormes janelas do salão.
Lyle, já completamente recuperado do problema no estômago, segurava uma garrafa de licor em uma das mãos e falava alto.
— "Férias", ele disse. Maldito Krai. Tudo começou a dar errado desde o início — resmungou.
— Nada de bom acontece quando o CM resolve agir por conta própria — disse um dos membros do grupo de Lyle.
Era de conhecimento geral que os Mil Desafios não eram algo com que se quisesse envolver. Por mais que o tempo passasse, eles nunca ficavam mais fáceis. Normalmente, o trabalho de um caçador de tesouros se tornava menos perigoso à medida que ele ficava mais forte. Mas os Mil Desafios eram diferentes. Como eram "provações", o objetivo sempre foi forçar alguém ao seu limite.
Os membros do Primeiros Passos eram considerados especiais porque conseguiram superar essas provações. Isso era ótimo, mas estavam cansados de serem arrastados para elas sem nem serem consultados.
— Além disso, a gente já não passou por uma dessas provações agora há pouco?! — Lyle gritou com a voz embriagada. — Ele não nos deu tempo nenhum para descansar. A gente não quer arriscar a vida toda hora!
Outros membros do clã começaram a se juntar às reclamações.
— Isso mesmo!
— Nem tive tempo de repor meus suprimentos!
— Ele sempre esconde informações!
— Não podemos aceitar isso!
— Ele acha que a gente sairia nessa tempestade?
— Ele nos compara com pessoas do nível dele!
— Ele nos compara com a Liz!
— Conta logo quais são seus planos!
— Nos pague!
— Paaaaague!
Mesmo sem Krai presente, todos no salão começaram a se exaltar. Ombro a ombro, gritavam para o teto. Isabella e Ewe, que optaram por não participar, trocaram olhares e suspiraram, exasperadas.
— O pessoal aqui se dá bem até demais... — Ewe comentou.
— Liz e Sitri devem estar bem, mas fico preocupada com a Tino — disse Isabella.
Os Grieving Souls já estavam acostumados com esse tipo de provação, mas ela temia pela jovem companheira de clã que havia sido arrastada junto. Uma vez envolvido em um dos Mil Desafios de Krai, não havia escapatória.
O céu parecia responder ao olhar preocupado de Isabella quando, de repente, se iluminou.
Um membro do clã irrompeu no salão, correndo apressado. Estava completamente encharcado, mas não parecia se importar.
— Ei, pessoal! Notícias bombásticas! — gritou com a voz rouca. — A Maldição Oculta está entrando em guerra contra a Torre Akashic! Os membros de elite deles estão se movendo, e a gente vai sentir os impactos!
Isso mudou o clima da sala instantaneamente.
A Maldição Oculta era um clã antigo e um dos mais poderosos de Zebrudia. Sua mestre de clã, a Inferno Abissal de Nível 8, era famosa por sua intensidade, comparável até mesmo aos Grieving Souls. Se a Maldição Oculta entrasse em conflito direto com outro grupo, não havia como prever o tamanho dos danos colaterais. A Associação dos Exploradores poderia até intervir.
Lyle coçou a cabeça, com uma expressão de desespero.
— Maldito Krai — ele gritou. — Ele disse que ia tirar férias!
Outros caçadores se juntaram a ele.
— Aaah! Fomos enganados!
— E a gente tinha acabado de se livrar da Maldição da Bebedeira!
Isabella soltou um longo suspiro ao ver seus companheiros de clã começarem a gritar e reclamar outra vez.
***
A chuva e o vento castigavam a planície escura. Relâmpagos contínuos e estrondos ensurdecedores pareciam quase letais. No fim das contas, caçadores ainda eram humanos, e não havia muito que pudessem fazer contra a fúria da natureza.
— Droga, uma tempestade?! Só pode ser piada.
O vento acertava-o de lado, e seu casaco fino mal servia de proteção. Seus xingamentos eram levados pelo vento e se perdiam no vazio. Do alto da carroça, Gray, o vigia relutante, pulou de seu assento para o chão. No banco do condutor, Black e White estavam encharcados e tentavam acalmar os cavalos assustados.
De canto de olho, Gray viu aquela mulher infernal montando calmamente uma tenda, completamente alheia à tempestade. Ela pegou a lona de uma das malas empilhadas e montou a estrutura com mãos experientes. Sob vento e chuva, lama e escuridão, ela se movia sem hesitação.
Ela vestia um manto grosso e carregava uma grande mochila. Seu rosto refinado e a falta de armas não faziam com que parecesse uma caçadora, mas sua habilidade deixava claro que era uma—e uma de primeira classe.
Mas o que mais a distinguia era sua expressão—ela não parecia nem um pouco perturbada.
Seus olhos se voltaram para Gray no instante em que ele desceu da carroça. Um relâmpago iluminou o céu, e suas íris rosadas passaram de Gray para White e Black. Ela era só uma mulher pequena. Os três haviam sido derrotados pelo outro, a infame Sombra Partida, e ela simplesmente saiu da carroça apesar da tempestade.
Aquela quimera indescritível também não estava em lugar nenhum.
Essa parecia uma boa oportunidade para fugir. A visibilidade era baixa, mas eles não haviam se afastado tanto da capital, e seria difícil persegui-los na tempestade.
Enquanto Gray ponderava, Sitri Smart franziu a testa, descontente.
— White, Black, Gray, essa é a chance de vocês. Não me façam passar vergonha — disse ela.
Havia apenas um problema: os colares em seus pescoços. Os colares imundos eram um tipo de artefato mágico originalmente criado para restringir o movimento de escravos. A escravidão não era praticada em Zebrudia, então esses colares eram uma visão rara, mas depois de passar muitos anos no submundo, Gray sabia exatamente do que eles eram capazes. Ao pressionar um interruptor remoto, o usuário sentia um forte choque elétrico.
Não era tão poderoso quanto uma Relíquia, mas conseguia fornecer um fluxo de energia forte e estável por um longo período de tempo. Mesmo alguém com altos níveis de mana material não conseguiria resistir para sempre.
Os colares eram extremamente resistentes e usados em certos países que empregavam trabalho escravo. Eles também eram projetados para emitir um choque intenso caso fossem atingidos com força, tornando impossível removê-los à força. Gray e os outros estavam presos por uma corrente invisível, e Sitri não parecia do tipo que hesitaria em apertar o botão para dar um choque neles. Na verdade, esse tipo de item nem sequer era algo que se pudesse obter em Zebrudia por meios convencionais.
Gray imaginou que White e Black haviam chegado à mesma conclusão. Se todos haviam respondido à convocação repentina de Sitri Smart, significava que estavam de acordo — eles tinham cometido um erro. Não deveriam ter aceitado aquele trabalho para recuperar o item do leilão.
Era tarde demais para arrependimentos, os dados já estavam lançados. Alguns caçadores eram boas pessoas, mas os Grieving Souls, aqueles que haviam capturado Gray e os outros, claramente não eram.
Esses caçadores poderiam simplesmente ter entregado Gray e seus comparsas para a guarda, mas em vez disso, escolheram mantê-los sob seu controle. Se tinham feito isso, então provavelmente não hesitariam em matá-los. Se não obedecessem, podiam considerar suas vidas como perdidas. Na verdade, era possível até que fossem eliminados sem motivo algum.
Tudo o que Gray e os outros podiam fazer era seguir as ordens e rezar para não provocarem a ira dos caçadores. Mesmo que tudo o que os aguardasse fosse a morte, não tinham escolha a não ser fingir o contrário e continuar vivos.
Então, um pensamento surgiu na mente de Gray. Se os três atacassem Sitri ao mesmo tempo, não conseguiriam derrubá-la antes que ela pressionasse o interruptor? Poderiam neutralizá-la e roubar o controle remoto. Se conseguissem se livrar dos colares, talvez pudessem conquistar pelo menos um pequeno grau de liberdade.
White, Black e Gray eram especialistas em lidar com caçadores. Raramente enfrentavam seus alvos de frente, mas tinham confiança em suas habilidades. O homem assustador na carruagem poderia ser um problema, mas parecia desinteressado neles, o que talvez abrisse espaço para uma negociação.
Aquela poderia ser a primeira e última vez que veriam Sitri indefesa e separada de seus aliados. Poderiam continuar obedecendo suas ordens, mas quanto mais tempo passasse, pior a situação ficaria. Felizmente para Gray e os outros, suas armas não haviam sido confiscadas.
Gray tomou sua decisão e ergueu a cabeça, mas no mesmo instante, um clarão cegante rasgou a escuridão e um estrondo ensurdecedor ecoou ao redor. O impacto fez sua visão tremer e ele tropeçou. White e Black tentavam desesperadamente acalmar os cavalos aterrorizados.
Um raio caiu ali perto. Instintivamente, Gray fechou os olhos e cobriu a cabeça. Foi então que ouviu uma voz suave.
— Ainda não se acostumou com trovões, hein?
Gray abriu os olhos hesitante. Sitri estava perto, olhando para ele. Diante daquela situação, seus olhos calmos e o sorriso em seus lábios não pareciam destemidos, mas insanos.
Sitri retirou um frasco do bolso e o pressionou na mão trêmula de Gray.

— Veja bem, eu me acostumei com os raios há muito tempo — disse ela, num sussurro. — O truque para desenvolver resistência à eletricidade é... ouçam bem... ser atingido por raios continuamente. Da primeira vez, você quase morre, mas se repetir o processo, seu material de mana fortalecerá seu corpo nessa direção. Os para-raios líquidos foram desenvolvidos para esse propósito.
Loucura. Inconcebível. Suicídio. Gray queria descartar a ideia dela como qualquer uma dessas coisas, mas Sitri não parecia disposta a permitir isso.
Era de conhecimento geral que a força de vontade de um caçador podia influenciar o modo como ele era fortalecido pelo material de mana. Também se sabia que todos os caçadores de alto nível faziam uso dessa funcionalidade. No entanto, mesmo tendo isso em mente, o que Sitri estava sugerindo não poderia ser descrito com uma palavra branda como "treinamento".
Gray permaneceu em silêncio, apenas encarando o frasco de poção em sua mão.
— Ah, é verdade — Sitri acrescentou. — Se você desenvolver uma resistência maior à eletricidade, os choques dos colares talvez se tornem suportáveis. Que problema. Esse clima está perfeito, não acha? Talvez seja uma mensagem de Krai. Talvez ele esteja dizendo: "Se tiverem coragem, podem fugir".
Uma mensagem. Outro raio caiu. Que noite tempestuosa. Gray achou ter ouvido um grito distante. Ele, White e Black continuavam parados como estátuas. Sitri sorriu.
— Odeio pedir isso a vocês, mas poderiam cuidar dos cavalos? Não posso contar com Matadinho para esse tipo de coisa. Ah, e não se preocupem com a tenda. Já estou acostumada com esse tipo de situação. Vocês só atrapalhariam.
Sitri virou as costas para eles sem qualquer preocupação e voltou a montar a tenda. Dentro do frasco de vidro que tinha empurrado para as mãos de Gray havia um líquido branco brilhante, algo que ele nunca tinha visto antes.
Ele decidiu repensar seu plano de fuga.
***
O Mil Truques. O líder dos Grieving Souls alcançara o Nível 8 em uma idade mais jovem do que qualquer outro caçador do império. Sua força e astúcia não tinham limites. Ele era uma figura elusiva, com inúmeras vitórias em seu nome. Ainda assim, apesar de todo o seu prestígio, ninguém sabia exatamente quais eram seus poderes.
Chloe Welter havia ouvido muitos rumores sobre esse homem durante seu tempo como funcionária da Associação dos Exploradores. Sua inteligência sobrenatural fazia com que ele fosse temido não apenas por seus inimigos, mas também por seus aliados. Entre os caçadores do Primeiros Passos, seu poder incompreensível e seus planos quase proféticos eram chamados de "Mil Provações". Ocasionalmente, Chloe também ouvia histórias absurdas sobre esse caçador contadas por seu tio Gark, o gerente da filial da Associação.
Ainda assim, apesar de tudo isso, ela nunca esperou que o Mil Truques simplesmente a deixaria para trás. Ela entendia que a praticidade era essencial no trabalho de um caçador, mas isso era absurdo demais. E pensar que ela havia ficado nervosa por acompanhá-lo em sua missão, apenas para acabar assim. Os rumores estavam certos: ele era imprevisível.
O sol já havia se posto há algum tempo e uma tempestade rugia lá fora. Esse não era um clima adequado para viajar. Que péssima coincidência—justamente quando as nuvens começaram a se formar, Chloe recebeu a ordem para ir atrás do Mil Truques.
A carruagem já estava pronta, esperando por ela. Chloe terminou rapidamente seus preparativos e correu até o portão.
Ela passava a maior parte do tempo usando o uniforme da Associação dos Exploradores, mas agora havia deixado de lado sua vestimenta profissional por roupas mais adequadas para viagem. Eram roupas que ela preparara há muito tempo, quando ainda aspirava ser uma caçadora. Agora, pela primeira vez em muito tempo, uma espada pendia de sua cintura.
Perto do portão, uma carruagem com o emblema da Associação dos Exploradores aguardava, juntamente com os caçadores contratados para escoltá-la. Eles estavam sob um abrigo improvisado, olhando para o céu com insatisfação. O homem ruivo à frente do grupo notou Chloe e chamou por ela.
— A gente vai mesmo sair nesse tempo horrível? — perguntou ele.
— Vamos. Isso é um assunto urgente — respondeu Chloe.
— Gilbert, não é assim que se fala com uma cliente! — repreendeu Rhuda Runebeck, a caçadora morena e bem-dotada ao lado dele.
— Não, eu não me importo — disse Chloe. — Eu entendo que existem condições que caçadores preferem evitar.
— C-Certo. Mas eu ainda não consigo acreditar que recebi uma ordem diretamente da Associação — disse Gilbert.
Os outros caçadores atrás dele assentiram em concordância. O céu estava escuro e a chuva caía, mas um certo brilho iluminava os rostos deles. Missões emitidas pela Associação dos Exploradores pagavam muito bem e eram oferecidas apenas a caçadores considerados promissores ou confiáveis.
A escolta de Chloe era composta pela talentosa caçadora solo Rhuda Runebeck, além do grupo Redemoinho Escaldante, que incluía o renomado Gilbert Bush. Chloe tinha poucos motivos para reclamar de uma equipe como essa.
Gilbert já fora conhecido por seu temperamento difícil, mas aparentemente havia se acalmado nos últimos tempos. No entanto, o principal motivo para sua seleção para essa missão era o fato de que tanto Rhuda quanto Gilbert conheciam Krai por meio da missão na Toca do Lobo Branco.
Essa tarefa não era particularmente difícil e eles sabiam seu destino final. A única preocupação real era que precisavam alcançar Krai. Chloe cerrou os punhos e analisou o grupo diante dela.
— Velocidade será essencial para essa missão. Temos que fazer tudo o que pudermos para encontrar Krai antes que ele chegue ao Condado de Gladis.
Claro, o Mil Truques provavelmente ficaria bem mesmo sem Chloe, mas ele tendia a ser bastante despreocupado quando se tratava de questões de autoridade. Talvez fosse tão irreverente quanto Solis Rodin, o ancestral de Ark Rodin. O Mil Truques demonstrava uma inclinação para dar crédito a outras pessoas, e isso era motivo de preocupação para a Associação dos Exploradores. Modéstia era uma qualidade admirável, mas tudo tinha seus limites.
Não seria exagero dizer que essa missão seria crucial para as futuras relações entre o Conde Gladis e a Associação dos Exploradores. Um dos motivos pelos quais Gark enviara Chloe atrás de Krai Andrey era que isso seria uma boa experiência para ela. Mas o principal motivo era garantir que Krai pegasse seu pagamento. É claro, a tentativa anterior de Chloe de se juntar aos Primeiros Passos também era um fator relevante...
— Ainda não acredito que até mesmo um nível 8 faria isso— Não, deixe-me reformular. Justamente porque ele é um nível 8, não acredito que sairia nesse tempo. Não são apenas os monstros, mas também os raios com que devemos nos preocupar — disse Carmine.
Carmine Syan. Ele era um Guerreiro Pesado de temperamento calmo e o líder do Turbilhão Escaldante.
Carmine não estava errado, mas Chloe sabia melhor.
— Considerando as experiências passadas dele, eu duvido que o Mil Truques tenha medo de uma tempestade — ela disse com confiança. — Na verdade, já ouvi histórias de que ele liderou investidas direto para dentro de tempestades.
— Sério...
Era uma história verdadeira, por mais difícil que fosse de acreditar.
Era senso comum que até mesmo um caçador não podia enfrentar as forças da natureza, mas aparentemente isso não significava muito para um nível 8. Fazia um certo sentido: chuva não era um problema e um raio não causaria grandes danos a alguém de nível tão alto.
— Não há com o que se preocupar, raios não caem com tanta frequência — disse Chloe.
Ela não queria particularmente sair naquela tempestade, mas sentia que Krai estava enviando uma mensagem ao deixá-la para trás. Aquela era uma de suas Mil Provações. Essas Provações ocasionalmente envolviam pessoas de fora do Primeiros Passos, e agora estavam acontecendo bem no meio do mau tempo.
Chloe odiava perder e já havia sonhado em se tornar uma caçadora. Seria impossível não se sentir empolgada naquela situação.
— O Mil Truques também está em uma carruagem, então devemos conseguir alcançá-los — ela continuou. — Sem falar que nosso cavalo é de outro nível. Se nos apressarmos, ficaremos bem. Na verdade, quanto mais tempo dermos a eles, mais complicada a rota pode se tornar, o que dificultaria nosso encontro.
A carruagem deles estava atrelada a um mustangue de ferro—um poderoso monstro equino. Ele não perderia para um cavalo comum.
— Entendido. Também não acho que os monstros da região nos darão problemas — disse Rhuda, assentindo.
Como funcionária da Associação dos Exploradores, Chloe sabia se virar em batalha e regularmente absorvia material de mana. Além disso, era hábil com a espada; não seria um fardo para o Turbilhão Escaldante.
— Mas tome cuidado — continuou Rhuda. — Tino, uma conhecida de Krai, disse que ele tem o hábito de se meter em encrenca.
— Isso não é problema, o trabalho de um caçador de alto nível é do nosso interesse na Associação. Além disso, de acordo com o plano inicial, eu deveria acompanhar Krai nessa viagem.
— Não sei se isso é exatamente algo bom.
A missão da Toca do Lobo Branco deve ter sido bem desgastante, pois o sorriso de Rhuda era cansado.
Foi então que uma voz rude chamou por eles por trás.
— Krai. Você acabou de dizer "Krai"?

A voz veio de um grande grupo. Consistia em oito homens e duas carruagens. Chloe arregalou os olhos ao ver o gigante alto parado firmemente no centro do grupo.
Era o Relâmpago Estrondoso, Arnold Hail, junto com todos os outros que haviam participado do recente confronto com o Mil Truques.
***
— Tsk, que azar dos infernos. Acho que esse tipo de clima acontece até mesmo em Zebrudia.
Eles estavam perto do portão. Conseguindo se espremer debaixo de um abrigo com os outros, Eigh Lalia olhou para o céu com decepção. A tempestade repentina o fez lembrar de sua terra natal, Nebulanubes, a Terra das Névoas, um lugar onde a estação chuvosa durava o ano inteiro.
Pelo vento e o volume da chuva, aquilo não iria passar tão cedo. Provavelmente duraria o dia inteiro. Os membros da Névoa Caída estavam acostumados a lutar na chuva, mas isso não significava que gostavam. Em Nebulanubes, tempestades eram o pior inimigo de um caçador. Sair da cidade numa noite tempestuosa era algo que evitavam ao máximo.
No passado, era justamente durante tempestades que o Dragão do Trovão atacava Nebulanubes. Para eles, um céu coberto de nuvens escuras era um mau presságio.
A expressão de Arnold era amarga e, para quem soubesse olhar, demonstrava extrema irritação. Ele tinha certeza de que seu inimigo já havia deixado a capital. Arnold queria começar a perseguição o mais rápido possível e sabia que Eigh e os outros não hesitariam em segui-lo.
Não era apenas uma questão de orgulho de Arnold, mas de toda a Névoa Caída. O alto nível do Mil Truques gerava um certo receio, mas todos estavam unidos pelo desejo de vingança. No entanto, perseguir um alvo sob chuva forte era extremamente difícil, então Arnold se conteve de dar a ordem.
Eles não sabiam para onde o Mil Truques estava indo. Haviam buscado informações, mas tudo o que descobriram era que ele estava de férias. Havia poucas cidades ligadas diretamente à capital por estradas, mas se escolhessem a errada, perderiam tempo demais para recuperar o atraso.
Além disso, a Névoa Caída era composta por oito homens divididos em duas carruagens; com todas as armas e equipamentos, seria um aperto colocá-los em apenas uma. Ter muitos membros era bom em combate, mas os tornava lentos para se locomover.
— Não há como isso continuar por meses a fio como em Nebulanubes. Talvez seja melhor descansarmos uma noite e ver o que acontece — sugeriu Eigh.
Foi então que ouviu alguém dizer o nome do seu inimigo. Ele se virou e viu um grupo de jovens caçadores. Um sorriso surgiu em seus lábios ao notar um rosto familiar entre eles.
Era uma funcionária da Associação dos Exploradores. Chloe, se lembrava bem. Foi ela quem entregou a declaração do Mil Truques. Parecia que ela também os reconhecia, pois seus olhos se arregalaram.
Eigh percebeu que não a via desde que ela entregara aquela mensagem. Não reconheceu nenhum dos membros do grupo ao lado dela.
— Névoa Caída — disse ela com um brilho misterioso no olhar. — O que um grupo com nível médio 6 está fazendo por aqui a essa hora?
O sol havia se posto e a chuva caía. Nenhum caçador normal sairia naquele momento. Arnold estreitou os olhos e cruzou os braços. Isso significava que deixaria tudo por conta de Eigh. O Relâmpago Estrondoso era o símbolo do grupo; tê-lo falando a todo momento seria um sinal de fraqueza.
Era a oportunidade de Eigh mostrar do que era capaz. Ele se apresentou e avaliou o grupo jovem à sua frente.
— Então vocês também têm negócios com o Mil Truques — disse Gilbert, o homem ruivo. — Que coincidência.
Coincidência. Sim, uma coincidência. Mas também uma sorte. Aparentemente, Chloe e os outros precisavam encontrar o Mil Truques para um trabalho e pareciam saber seu destino. Mesmo que não soubessem, a rede de informações e a autoridade da Associação dos Exploradores eram muito superiores às de um único grupo.
— Hoje é nosso dia de sorte, Arnold. Se eles não se importarem, o que acha de seguirmos com eles?
— Muito bem — respondeu Arnold com um aceno.
Rhuda abriu a boca, mas logo a fechou, talvez porque seu cliente estivesse bem ali. Chloe tinha um olhar pensativo. Provavelmente, estava considerando o conflito entre o Mil Truques e a Névoa Caída.
Contudo, brigas eram um acontecimento comum no mundo selvagem dos caçadores. A Associação dos Exploradores permitia essas disputas tacitamente, desde que nenhum crime fosse cometido. Talvez “não interferência” fosse um termo mais apropriado do que “aprovação tácita”. Eles obviamente não aprovavam assassinato, mas, desde que nenhum civil fosse pego no fogo cruzado, até mesmo ferimentos graves passavam impunes.
Mesmo que o grupo jovem os recusasse, isso não seria um problema para a Névoa Caída. Eles eram uma equipe de primeira linha; perseguir o Mil Truques seria difícil, mas caçar Rhuda e os outros seria uma tarefa simples.
A Névoa Caída também tinha a vantagem da força. Não recorreriam a violência sem sentido, mas, se quisessem, poderiam eliminar os jovens caçadores sem dificuldades. Fraqueza era um crime entre eles.
Chloe ponderou em silêncio. Então assentiu com um sorriso.
— Nesse caso, não vejo razão para a Associação dos Exploradores recusar. No entanto, devo informá-los de que, mesmo que nos protejam durante a viagem, não poderemos recompensá-los por isso.
Seu sorriso não chegou aos olhos. Ela era ousada. Eigh ouvira dizer que ela era sobrinha daquele gerente de filial e não tinha dificuldade em acreditar.
Chloe sabia o que a Névoa Caída queria. Mesmo assim, não via problemas em mostrar-lhes o caminho. Isso porque sabia que eram mais fracos do que seu alvo. Naturalmente, também percebeu que pouco poderia fazer para impedi-los de simplesmente segui-los.
Um sorriso feroz e torto se formou nos lábios de Arnold.
— Hmph, gostei. Eigh, vamos com eles.
Chloe sorriu e estendeu a mão.
— Confio que manterá seus homens sob controle, Arnold — disse ela.
***
Eu fiz uma careta com o cheiro de algo queimando.
Nós realmente não deveríamos ter saído na tempestade, pensei.
Eu sabia disso desde o começo. Nem precisava que me dissessem que era uma má ideia. Mas, se me derem a chance de me defender, o que eu poderia ter feito quando a tempestade surgiu tão de repente?! Eu fui uma vítima! Uma vítima!
No entanto, achei difícil continuar me chamando assim quando vi a fumaça negra subindo do corpo da Tino.
Ela deve ter sido atingida por raios várias vezes enquanto era forçada a correr pela tempestade. Ela abriu os olhos só um pouquinho e sorriu fracamente.
— Mestre — disse ela. — Você... me viu? Eu... fiz o meu melhor.
— Sim, você fez.
— Obrigada por tudo. Você... Lizzy... Estou tão feliz por ter conhecido todos vocês...
Sua respiração estava entrecortada e sua força havia sumido. No meio do caminho, minha mente começou a vagar, então não posso ter certeza absoluta, mas foi uma quantidade extraordinária de raios. Foi o suficiente para eu desistir de contar.
Caramba, Siddy, você realmente ficou bom em fazer poções.
As últimas palavras da Tino foram de gratidão, apesar de tudo que fizemos com ela. Que garota boa.
Olhei para a garota má, Liz, enquanto ela jogava a Tino, ainda soltando fumaça, sobre o ombro.
— Krai Baby, olha, olha! — exclamou. — Foi exatamente como eu disse! Não tinha com o que se preocupar. Ela está viva. Até a T está crescendo dia após dia!
— É... Aham. Mas pega leve com ela — eu disse. — Lembra, isso é um descanso. Sem mais corridas no meio da tempestade, beleza?
Provavelmente, eu estaria mais incomodado se já não estivesse acostumado a ver gente sendo atingida por raios.
— Okaaay! Tenho certeza de que isso já foi suficiente para aumentar a resistência dela contra raios, então vamos parar por aqui.
Os ferimentos da Tino não seriam tão ruins se ela simplesmente usasse a Evolve Greed. Eu definitivamente vou garantir que ela descanse na próxima cidade, jurei para mim mesmo enquanto via uma poção de recuperação sendo enfiada goela abaixo dela com um canudo.
Acampamos ao lado da estrada e ficamos algumas horas ali. Ao amanhecer, a chuva diminuiu um pouco. O céu ainda estava encoberto por nuvens negras como a noite, mas não havia mais trovões, o que já era uma melhora.
Sob a chuva fina, Drink, agora acostumado a ter um cavaleiro, disparava de um lado para o outro. Aparentemente, a chuva não significava nada para uma quimera. Não importava quantas vezes eu visse, a visão de um gigante seminu de dois metros usando um saco de papel e cavalgando uma quimera sempre me parecia um sinal do fim dos tempos.
— Não se preocupe, esta poção vai prevenir fadiga, mesmo na chuva. No pior dos casos, se os cavalos não aguentarem, podemos fazer o Drink puxar a carruagem.
O sorriso habitual da Sitri era ofuscante. Achei melhor deixar tudo nas mãos dela.
Subi na carruagem e tirei minha jaqueta resistente à água. Parecia que eles não iam correr hoje, porque Liz e Tino entraram depois de mim. Da cabeça aos pés, cada centímetro da Tino parecia exausto. Por último, Sitri entrou e então a carruagem começou a se mover.
Pelo visto, Black e os outros seriam os cocheiros de novo. Eles estavam pálidos como a morte e pareciam mal de saúde, mas imaginei que não fosse nada preocupante.
Eu tinha minhas reservas, mas respirei fundo e falei quando me senti pronto.
— Estou proibindo qualquer tipo de treinamento.
— Hã?!
Liz estava abraçando os joelhos e sorrindo, mas meu decreto repentino fez com que ela franzisse os lábios, descontente.
Olhando para trás, meus amigos de infância sempre estavam no máximo. Desde quando ainda não éramos caçadores e morávamos na nossa cidade natal, até quando superamos muitos obstáculos e nos tornamos conhecidos, nunca os vi pegarem leve.
Provavelmente, esse era um dos fatores do sucesso deles, algo que eu sempre presenciei enquanto me encolhia à margem. Desta vez, no entanto, eu imporia limites. Tino estava coberta de ferimentos. A poção da Sitri de alguma forma conseguiu mantê-la respirando e ela teve um tempo para descansar, mas havia olheiras sob seus olhos e seus ombros delicados tremiam visivelmente.
Considerando que fumaça estava saindo do corpo dela na noite anterior, aquela poção era realmente incrível. No entanto, nosso objetivo não era desenvolver resistência contra raios. Não era nenhum tipo de treinamento especial. Eu não precisava nem dizer, mas também não era para testar a Evolve Greed.
Eu queria que Tino, Liz e Sitri descansassem de vez em quando! Eu as trouxe como guarda-costas, mas não estava pensando só em mim. Pode não parecer convincente vindo de um cara que está sempre tirando uma folga, mas é importante esquecer o treinamento de vez em quando e descansar o corpo e a alma.
Olhando pela janela, vi uma vasta planície sombria. Não havia outras carruagens ou viajantes à vista, e algo naquelas campinas enevoadas parecia solitário. Eu não sabia se outra tempestade estava a caminho ou não, mas era um descanso, então eu queria evitar acampar ao relento de qualquer forma.
Certo, isso é um descanso! Apenas uma viagem! Nenhum treinamento necessário!
— Nosso objetivo é tirar férias! Tenham piedade da Tino! — falei com paixão.
Eu já tinha dito isso várias vezes, mas ninguém parecia entender.
Tino me olhava com incredulidade. Liz não demonstrava o menor arrependimento. Vale mencionar que ela também foi atingida por raios, mas, por sorte, saiu ilesa. Quem diria que isso era possível?
— Mas, Krai Baby, essa foi a oportunidade perfeita — disse ela com olhos brilhantes. — Se você não treinar quando pode, pode não ser forte o suficiente quando realmente precisar.
— Tá tudo bem — respondi. — Provavelmente.
Eu já tinha ouvido falar de gente treinando debaixo de cachoeiras, mas nunca debaixo de raios.
Se você quer ser atingida por raios, tudo bem, mas por favor, pare de tentar transformar a Tino.
Sitri estava sentada com as mãos nos joelhos e as pernas dobradas sob si quando bateu palmas como se tivesse tido uma revelação súbita.
— Isso poderia ser um treinamento inverso?
Bom, essa é uma palavra que nunca ouvi antes...
— Ao optar por evitar o treinamento, manteremos nossa força baixa e, portanto, enfrentaremos mais batalhas de risco de vida. Estou certa?
Nem um pouco.
Sitri certamente teve algumas ideias, digamos, anormais. Meus amigos de infância eram caçadores até o último fio de cabelo. Por algum motivo, a sugestão bizarra fez Tino me encarar com um olhar de choque.
— Estou certa ao presumir que você acha que não precisamos de ninguém que não sobreviveria a tal provação? — Sitri disse. — Acho isso bem lógico! Não podemos sempre pegar leve conosco.
— Deixa pro Krai Baby pensar em algo tão cruel! — Liz disse. — Dá tudo de si, T! Não é minha culpa se você morrer!
Isso não era nem um pouco o que eu queria dizer. E por que vocês duas parecem tão felizes?
Tino arrastou o corpo na minha direção. Aparentemente, ela era bastante calma e centrada quando era uma caçadora solo, mas graças à Liz, sempre me olhava com olhos lacrimejantes. Eu queria abraçá-la e agradecê-la por todo o seu esforço.
— Mestre, eu quero continuar treinando — ela disse.
— Hã? Se o Krai Baby manda pular, você pergunta "quão alto?" Quantas vezes eu preciso repetir isso?! — Liz gritou ao arrancar Tino de mim e jogá-la no chão.
Ela virou uma vilã. Eu nem disse para ela pular, mas parece que ela vai voar de qualquer jeito.
Já fazia mais de um ano desde que eu tinha ido em uma aventura com Liz ou qualquer um dos Grieving Souls. Enquanto eu estava no meu escritório comendo sorvete, polindo Relíquias e mexendo com Eva, eles tinham se tornado caçadores sem volta. Eu já sentia isso antes, mas nunca imaginei que chegariam ao ponto de não conseguirem distinguir treinamento de férias.
Isso é ruim. Eles vão perder o pouco de habilidades sociais que têm. Talvez até infectem Tino e os outros membros do clã.
— Parece que todos vocês precisam ser corrigidos — eu disse com um sorriso forçado.
Nosso objetivo na viagem ganhou um novo propósito. Eu garantiria que esquecessem completamente o treinamento e descansassem. Eu os ensinaria a relaxar. Esse era o trabalho perfeito para mim, o mestre da preguiça. Esses caçadores estavam famintos demais por adrenalina.
Os olhos de Liz brilharam.
Não adianta me olhar assim, eu ainda vou impedir vocês. Não importa o quê. E não é um pouco estranho que você tenha sorrido quando mencionei "corrigir" vocês?
Tino estava tremendo.
Não se preocupe, eu vou te proteger.
— Como eu disse antes, isso é uma viagem de férias. Vocês estão todos proibidos de treinar.
Liz levantou a mão.
— Ei, o que conta como treinamento? Onde o exercício físico se encaixa?
— Isso também está proibido.
— Correr?
— Também.
— Ok, ok, mas e se eu vestir roupas pesadas?
— Também não pode.
Por favor, parem de tentar encontrar brechas nas minhas regras.
— Mmm, e uma luta leve? Isso conta como treinamento?
— O uso de poções entra como treinamento? — Até Sitri entrou na onda.
Eu já disse que isso é uma viagem de férias e sim, conta. Tudo conta. Vamos aproveitar essas férias. Vamos relaxar.
— Qualquer coisa que vocês façam para ficarem mais fortes conta como treinamento.
— Hã?! E os métodos de respiração? E de caminhada? E se for algo que eu faço inconscientemente? — Liz continuou.
— Pensar em táticas conta como treinamento? E dar ordens ou sintetizar poções? — Sitri perguntou.
Fiquei um pouco incomodado com o quão preocupadas elas estavam.
Vocês estão apegados demais ao treinamento diário. O que vocês querem dizer com "táticas", afinal?
— Sim, tudo isso é treinamento e, portanto, proibido.
As duas irmãs ficaram de coração partido. Eu pigarreei. Isso deveria ser uma viagem divertida, mas nesse ritmo eu estava colocando a carroça na frente dos bois.
— B-bem, eu permito se vocês realmente não conseguirem se controlar...
— Você é o melhor! — Liz gritou.
— De fato. Pode ser suportável para Lizzy e para mim, mas pode ser um desafio para a T — Sitri disse.
— Mestre, muito obrigada.
Eu não sabia por que Tino estava me agradecendo. Olhei para o largo sorriso de Liz, para as lágrimas de Tino e para a expressão preocupada de Sitri e simplesmente desisti. Era um mau hábito meu.
Mas se eu recuasse aqui, nada mudaria, então fechei os olhos e, mesmo com dor no coração, continuei com minha próxima regra.
— Próximo: estou proibindo comportamento violento.
— Ok, e se for um chute leve, tipo, beeem leve? Isso conta? — Liz perguntou. — E dar uma lição em canalhas convencidos? E socar a T durante o treinamento?
— Conta como comportamento violento se for em legítima defesa? — Sitri disse. — Por exemplo, e se for para usar autoridade para esmagar oposição? E quanto ao uso de poções?
— Os Testes do Mestre... — Tino murmurou. — São muito piores que simples violência.
Tudo isso está proibido.
Fazer exceções arruinaria o propósito da regra. Além disso, eu não via como a violência era necessária para uma viagem de férias. As palavras de Tino foram como uma facada no peito. Eu tinha que fazer tudo que pudesse para recuperar minha glória como mestre dela.
— E, por fim, a coisa mais importante: vocês devem se divertir.
Não importa as circunstâncias que nos trouxeram aqui, saímos da capital e seria um desperdício não aproveitar isso.
Assim que nos encontrássemos com o resto dos Grieving Souls, eu não precisaria mais me preocupar com proteção. Já fazia um tempo desde que o grupo todo tinha saído junto. Eu esperava alguns percalços pelo caminho, mas tinha certeza de que teríamos boas férias.
Liz e Sitri sorriram, mas Tino parecia um tanto inquieta.
***
A chuva não dava sinais de trégua.
No entanto, não encontramos nenhum monstro. Quando chegamos à primeira cidade, estávamos algumas horas atrasados.
A cidade se chamava Elan. Comparada à capital, era bem pequena e servia mais como um ponto de parada no caminho. Ainda assim, deveria haver um bom número de pessoas alinhadas do lado de fora do portão, mas, talvez por causa do tempo, não vimos uma alma viva.
Saí da carruagem e estiquei meus membros e o corpo rígido enquanto apreciava a sensação de pisar no chão firme pela primeira vez em algumas horas. Ainda era de dia, mas nuvens escuras ocultavam o sol.
— Que tempo horrível...
Ter tanta precipitação fora da estação chuvosa... Bem, eu não chamaria isso de mau presságio. No entanto, depois de ficarem sentados na chuva todo esse tempo, os capangas contratados por Sitri pareciam estar no limite da exaustão.
Somente Matadinho e Drink pareciam totalmente indiferentes. Talvez tenham gostado de correr na chuva, porque ambos pareciam completamente à vontade. Também descobri que o saco de papel de Matadinho era aparentemente à prova d’água.
— Krai, você percebeu que tivemos o vento a nosso favor o tempo todo? — perguntou Sitri ao sair da carruagem.
Eu não fazia ideia do que ela queria dizer com isso. Algo assim não parecia possível, mas, de qualquer forma, eu não me importava com a direção do vento. Claro que não percebi.
— Oh? Que bom.
Minha primeira preocupação eram os cavalos, que estavam encharcados e exaustos. Achei que deveríamos passar a noite nessa cidade e deixá-los descansar. Não estávamos sendo perseguidos por ninguém, nem tínhamos pressa.
— Aah, isso estava me incomodando. A chuva não parava de cair — disse Liz, batendo as mãos alegremente. — Essa tempestade tá seguindo a gente. Assim que chegamos na cidade, o vento parou.
Fiz algo para merecer isso?!
Terminamos a papelada e fomos autorizados a entrar na cidade. Houve um pequeno alvoroço com a entrada de Matadinho e Drink, mas aparentemente tínhamos uma licença para trazer monstros conosco. Normalmente, essa licença era concedida a Domadores de Monstros, mas a meticulosidade de Sitri não conhecia limites.
Os prédios eram menores e as ruas menos movimentadas, mas, além disso, Elan não parecia tão diferente da capital. Exceto pelo fato de que esta não era a capital. Ninguém nesta cidade sem nome sabia quem eu era.
Eu não tinha nada contra Zebrudia, mas tinha laços demais com a capital. Todo mundo naquela cidade me observava, esperando por uma oportunidade para me atingir. Lembrei-me daquela vez em que me envolvi nos assuntos do Arty só por caminhar na rua.
Mas agora eu estava em uma cidade onde pouquíssimas pessoas poderiam me reconhecer. Além disso, como estava chovendo, eu usava um capuz que escondia meu rosto; minhas chances de ser notado eram praticamente nulas. Esse pensamento me fez sentir um peso saindo dos ombros.
Pensando racionalmente, não havia como aquela tempestade estar nos seguindo. Foi apenas um caso simples de azar. Mesmo se eu fosse atingido por um raio, sabia que poderia aguentar vários impactos, já que Kris havia carregado meus Anéis de Segurança.
Respirei fundo e me deixei levar pela empolgação com as férias que estavam por vir.
Sou um homem livre!
De repente, Liz começou a girar em círculos sem motivo aparente. Sem tropeçar em nada, ela perdeu o equilíbrio e caiu para frente. Ela aterrissou em uma poça e espirrou água nas minhas pernas. Não era algo comum de se ver. Será que ela estava passando mal? Olhei para ela com as sobrancelhas franzidas.
— He he he, foi mal — disse ela com um sorriso sem graça. — Esqueci como se anda sem ficar em alerta. Faz anos que não ando assim.
— V-Você não anda assim há anos?
Não era exatamente o que eu esperava, mas deixei esses pensamentos de lado. Só queria que ela aproveitasse as férias e relaxasse, mas se eu dissesse para apenas ser ela mesma, ela voltaria a ser a máquina de destruição ambulante de sempre. Liz só tinha um modo: aceleração total. Eu faria ela aguentar essas férias e depois compensaria de alguma forma.
Apesar do tom atrapalhado, Liz entrelaçou as mãos atrás das costas e me deu um sorriso radiante.
— Mas isso é algo novo. Acho que é meio divertido?
Não respondi.
É bom encontrar alegria em tudo que se faz. Talvez eu devesse aprender com o exemplo dela.
Eu observava Matadinho, que ofegava pesadamente enquanto segurava as rédeas de Drink, quando Sitri e Tino retornaram de sua tarefa. Os olhos rosa-claros de Sitri brilharam sob o capuz.
— Desculpe a demora — disse ela.
— Não se preocupe. Você tinha algo para resolver?
Pensei que devia ser algo importante para ela ter ido cuidar disso na chuva antes mesmo de termos garantido uma hospedagem.
Minha pergunta foi inocente, mas Sitri colocou uma mão sobre a boca e pareceu envergonhada.
— Não — disse ela. — Eu cortei minha conexão com minha rede de informações.
— Hã?
— Eu tinha arranjado um jeito de ser informada caso algo acontecesse, mas isso vai contra suas ordens, não é? Também cancelei qualquer pesquisa inicial sobre o senhorio. Ah, faz tanto tempo que não fico tão indefesa. Isso é um pouco emocionante. Será uma boa experiência.
Não conseguir se conter era algo que podia ser tanto uma força quanto uma fraqueza das irmãs. Eu queria apenas selar seus braços — suas ações — não seus olhos e ouvidos, mas era difícil dizer isso quando eu mesmo dei a ordem.
Aja normalmente. Normalmente.
Liz assobiou.
— Hmm, você não tá de brincadeira, Siddy — disse ela, olhando para mim. — Ei, Krai Baby, talvez eu devesse amarrar as pernas ou algo assim?
— Você não precisa amarrar as pernas...
Isso não é um jogo onde você se dá desvantagens por conta própria. Tudo que estou pedindo é que passem um tempo descansando.
Parecia que apenas Tino tinha entendido o conceito de férias. Olhei para ela e a vi se encolhendo atrás de Sitri, mas, devido à diferença de altura entre elas, não conseguia se esconder completamente. Isso foi um choque depois da deferência que ela vinha demonstrando nos últimos dias.
Talvez ela ainda não tenha superado o incidente com a máscara... Não se preocupe, Tino. Uma Relíquia é apenas uma ferramenta, e com prática, você deve conseguir controlá-la. Mesmo que perca o controle, Liz ou Sitri irão detê-la, então não tenha medo...
— Krai, o que faremos sobre a hospedagem? — perguntou Sitri. — Já que tecnicamente são férias, acho que deveríamos encontrar um lugar de um nível apropriado...
— Dá pra conseguir um lugar sem reserva antecipada? Aposto que tem um monte de gente presa aqui por causa da chuva.
— Tenho certeza de que sim, se usarmos seu nome — respondeu ela com um sorriso discreto, sem nem precisar pensar no assunto.
Eu me perguntava que valor poderia ser atribuído a um nome como o meu, mas pensar nisso só me deixava triste. Na capital, caçadores de alto nível recebiam tratamento preferencial. Raramente tirava vantagem disso porque me fazia sentir mal, mas Sitri tinha um ponto: mencionar meu nível talvez me permitisse conseguir um ou dois quartos.
Mas eu não podia fazer isso. Eu estava de férias porque estava fugindo das minhas responsabilidades.
— Nem pensar — murmurei. — Estamos em uma viagem agora. Pense assim, no momento, não somos caçadores.
Não aceitaríamos missões, não entraríamos em batalhas e nem trabalharíamos. Se alguém na rua perguntasse se eu era o Mil Truques, eu planejava dizer que estavam enganados. Também não faríamos nenhum treinamento. Era isso que significava estar de férias.
— Isso soa muito revigorante. Que ideia maravilhosa — disse Sitri.
Mesmo achando que estava dizendo uma bobagem, Sitri aprovou sem hesitação.
Você vai acabar se estragando desse jeito. Não, eu que devia me desculpar. Alguém me coloca no meu lugar, por favor.
— Ah, então vamos esconder nossas verdadeiras identidades. Isso parece tão divertido! Vai ser como se estivéssemos disfarçados! O que acha, T? — Liz disse.
— E-eu não consigo compreender as verdadeiras intenções do Mestre — disse Tino.
— Você tem que colocar mais energia nisso. Depois podemos contar vantagem para o Luke.
Foi então que tive uma terrível premonição: não havia ninguém nesse grupo que me daria sua opinião sincera. Se eu caísse em um buraco, todos aqui cairiam junto comigo. Eu deveria pelo menos ter trazido a Eva.
O certo seria simplesmente assumir a responsabilidade por minhas ações e pisar com cuidado, mas eu não seria o único afetado por isso. Uma sensação indescritível de pavor tomou conta de mim.
— Eu entendi suas intenções, Krai. Deixe os arranjos comigo — disse Sitri, segurando minha mão.
***
Talvez a antecipação fosse pior do que qualquer coisa que pudesse vir depois.
Mesmo depois de seu comportamento vergonhoso, o Mestre de Tino e as irmãs Smart não agiram de forma diferente com ela. Era possível que estivessem apenas sendo gentis, mas Tino achava difícil acreditar nisso. Caçadores de tesouros precisavam ser fortes tanto física quanto mentalmente, e seu Mestre e as irmãs Smart estavam fortalecendo-a nesses dois aspectos.
Tino temera por sua vida quando foi forçada a correr na tempestade e ser atingida por um raio. No entanto, vendo como Liz e Sitri não demonstravam preocupação, agora ela apenas se sentia envergonhada por perceber o quanto ainda precisava aprender.
As palavras de seu Mestre valiam mais para ela do que qualquer quantidade de ouro, mas também eram algo a se temer. Cada um de seus Testes até agora havia sido uma enxurrada infernal de adversidades. Por outro lado, Tino estava feliz por ter encarado a morte e sobrevivido para contar a história, e treinava diariamente com essa mesma determinação.
No entanto, esse Teste era diferente de qualquer outro até então. Era um tipo de treino onde ela deveria deixar de lado as habilidades que desenvolveu arduamente e se colocar na posição de alguém fraco.
Inicialmente, não compreendia o objetivo disso, mas percebeu ao observar Lizzy e Siddy. Ela não sabia o que aconteceria nessa viagem, mas conseguia dizer que não seria nada bom. O que poderia ser uma viagem de férias para o mais forte da capital, um Nível 8, certamente seria um campo minado para ela.
Agora, ela entraria indefesa em desafios que mal conseguia superar com vida. Não estaria apenas arriscando sua vida, estaria jogando-a fora. Era um Teste sem precedentes e perigoso.
Naturalmente, as irmãs Smart entendiam melhor as palavras de Krai do que Tino. Então por que não havia nenhum sinal de preocupação em seus rostos? Era algo que Tino não conseguia compreender. As duas irmãs não estavam acostumadas a se deixarem indefesas, e isso se refletia em cada um de seus movimentos, mas Tino via até isso como algo admirável.
Com certeza, essa devia ser a diferença que a experiência faz. Tino não poderia esperar emulá-las. Tornara-se algo natural para ela estar sempre atenta ao ambiente, não fazer barulho ao andar e estar preparada para o combate a qualquer momento. Jogar isso fora significaria abandonar tudo o que construiu até agora.
A humilhação que sentiu quando Lizzy a arrastou para a carruagem desapareceu sem deixar vestígios agora que esse novo Teste estava diante dela. Aquilo não era um simples treinamento de combate, era um refinamento da alma. Era para que sua alma pudesse ser tão fluida e tranquila quanto a água, para que pudesse manter a calma mesmo nas piores situações.
Tino não conseguira conter as emoções inflamadas pela máscara e se isolara em seu quarto após ser tomada pela vergonha que veio depois. Para alguém capaz de falhas como essa, esse Teste seria muito mais cruel do que ser atingida por um raio.
Então, ficou completamente perplexa ao lembrar da atitude habitual de seu Mestre. Ela conferiu mais uma vez e, sem dúvida, ele estava indefeso. Mais até do que Lizzy ou Sitri. Não apenas isso, ela se lembrou de que ele ficava indefeso em qualquer situação, por mais perigosa que fosse. Que tipo de espírito ousado era necessário para se expor ao perigo tantas vezes com tanta calma?
Tino sentiu um medo indescritível.
De repente, seu Mestre se virou para ela, e ela endireitou a postura.
— Sinto muito por Liz ter forçado você a vir junto — ele disse.
— Não pense nisso, Mestre — ela respondeu. — Mas... eu sou um fardo?
Tino ainda era insuficiente. Sem contar os três sacrifícios óbvios que Siddy trouxera, ela era de longe a mais fraca das quatro pessoas na viagem. Faltava-lhe experiência, força, tudo. Provavelmente ficava até abaixo de Matadinho.
Mas ela tinha fé de que seu Mestre a ajudaria caso enfrentasse um perigo certo.
Ela estava preocupada por ser um fardo. Estava tanto assustada quanto nervosa com esse novo Teste. Teve que lutar contra esses pensamentos ao perguntar se era um peso para eles, mas seu Mestre infalível olhou para ela com surpresa.
— Claro que não, eu esperava que você viesse conosco — disse ele. — Afinal, a Liz está sempre pegando pesado com você.
Seu sorriso suave fez Tino estremecer quase instintivamente. Ela se sentia em dívida com seu mestre e gostava muito dele, mas isso não significava que sempre ficava feliz em aceitar seus exaustivos Testes.
Ela via apenas boa vontade nos olhos dele, e isso tornava tudo ainda mais aterrorizante. Era com as melhores intenções que ele a submetia aos Testes, que a levava para essas férias inesperadas e a colocava em perigo mortal.
Certa vez, ele disse que faria uma viagem e acabou matando um dragão. Outra vez, disse que ia ver flores e chegou no momento exato em que um cofre do tesouro apareceu. Seu senso comum era completamente diferente do de Tino.
Ela pretendia não se deixar levar tão facilmente, mas isso não deu certo.
— Mestre, que bom ouvir isso — disse ela, fungando. Um tom suplicante entrou em sua voz. — Eu estou no meu limite com o treinamento da Lizzy.
Tino achava tanto seu mestre quanto Lizzy pessoas incríveis. Ela não reclamava dos Testes porque eles não apenas os impunham, mas também participavam deles. Lizzy fazia isso com prazer, e Tino achava isso inacreditável.
No entanto, havia uma coisa que precisava dizer: tudo isso era demais para ela.
— Sim, uh-huh. É por isso que quero que você abra suas asas desta vez — ele disse.
— Que maravilha! — Liz interrompeu. — T, você está tendo uma chance de redenção! Vamos, tenta parecer um pouco mais feliz com isso, você está sendo rude com o Krai Baby.
O que exatamente seu mestre queria dela? Enquanto Tino se perguntava sobre isso, a voz estridente de Liz parecia distante.
***
Liderados por Sitri, caminhamos por cerca de meia hora por ruas secundárias até chegarmos a uma casinha aconchegante.
Não era nada luxuoso, mas estava longe de ser precária. Não havia placa com nome, e era o tipo de prédio discreto que você esqueceria assim que olhasse para outro lado. Muros cercavam a propriedade, e o portão de metal estava bem fechado.
Sitri puxou um molho de chaves tilintantes, todas muito parecidas, e sem hesitar escolheu uma antes de enfiá-la na fechadura.
— Preparei este lugar porque tinha certeza de que um dia seria útil para você — disse ela.
— Olha só você, se rebaixando a mentir só para ganhar pontos — disse Liz. — Não tem nenhum orgulho?
— Ah, cale a boca, Lizzy, não é como se você estivesse ajudando!
A chave girou com um clique.
— É uma base para emergências — explicou Sitri enquanto abria o portão. — Ninguém além de mim sabe da existência deste lugar. Se existe um lugar melhor para você se esconder, hmmm, eu não consigo imaginar.
— Uma base? Ou uma casa de férias? E você comprou isso, Sitri? — perguntei.
— De fato. Nunca se sabe o que pode acontecer nos dias de hoje.
O que diabos você tinha em mente?
Isso era muito mais do que eu esperaria. Era uma casa pequena, mas robusta. Havia até um jardim. Não parecia que ela estava alugando, o que significava que devia ter investido uma boa quantia nisso. Eu mesmo estava considerando mudar nossa base de operações quando nos aposentássemos, mas Sitri estava em um nível completamente diferente.
— Veja bem, por mais que você tente evitar, ficar em uma hospedaria sempre deixará algum tipo de rastro — disse Sitri.
Me perguntei que tipo de perseguidores ela estava esperando. Tive minhas dúvidas, mas elas simplesmente desapareceram quando vi o sorriso radiante de Sitri. Eu estava bem, só precisava não fazer nada de errado que pudesse fazer alguém vir atrás de mim.
— Se quiser, posso preparar um novo registro de família — disse ela. — Já tenho vários prontos.
— Não, está tudo bem.
— Se você diz...
Sitri pareceu um pouco decepcionada, mas eu não ia mudar meu registro de família só para matar aula. Eu nem tinha certeza se isso era legal.
Liz franziu os lábios e puxou minha manga.
— Ei, Krai Baby, preparar um esconderijo conta como violência? Se não conta, então isso está muito a favor da Sitri.
— Não conta como violência. Nem como criar problemas para alguém.
— Mas cria problemas para mim? Isso conta como treinamento?
— Não conta.
Foi então que percebi algo: eu não tinha muito dinheiro. Não sabia quanto tempo essa "férias" durariam, então precisava economizar onde pudesse.
A casa devia estar há muito tempo sem uso, pois tinha aquele cheiro característico de um prédio abandonado. A chuva batia suavemente no telhado. Meus olhos percorreram o cômodo. Havia um hall de entrada e uma sala de estar. Uma cozinha, banheiro e dois quartos, cada um com duas camas.
Não parecia um lugar habitado, mas tinha o mínimo necessário. O teto baixo fazia com que Matadinho ficasse apertado, e Drink nem conseguia entrar na casa. Ele ficou no jardim.
Não parecia haver espaço suficiente para os empregados de Sitri, então ela os mandou para outro lugar. Quatro pessoas já eram mais do que suficientes para um espaço desse tamanho. Não era luxuoso, mas era perfeitamente habitável.
O nível de preparação para um esconderijo que talvez nem fosse usado era um reflexo perfeito do perfeccionismo de Sitri.
Sitri colocou sua bolsa no chão e tirou o capuz.
— A casa está abastecida com comida — disse ela com um sorriso. — É tudo comida de longa conservação, então o sabor pode não ser dos melhores.
Bem, isso não era tão ruim. Não era o que eu tinha em mente, mas era uma boa forma de passar as férias.
Ficar em uma hospedagem luxuosa era bom, mas havia algo emocionante em dormir em uma casinha. Isso não teria sido possível se tivéssemos trazido outros membros do clã. Fugir da nossa rotina diária não era tão ruim quando não envolvia perigo.
A palavra "esconderijo" (embora não fosse realmente escondido, era mais uma casa de férias) tinha um ar romântico. Além disso, havia camas, o que tornava tudo muito melhor do que passar a noite na carruagem.
Até Liz parecia estar se divertindo enquanto batia nas paredes.
Espera, por que ela está fazendo isso?
— Siddy, isso parece uma casa comum. As paredes são resistentes?
— Lizzy, esse tipo de coisa foi proibido pelo Krai, lembra? Agora elas são reforçadas, então deve ser preciso mais do que uma arma comum para quebrá-las...
— Ah! D-Desculpa, Krai Baby. Não foi de propósito. É só um hábito.
Liz rapidamente abaixou a cabeça, mas eu não estava bravo com ela nem nada. Eu não queria tornar as coisas mais difíceis para elas, só queria que tivessem umas férias tranquilas.
— Estou bem confiante de que tudo o que é essencial está em ordem — disse Sitri.
— Mandou bem. Mas me irrita pensar que você fez tudo isso e eu nunca soube.
Talvez seguindo seus instintos de Ladina, Liz começou a cantarolar enquanto revistava a casa. Eu resolvi aceitar a sugestão de Sitri, tirei meu casaco e me joguei no sofá. Nossa viagem só tinha começado e eu ainda não tinha feito nada, mas, de alguma forma, já sentia uma sensação satisfatória de exaustão. Soltei um bocejo enquanto Sitri fervia água e começava a preparar o chá.
Se eu fosse um deus, estaria considerando punir Krai Andrey divinamente neste exato momento.
— Mestre, sua guarda está completamente baixa. Eu não esperava menos — disse Tino.
— É, aham.
Eu não conseguia dizer se ela estava me elogiando ou me zoando.
Liz soltou um assobio baixo enquanto mexia em uma estante de livros. Ela pressionou levemente a mão contra o fundo da estante, e uma das paredes deslizou para o lado sem fazer barulho. Nele, surgiram fileiras e mais fileiras de armas organizadas. Espadas longas, adagas, cajados, pistolas, bestas. Não havia nada grande como uma alabarda ou uma lança, mas ainda assim parecia algo saído de uma loja de armas. A iluminação brilhante do cômodo refletia nas lâminas polidas.
Eu acabei de entrar numa loja de armas?
Havia também uma prateleira cheia de frascos contendo líquidos de todas as cores do arco-íris. O contraste entre os frascos e o cômodo simples era chocante.
— Lizzy, ninguém te deu permissão pra mexer nisso! — disse Sitri.
— Hmmm. O que temos aqui? Um agente paralisante e uma poção do sono? E um... afrodisíaco? Pra que você pretendia usar isso, hein?
— Para com isso! Eu tenho minhas próprias precauções a tomar! Eu planejava explicar tudo pro Krai depois.
Parece que essa não é uma casa de férias normal.
Do chão ao teto, Liz não hesitou em tocar em tudo, e Sitri gritava com ela o tempo todo. Mesmo em um cômodo que parecia normal à primeira vista, uma Ladina conseguia encontrar camadas de segredos. Ao levantar o tapete, encontrou uma porta para um porão, e escondidos entre os temperos do armário da cozinha havia vários venenos. O nível de preparação de Sitri me impressionava mais do que me surpreendia.
Será que todos os Caçadores são assim...?
— Olha, Krai Baby! A Siddy guarda roupas íntimas bem... picantes no esconderijo dela! Então, Siddy, por que isso tá aqui? É uma necessidade? Você pretende usar pra sedução, é isso? — disse Liz, mexendo em uma cômoda.
— Para com isso! Isso não é da sua conta!
Liz ignorou as reclamações de Sitri e segurou um pedaço de tecido preto com um sorriso vitorioso, que foi quase abafado por um grito agudo de Sitri. Como sempre, eu fingi que não percebi nada. Tino parecia bastante confusa, mas esse tipo de brincadeira era normal entre essas irmãs.
Responder a Liz só a incentivaria, então, num ato de misericórdia para Sitri, eu a ignorei.
Roupas íntimas picantes, hein?
— Tino, tem algum lugar que você queira ir? — perguntei, principalmente para tentar desviar minha mente da briga das irmãs.
Nossas férias não tinham um destino específico e eu queria fazer algo legal por ela, já que ela sempre acabava se dando mal. Seus ombros se sobressaltaram e ela tentou esconder a confusão.
— Ah, hum, qualquer lugar que for mais fácil — respondeu.
— Fácil? Como assim? A gente não tá planejando ir pra lugar nenhum difícil.
Ela não estava sendo muito específica. Talvez quisesse ir tomar sorvete. Não entendi por que ela respondeu com uma palavra como "fácil".
— U-Um lugar que não seja muito perigoso... — disse ela, tão baixo que precisei forçar os ouvidos para ouvir.
— Já te falei, não vamos pra nenhum lugar perigoso. Eu já tentei te levar pra algum lugar perigoso antes?
Tino soltou um gemido abafado.
Tentei tranquilizá-la em termos claros, mas, por algum motivo, parecia que ela ia desmoronar. Sua garganta branca subia e descia, e seus lábios estavam tão apertados que parecia que ela segurava as lágrimas. Parecia que ela não acreditava em mim nem um pouco. Considerando tudo, talvez eu merecesse, mas isso não significava que eu gostasse.
Ofereci um lugar no sofá à minha frente. Ela sentou-se com cautela e colocou as mãos nos joelhos.
— Tino, já disse antes, mas isso aqui são férias. Você pode relaxar. Aquela coisa com a Toca do Lobo Branco foi só um errinho meu.
— Só... um errinho?
— Desculpa. Um errão. Um erro gigantesco. O que aconteceu naquela vez foi completamente fora das minhas expectativas.
Cedi ao olhar marejado de Tino. Já nem me importava mais com minha dignidade como mestre dela. Eu não achava que ela me perdoaria só porque eu não esperava que tudo aquilo acontecesse, mas o que importava era a honestidade. E o futuro.
— A máscara também. Se você não quiser, não precisa usar. Eu prometo. Mas tenho certeza de que você saberia aproveitá-la bem.
Quando Tino usava a máscara, não parecia nada com a transformação de Éclair que Ark descreveu. Ela parecia envergonhada com o que havia acontecido, mas, em comparação, achei que ela estava relativamente estável. Mas se ela não queria usar a máscara, tudo bem.
— Eu disse naquela época, mas quando você usou a máscara, virou a Mad Tino.
Seus sentimentos haviam sido intensificados. Seu senso de lealdade se amplificou e ela se tornou mais assertiva. Só isso.
Parecia que eu havia trazido de volta lembranças ruins, pois um tom de carmim tingiu suas bochechas. Achei que, se a fizesse lembrar daquele evento ainda mais, ela se recusaria a usar a máscara para sempre, então voltei ao assunto inicial.
— Desta vez, não haverá absolutamente nenhum perigo. Nem sequer lutaremos. Pelo menos, você e eu não.
Isso acabou sendo uma frase carregada.
Com a minha sorte abismal, não havia como garantir que não seríamos arrastados para algum tipo de conflito. Mas, aconteça o que acontecer, tínhamos Liz e Sitri ao nosso lado, além de Matadinho e o Drink já adulto.
— Mestre...
Tino me chamou, mas as lágrimas em seus olhos ainda não haviam desaparecido. Me perguntei o que eu havia feito para que ela nunca mais acreditasse em mim. Tinha algumas suspeitas, mas juro que nunca coloquei Tino em perigo de propósito. Foi por ela que tentei colocar a máscara nela lá na carruagem!
— Eu juro. Não importa o que aconteça, ficaremos de lado. Nunca foi minha intenção colocar você em perigo. Certo—
— Se algo acontecer, eu vou te proteger.
Em desespero, agi totalmente fora do meu normal, e então minha visão ficou branca. Ao mesmo tempo, um trovão sacudiu a casa, me fazendo pular.
Isso foi um trovão? Parecia muito perto. Tenho certeza de que foi só um trovão?
A casa em si não foi atingida, mas o impacto ainda me deixou tonto. Pensei que era um péssimo timing, já que eu tinha acabado de dizer algo legal, mas então refleti e percebi que, na verdade, era bem embaraçoso. Talvez aquele trovão tivesse vindo a calhar.
— Hã?! Como assim você e o Krai Baby estão dividindo um quarto?! Qualquer um pode ver que isso não faz sentido! — gritou Liz.
— Esta casa é minha casa e a T é sua aprendiz! — Sitri rebateu. — A menos que você esteja planejando entregá-la para mim?
— Pode ficar com ela, então o Krai Baby será todo meu! Isso me parece justo! Agora fique longe dele para sempre!
Fiquei impressionado com a capacidade delas de continuar brigando como se um trovão ensurdecedor não tivesse acabado de explodir um momento antes. Além disso, se tínhamos dois quartos, não poderíamos simplesmente nos dividir por gênero? Parecia que era hora de eu intervir na discussão; sempre eram os espectadores que se machucavam nos conflitos delas.
Estava prestes a chamá-las, mas percebi que Tino estava agindo de forma estranha. Ainda havia lágrimas em seus olhos, mas ela não estava mais encolhida como antes. Estava me olhando com uma expressão vazia. Não parecia que o trovão a incomodou. Ela já havia treinado deixando-se ser atingida por raios, então não parecia traumatizada com isso.
Então suas bochechas coraram.
— Mestre...
— Não me diga que ouviu tudo isso?
Ela assentiu. Ela ouviu minha voz mesmo com todo aquele barulho. Que criaturas aterrorizantes os caçadores podiam ser. Não era grande coisa que ela tivesse me ouvido, mas isso não mudava o fato de que ainda era embaraçoso. Na verdade, não era a primeira vez que Tino me via agir de forma pouco impressionante. Pensando bem, a ideia de ser protegida por alguém como eu talvez fosse ainda mais constrangedora para ela.
— Bem, estou falando mais no sentido sentimental — falei. — Você pode não precisar da minha proteção, mas eu a ofereço, só por precaução. Desculpe se isso te deixou desconfortável, pode simplesmente esquecer que eu disse qualquer coisa.
— Não, eu sou grata, Mestre. E me desculpe.
Tino abaixou a cabeça e enxugou as lágrimas com a manga. Quando olhou para cima novamente, não restava uma única gota. Seus olhos ainda estavam um pouco avermelhados, mas agora carregavam a força inabalável de uma caçadora solo.
— Não precisa mais se preocupar, Mestre — disse ela, levantando-se e cerrando o punho. — Aconteça o que acontecer, tenho certeza de que não vou perder. Ainda sou fraca e inexperiente, mas vou superar! Só assista! Que venham os raios!
Não entendi direito, mas ela parecia bem empolgada. Liz e Sitri pararam de discutir e olharam para Tino, mas ela não se importou nem um pouco. Estava com os lábios cerrados e um olhar determinado. Agora sim parecia alguém em quem eu podia confiar.
Bom, isso é ótimo—espera. Eu disse que nada perigoso iria acontecer. Você sequer estava me ouvindo? Tudo o que eu disse foi em vão? O que posso fazer para te fazer acreditar em mim?
Eu não tinha muito espaço para reclamar, mas ainda doía o fato de ela ter tão pouca fé em mim. Fiquei sentado de ombros caídos e então, como se zombando de tudo o que eu tinha acabado de dizer, uma sirene de alerta começou a soar.
Eu só quero me aposentar.
Bebi o fino chá preto da Sitri e desviei o olhar da realidade. O concerto de trovões e a sirene de alerta pareciam não ter fim.
O vermelho havia sumido das bochechas de Tino e agora estavam um pouco rígidas. Ela não parecia estar com raiva de mim, apenas olhava desconfortável para a janela. Um raio brilhou e eu engoli mais chá.
Já estava bem acostumado com tempestades. Afinal, eu me deparava com elas não importava onde fosse. No entanto, ainda era raro ouvir uma sirene de alerta tocar por tanto tempo em uma área residencial.
Zebrudia era um lugar relativamente seguro. Cidades acima de um certo tamanho eram protegidas contra monstros e criminosos por cavaleiros enviados pelo país ou pelo senhor da região. Elan, é claro, não era exceção. Na terra sagrada da caça ao tesouro, as ordens de cavaleiros frequentemente tinham um ou dois ex-caçadores em suas fileiras. Isso era o suficiente para lidar com os problemas do dia a dia.
Então eu tinha que me perguntar: o que estava fazendo a sirene continuar tocando sem parar? Não achava que a tempestade era motivo suficiente para que tocasse por tanto tempo. Parecia seguro assumir que algo grande havia acontecido.
Soltei um grande bocejo e cruzei as pernas.
— Sitri, tem algum petisco?
— Ah, tem sim! Tenho uns chocolates que acho que você vai gostar!
Sitri pegou uma tigela e a encheu com chocolates embrulhados em papéis brilhantes de todas as cores. Pareciam importados de algum país industrioso. Fiz de tudo para ignorar a sirene e desembrulhei um chocolate.
— Mestre — Tino disse timidamente. — Tem certeza disso?
A sirene? Não tem nada a ver comigo.
Ninguém me pediu para fazer nada, e mesmo que pedissem, eu tinha o direito de recusar. Manter a ordem na cidade nem era o trabalho principal de um caçador, nosso foco era saquear cofres de tesouro. Isso era coisa para os cavaleiros, era para isso que recebiam o dinheiro dos contribuintes. Eu não queria que as pessoas viessem até mim com qualquer problema só porque eu era Nível 8.
Tino estava inquieta, então acenei para ela se aproximar e lhe ofereci um chocolate já desembrulhado.
— Não se preocupe, eu já esperava por isso — disse com um sorriso tranquilizador. — Eu prometi que não haveria batalhas nessas férias, não prometi?
Eu estava acostumado a me envolver em confusões e essa não era a primeira vez que ouvia uma sirene. Eu sabia que o melhor a fazer nessas situações era simplesmente ficar parado. Normalmente, alguém aparecia e resolvia tudo. Mesmo dentro do nosso clã, eu tinha certeza de que era um dos melhores em ficar quieto.
Provavelmente, um caçador de primeira linha ouviria a sirene e correria para ajudar, mas não havia nada que eu pudesse fazer para ser útil. Eu só atrapalharia, então preferi ficar para trás.
— Com certeza há alguém na cidade mais adequado para essa tarefa do que eu — expliquei.
— O quêêê?! A gente não vai ver o que tá rolando? — Liz perguntou com uma voz melosa, inclinando-se para frente.
— Não vamos. Você esqueceu nosso objetivo, Liz?
— Objetivo?
— Isso são férias. FÉ-RI-AS!
Não tinha como ela ter esquecido depois da minha explicação detalhada. O amor dela por confusão simplesmente ultrapassava os limites de um ser humano normal. Eu não ia tropeçar logo nos primeiros passos fora da capital. Se eu enfiasse meu nariz nesse problema, poderia acabar me entregando. Se alguém viesse até nós e fizesse um pedido direto, eu seria obrigado a responder como mestre do clã Primeiros Passos, e isso era algo que eu precisava evitar.
— Sitri, ninguém sabe que estamos aqui, certo? — perguntei.
— Mas é claro. Nem informei a Associação dos Exploradores — ela respondeu. — Nós nos registramos nos portões da cidade, então talvez alguém desconfie que estamos por aqui, mas ainda assim, não saberiam sobre este esconderijo.
Diferente de mim, Sitri não era uma tola. Parecia que eu não precisava me preocupar com Tino se metendo em algo, afinal.
— Vamos ficar nessa casa até as coisas lá fora se acalmarem. Tem comida aqui?
— Temos o suficiente para durar confortavelmente um mês. Para outros recursos...
Um mês inteiro, hein? Isso é bastante. Na verdade, é mais do que o suficiente. Será que a Sitri está se preparando para resistir a um cerco?
— Tino, entendo sua preocupação — falei. — Mas o melhor a fazer nessas situações é manter a calma. Já disse, mas não vamos nos envolver em nenhuma batalha. Esse não é o nosso lugar. A sirene vai parar logo, então sente-se.
— Humm. Então o Mestre já previa isso também, não é?
Não achei que Tino fosse do tipo que quisesse enfiar a cabeça em problemas de qualquer jeito. Ela me olhou com uma confiança infundada e sentou-se no sofá.
— Isso aí. Liz, você também. Senta aí. Absolutamente ninguém sai dessa casa.
O problema não era alguém obediente como a Tino, e sim a Liz. Ela era a que queria se meter em encrenca a qualquer custo. Ela era a que imediatamente esquecia tudo o que eu acabava de dizer. Ela era a que se jogava no perigo como um brinquedo de mola quebrado. E, por algum motivo, a culpa era sempre minha.
— Hein? Ah, qual é... — Liz resmungou.
Ainda assim, fez o que eu mandei e se sentou ao meu lado. Segurei firme em seu pulso. Ela soltou um guincho e se encostou em mim. Acalmei-a passando a mão pelo seu cabelo.
Eu estava determinado a garantir que essas férias acontecessem sem incidentes. E então, eu me gabaria para os outros membros do clã quando voltássemos para casa. Se tudo corresse bem, talvez Tino voltasse a ter um mínimo de fé em mim.
***
Era impressionante. Exatamente o tipo de coisa que se esperaria da liderança de um caçador Nível 7. Eles corriam pela estrada apesar da chuva e da escuridão—duas condições que a maioria dos caçadores preferia evitar.
Não transparecia em sua expressão, mas Chloe estava profundamente impressionada ao ver o Nevoeiro Caído enfrentando monstros noturnos como se não fosse nada. A retaguarda, Redemoinho Escaldante, nem chegava a ter a chance de ajudar. Raramente precisavam parar a carruagem. Desde o começo, ela sabia que Arnold não era fraco, mas agora entendia por que ele era conhecido como um campeão.
O resto do seu grupo também era bastante habilidoso. A noite estava tempestuosa, a visibilidade era mínima, e mesmo assim, eles se moviam silenciosamente e não deixavam um único monstro se aproximar. Mesmo na terra sagrada dos caçadores, não havia muitos tão ferozes quanto eles.
Um dos membros do Nevoeiro Caído permaneceu na carruagem como guarda.
— Em Nebulanubes, nossa terra natal, tínhamos que trabalhar com baixa visibilidade o tempo todo — disse ele com um sorriso.
— Entendo — respondeu Chloe. — Ouvi dizer que as condições lá são bem severas.
— Os monstros também eram mais fortes do que os que encontramos por aqui. Mas, suponho que em Zebrudia eles apareçam em maior número.
As peculiaridades de um ambiente afetavam muito seus monstros. Um ambiente hostil geraria criaturas mais resistentes. Fazia sentido para Chloe que essas mesmas condições impedissem que a população crescesse demais.
O Nevoeiro Caído exterminava monstros sem o menor esforço. O Relâmpago Estrondoso nem precisava intervir, pois o restante do Nevoeiro Caído já dava conta do recado.
Chloe sabia o que Arnold queria. Ele estava se controlando, mas depois de observar muitos caçadores, ela podia perceber que ele ainda tinha contas a acertar com o Mil Truques.
Deixar seu grupo acompanhá-lo não era o ideal, mas era o melhor que ele podia fazer. No Nível 7, um caçador tinha poucas razões para obedecer à Associação dos Exploradores. Talvez alguém como o gerente da filial pudesse fazer algo a respeito, mas Chloe, por si só, não tinha muito poder para detê-lo. Ela nem mesmo tinha autoridade para intervir antes que ele fizesse qualquer coisa. Por isso, sua melhor opção era deixá-lo começar sua luta bem diante de seus olhos; ele provavelmente não faria nada extremo enquanto fosse observado por uma funcionária da Associação.
O que era ainda pior, existia a possibilidade de que a astúcia infinita do Mil Truques o tivesse feito antecipar tal evento.
— Isso porque há inúmeros cofres de tesouro aqui em Zebrudia — disse Chloe. — Incluindo alguns de alto nível, bem diferentes de qualquer coisa em Nebulanubes.
— Mmm, de fato. Tivemos alguns obstáculos pelo caminho, mas não existe cofre que não possamos conquistar. Estou ansioso para ver o que o império tem reservado para nós.
Relâmpagos iluminaram o céu. Não havia nenhum traço de incerteza no rosto do homem iluminado pela luz. Na verdade, até havia alguma incerteza, mas sua confiança era muito maior. Confiança em si mesmo, em seu líder e no restante do grupo. Ele conhecia o medo, mas seguia em frente mesmo assim — a mentalidade ideal de um caçador.
Krai, o que diabos você fez para deixar essas pessoas tão furiosas? Chloe se perguntou. Devia ter sido algo bem sério para eles estarem caçando ele no meio da tempestade.
— Ainda assim parece que tem um monte de monstros perambulando por aqui hoje. E eu não vejo um único cadáver. Será que o Mil Truques está mesmo em Elan?
— Não tem como chegar ao Condado de Gladis sem passar por Elan, e duvido que ele tenha forçado tanto a carruagem debaixo dessa chuva. Lembre-se, estamos tentando nos encontrar com ele também.
O homem deu uma resposta ambígua.
Chloe tinha quase certeza da localização de Krai. O número de monstros e a ausência de corpos ainda a incomodavam, mas ela também estava com pressa. Não ia começar a mentir agora.
O trovão ribombou mais uma vez e Rhuda olhou pela janela com uma expressão melancólica.
***
Eles chegaram a Elan já tarde da noite. A chuva havia se intensificado, e relâmpagos cortavam as nuvens densas. A viagem teria sido muito mais exaustiva sem o Névoa Caída , que já estava acostumado a combates em condições climáticas adversas. Uma voz subitamente ecoou da carruagem da frente.
— Ei, tem algo pegando fogo!
Chloe esticou o pescoço para fora da janela e viu que as muralhas de Elan estavam em chamas. As chamas se apagavam com a chuva, mas fios finos de fumaça ainda subiam pelo ar. Relâmpagos continuavam a cair em rápida sucessão, lascando as pedras encantadas das muralhas. O barulho da comoção chegava até as carruagens. Os cavalos, bem treinados, relincharam inquietos.
Chloe sentiu uma presença forte de mana; aquilo claramente não era um fenômeno natural. Assim que chegaram ao portão, ela saltou da carruagem para averiguar a situação.
A Associação dos Exploradores não era administrada pelo império, mas mantinha uma relação estreita com ele. Quando surgiam problemas com monstros e fantasmas, a Associação enviava caçadores para lidar com eles. Mas, mais do que isso, Chloe simplesmente sentia que não podia ignorar a situação.
A cidade era um caos de gritos e barulho, mas até uma jovem podia exigir atenção se carregasse o emblema da Associação. Ela e os caçadores que a acompanhavam foram rapidamente autorizados a entrar pelos portões, e a informação que receberam era algo que jamais poderiam ter imaginado.
— Hã? Um elemental de raio? Aqui?
Chloe se esqueceu de todo o tumulto ao redor e ficou imóvel, chocada. A pessoa que lhe passara a informação tinha a expressão de quem estava no meio de um pesadelo. Até Arnold ficou surpreso.
Um elemental de raio era um dos tipos de elementais, seres sobrenaturais considerados fenômenos naturais com vontade própria. Eles raramente apareciam perto de assentamentos humanos e não eram conhecidos por ataques aleatórios. Eram incrivelmente poderosos, sendo que até os mais fracos já eram nível 6. E mesmo entre os elementais mais formidáveis, os de raio estavam em um patamar à parte.
Normalmente, um elemental de raio jamais apareceria em uma cidade tão populosa. Era possível que estivesse seguindo as ordens de um mago, mas, em toda Zebrudia, havia pouquíssimos que poderiam controlar um elemental superior.
Chloe começou a se perguntar o que poderia ter causado um desastre desses, mas logo mudou o foco. Independentemente da razão, o fato era que a cidade estava sendo atacada, e ela não podia simplesmente ficar parada sem fazer nada. Um elemental de raio estava muito além da capacidade dos cavaleiros estacionados em Elan. Mesmo os melhores caçadores da cidade teriam dificuldades para derrotá-lo.
Para vencer, para expulsar um elemental superior, era necessário um campeão. E, por sorte, um campeão que já havia derrotado outra besta mítica que controlava relâmpagos, o Dragão Trovejante, estava bem ali. Chloe não perdeu tempo e se virou para Arnold e seu grupo.
— Posso contar com sua ajuda, Relâmpago Devastador?
A menção daquele título fez os cavaleiros e oficiais da cidade prestarem atenção imediatamente. Um elemental de raio seria um inimigo terrível até para um caçador nível 7, mas, com todos os olhares voltados para ele, Arnold assentiu.
***
Uma noite passada sob a pressão da incerteza e do medo deu lugar a uma manhã de céu azul, a tempestade do dia anterior desaparecendo sem deixar rastros. Sentindo-me revigorado, sentei-me na cama e olhei pela janela.
A paz havia voltado à região. A sirene tinha parado e ninguém mais estava gritando.
Viu? O que eu disse? Tudo se resolveu sem que precisássemos fazer nada!
Olhei, aliviado, para a cama ao lado. Estava vazia. O esconderijo da Sitri tinha dois quartos, cada um com duas camas, e, no fim, nos organizamos por gênero. Eu não ligava muito para isso, mas não importava com quem eu dividisse o quarto, sempre teria alguém descontente. Até me ofereci para dormir no sofá, mas essa ideia foi rejeitada na hora.
Liz tinha o péssimo hábito de se enfiar na minha cama, mas, com a Sitri por perto, não precisei me preocupar com isso. Matadinho, por sinal, estava lá fora. Aparentemente, ele tinha sido feito para operar mesmo em condições adversas. Como criatura mágica, estava no mesmo nível do Drink.
Bocejei e vesti as roupas que Sitri havia lavado para mim. A casa era tão confortável que parecia um desperdício usá-la como um esconderijo. O banheiro era grande, e, com as habilidades refinadas da Sitri, até as refeições eram deliciosas. Para falar a verdade, o lugar era mais luxuoso do que uma estalagem. Todo o cansaço acumulado durante a viagem sob a chuva havia sumido.
Saí do quarto e entrei na sala de estar, onde fui recebido por Tino em trajes casuais.
— Bom dia, Mestre — disse ela.
— Bom dia — respondi. — O que aconteceu? Você está com olheiras.
Eu tinha dormido muito bem, mas não parecia que o mesmo podia ser dito de Tino. Ela não estava cambaleando e sua voz parecia normal, mas seu rosto mostrava sinais de um cansaço profundo.
— Teve dificuldade para dormir?
— Um pouco. Eu deveria dormir no sofá, mas fiquei preocupada com o que estava acontecendo lá fora. Tudo porque ainda sou uma novata.
Sua fala estava um pouco travada. Eu me perguntei se ela não poderia ter pedido uma cama emprestada, mas lembrei que Liz não era do tipo que dividia a cama com sua aprendiz, e dividir com Sitri parecia uma opção perigosa. Talvez eu devesse ter pensado mais sobre isso antes de dormir.
No entanto, caçadores eram treinados para dormir a qualquer hora e em qualquer lugar (essa era minha maior habilidade), e eu não achei que o barulho lá fora estivesse tão ruim assim.
— Estou bem, Mestre — disse Tino. — Sou uma caçadora, uma noite sem dormir não é o suficiente para me atrapalhar.
— Bom saber...
Tino não era uma criança, ela entendia melhor do que qualquer um como estava se sentindo.
Dependendo da situação lá fora, eu pretendia ficar dentro de casa, mas parecia que o problema já havia sido resolvido.
Tomamos um café da manhã preparado por Sitri, nos arrumamos e saímos do esconderijo. Com as figuras anormais de Matadinho e Drink nos seguindo e nossos rostos escondidos sob os capuzes, caminhamos pela rua principal. Fragmentos de conversa sobre o dia anterior chegavam até nossos ouvidos. Comerciantes, caçadores, cavaleiros, cidadãos, todos comentavam sobre o ocorrido.
— Um elemental de raio — disse Sitri, arregalando os olhos. — Por que um elemental superior apareceria por aqui?
— Um elemental de raio?! Aaaah, queria tanto ter lutado contra ele. Essa era a chance de testarmos nossa nova resistência, não é, T?
— Hã?! Ah, s-sim, Lizzy.
Por algum motivo, Tino me olhava com os olhos marejados.
Foi apenas uma coincidência. Foi Liz quem a fez passar por aquele treinamento e fui eu quem impediu que nos envolvêssemos. No fim, tudo foi resolvido sem a nossa intervenção.
Elementais eram aglomerados sencientes de energia e um dos oponentes mais problemáticos que um caçador poderia enfrentar. Eles nem sempre eram hostis aos humanos, mas possuíam força e resistência muito acima dos caçadores de alto nível, e alguns tinham poder suficiente para destruir um país.
Eram seres sobrenaturais capazes de manipular fenômenos naturais, uma característica que os fazia ser confundidos com deuses em algumas partes do mundo. Magos utilizavam os poderes dos elementais, mas esses estavam entre os feitiços mais difíceis de se dominar.
Normalmente, elementais viviam na natureza. Como Sitri disse, era raro encontrar um em uma cidade populosa, mas isso explicaria a tempestade violenta e o zumbido que lembrava um ninho de abelhas.
— Talvez o para-raios líquido tenha sido forte demais? Ele não deveria ter durado tanto...
Siddy murmurou umas coisas absurdas, mas eu fingi que não ouvi. Felizmente, ninguém morreu por causa do elemental e eu não queria contar a ninguém sobre a poção de qualquer jeito. Mas eu estava muito feliz por ter impedido Liz de se envolver. Elementais não eram algo com que eu queria lidar.
Soltei um suspiro de alívio e segui em direção ao portão da cidade, apenas para encontrar a resistente barreira transformada em escombros. Parei e encarei. Pelos tijolos espalhados, crateras queimadas e manchas de sangue, dava para imaginar o quão horrível tinha sido a noite passada. A maioria das casas próximas aos portões também estava gravemente danificada. Com os portões destruídos, os soldados corriam tentando manter a ordem.
Ainda bem que ignoramos a sirene. Mesmo uma simples comunicação se tornava difícil ao lutar contra um elemental; eu provavelmente teria virado pó.
Eu estava apenas aliviado por o elemental ter sido derrotado, mas Sitri teve uma impressão bem diferente da situação.
— Para um elemental de raio atacar e deixar tantos danos... Alguém deve ter se esforçado muito — disse ela.
De fato, elementais de raio podiam voar, então portões não os impediam de entrar. Elan era uma cidade razoavelmente grande, mas não contava com soldados capazes de repelir uma ameaça dessas.
Um dos soldados que controlavam a multidão pareceu ouvir Sitri.
— Isso mesmo — disse ele, orgulhoso. — Não estávamos preparados para lidar com um ataque repentino de um elemental, mas um caçador de alto nível apareceu na hora e nos ajudou. Foi uma luta brutal, mas o elemental foi expulso em segurança. Graças a esse caçador enviado pelos deuses, poucas pessoas se feriram.
Um caçador capaz de enfrentar um elemental de raio. Deve ser alguém incrível. Quem será? Se um dia o encontrarmos, terei que agradecê-lo.
***
Um confronto feroz contra um elemental de raio. Foi a pior noite na carreira de Arnold como caçador. A batalha contra o Dragão do Trovão havia sido intensa, mas eles estavam bem preparados e mentalmente focados. Já o combate contra o elemental ocorreu de repente, sem qualquer informação prévia.
O grupo Névoa Caida nunca havia enfrentado um elemental antes. Não tinham conhecimento sobre a criatura. Não estavam preparados. Nem sequer tinham força bruta suficiente. A única sorte deles foi que se tratava de um elemental de raio; para enfrentar o Dragão do Trovão, todos haviam treinado resistência elétrica. Ainda assim, foi um milagre conseguirem expulsar o elemental antes que alguém sofresse ferimentos graves.
Como agradecimento, haviam sido alojados na melhor pousada da cidade, mas isso não era muita compensação pelo risco que correram na batalha.
Na espaçosa sala de estar, todos estavam parados como cadáveres. Devem ter dormido mal, pois muitos tinham os olhos vermelhos ou estavam completamente sem energia. As expressões variavam, mas todos tinham algo em comum: faltava-lhes a ambição que todo caçador deveria ter.
As queimaduras e ferimentos graves haviam sido curados com poções e magia, mas o cansaço mental não era tão fácil de resolver. Ele não estava tão mal quanto os outros, mas nem mesmo Arnold havia se recuperado completamente após uma noite de descanso. Ainda conseguia se mover, mas estava longe de estar no seu melhor.
Além disso, consumiram uma quantidade considerável de suprimentos e seus equipamentos precisavam de manutenção. Seus itens de defesa haviam sido duramente castigados, e algumas peças precisariam ser substituídas por completo.
— Assim como na nossa terra natal, dizem que é raro elementais aparecerem perto de assentamentos humanos em Zebrudia — disse Eigh, com uma expressão de puro esgotamento. — Não dava pra ter mais azar que isso.
— Mas tínhamos que ajudar.
O elemental do relâmpago era forte o suficiente para não ser um inimigo fácil, nem mesmo para Arnold. Mesmo um grupo como o dele raramente encontrava uma criatura dessas.
Ele destruiu as barreiras com uma enxurrada de raios e, com um único ataque, incapacitou metade dos cavaleiros que haviam chegado. Voava em alta velocidade, tornando flechas e magias quase inúteis. No tempo que levou para expulsá-lo, tudo nos arredores dos portões virou ruína.
Foi graças a Arnold e ao resto do grupo que a situação não piorou. Se tivessem chegado algumas horas depois, o elemental poderia ter avançado ainda mais na cidade, causando danos fatais a Elan inteira. Era um milagre que ninguém tivesse morrido naquela confusão.
Chloe estava lá. Uma multidão estava lá. Quando a Associação dos Exploradores fazia um pedido, não era fácil recusar. Mas, mais do que isso, algumas coisas simplesmente eram esperadas de um caçador de primeira categoria.
— Bem, não foi de todo ruim. Não era nosso plano, mas isso ajudou a espalhar o nome do Névoa Caída — disse Eigh.
— Hmmm.
— Além disso, agora as pessoas sabem que somos capazes de enfrentar um elemental superior. E fizemos isso sem ferimentos graves. Eu chamaria isso de sucesso.
Arnold bufou. Caçadores precisavam saber manter o pensamento positivo.
Elementais eram como fenômenos naturais. Não tinham o mesmo poder destrutivo de um dragão, mas nada era mais difícil de deter do que um elemental. Além disso, eram tão raros quanto — ou até mais raros — do que os próprios dragões. Elementais do relâmpago eram tão incomuns que, para encontrar um, era necessário procurar fundo em regiões selvagens, longe de qualquer civilização.
Mas o que mais incomodava Arnold não era isso. Era o comportamento de alguém.
— Por que o Mil Truques não apareceu?! Ele não é um dos nível 8 de Zebrudia?!
Elementais superiores eram extremamente poderosos. Não eram o tipo de inimigo que um caçador comum, muito menos um cavaleiro, poderia enfrentar. Apenas um mago de elite ou um caçador de primeira categoria, com vasta quantidade de mana material, poderia vencer um. Pessoas assim não moravam em lugares como Elan. Se o Névoa Caída não tivesse aparecido, os moradores estariam completamente indefesos. E era por isso que Arnold não conseguia entender por que Krai Andrey não tinha aparecido durante o caos.
Os outros membros começaram a opinar.
— Talvez ele tenha ficado com medo do elemental? Nós só conseguimos lidar com isso porque já enfrentamos o Dragão do Trovão.
— Parece que eles também não passaram pela Associação dos Exploradores. Será que nem perceberam o elemental?
— Mas como não teriam ouvido a sirene?
— Pela fama deles, você pensaria que lidariam com o elemental imediatamente.
Eigh parecia imerso em pensamentos. Ele conhecia as façanhas dos Grieving Souls e do Mil Truques. Com base na trajetória deles, conseguia imaginá-los: heróicos, mas também perspicazes, exterminando hordas de espectros, conquistando cofres do tesouro, enfrentando missões difíceis — um verdadeiro modelo de caçadores. Considerando que ele conteve a Névoa Caída com um único feitiço, era difícil acreditar que o Mil Truques recuaria diante de um elemental do relâmpago.
Mais do que qualquer coisa, ele não conseguia imaginar aquele homem, sempre com seu sorriso vago, entrando em pânico diante de um elemental do relâmpago.
O resto do Névoa Caida continuava discutindo, e Eigh acenou com a cabeça. Ele chegou a uma conclusão.
— Não sabemos exatamente onde ele está, mas o nome dele está no registro de entrada, então temos certeza de que está na cidade. Chloe também está procurando por ele. Lembrem-se, isso aqui é pequeno comparado à capital. Ele não vai conseguir se esconder por muito tempo.
Arnold permaneceu em silêncio.
Eigh estava certo. Desde o início, tinham a vantagem nessa caçada. O Névoa Caída não era exatamente especialista em rastrear pessoas, mas seu alvo nem estava fugindo. Mesmo que fosse coincidência, também tinham Chloe para guiá-los, e ela sabia para onde o Mil Truques estava indo. Era só questão de tempo até que o encontrassem.
Arnold lutou contra a fadiga do corpo e olhou para seus companheiros.
— Reabasteçam nossos suprimentos e fiquem prontos para o combate — ordenou.
— Pedi aos sentinelas para impedirem o Mil Truques caso ele tente sair — disse Eigh. — Se ele tentar partir, saberemos. O prefeito de Elan quer nos parabenizar pela vitória. O que devemos dizer?
— Não temos tempo para receber parabéns.
— Muito verdade.
Normalmente, seria o certo a se fazer, mas Arnold e os outros tinham algo que tomava prioridade sobre qualquer outra coisa.
— E quanto aos reparos nos equipamentos? — perguntou Eigh. — Vai levar tempo, e nem seria possível numa cidade pequena como essa. Felizmente, nossas armas não estão tão ruins. Seria um retrocesso, mas talvez devêssemos apenas substituir a armadura, se estiver danificada?
— Muito bem. Nossas armas serão o suficiente. Não precisaremos das mesmas defesas que usamos contra o elemental.
Afinal, o poder ofensivo de Arnold servia como uma defesa melhor do que a maioria das armaduras.
— O Mil Truques está bem na nossa frente. Assim que o esmagarmos, teremos um bom descanso.
Eigh assentiu levemente, como sempre.
— Urgh, não consegui dormir nada... — disse Rhuda.
— Nem eu — concordou Gilbert, com olheiras profundas.
Rhuda havia acabado de alcançar o Nível 4. Para ela, a batalha da noite anterior contra o elemental de relâmpago tinha sido ainda mais desgastante do que sua experiência no Covil do Lobo Branco. Ela e os outros caçadores intermediários naturalmente foram designados para funções de apoio e não enfrentaram diretamente o elemental. No entanto, um simples contato com a criatura era suficiente para derrubar qualquer um, e eles acabaram forçando seus corpos ao extremo com toda a correria.
O resto do Redemoinho Escaldante também não parecia nada bem ao sair dos quartos, se arrastando como se tivessem sido atropelados.
— Eu sabia que não devíamos ter aceitado essa missão — reclamou um deles.
Rhuda se lembrou de algo que Tino havia dito uma vez.
Mestre é um deus. Mestre não vira as costas para problemas nem para aqueles em necessidade. Se você seguir o problema até a fonte, encontrará o Mestre. Entende?
Na época, Rhuda não tinha entendido, mas, dadas as circunstâncias, parecia que talvez Tino realmente estivesse falando sério. Afinal, um elemental de relâmpago era uma entidade divina que raramente aparecia em áreas povoadas por humanos. Se algum dia ela fosse encontrar um, pensava que seria em um futuro distante.
— E ele nem deu as caras — disse Gilbert, com a voz cansada, mas mantendo sua postura habitual.
— Pois é...
Muito provavelmente, Rhuda e Gilbert estavam pensando na mesma coisa. No Covil do Lobo Branco, Krai só apareceu quando eles já tinham certeza de que iriam morrer. Agora, eles tinham Névoa Caída como aliada, mas a situação era assustadoramente semelhante.
Os Mil Julgamentos. Era assim que isso era chamado. Rhuda queria acreditar que nem mesmo Krai exporia civis ao perigo, mas no passado ele já tinha demonstrado estar mais do que disposto a colocar a vida dela e dos outros caçadores em risco.
Mestre é um deus.
As palavras ecoaram na mente de Rhuda. Mas ela sabia que os deuses dos mitos eram, em sua maioria, canalhas que pouco se importavam com a vida dos humanos fracos.
É isso mesmo, pensou Rhuda. Ouvi dizer que Tino está acompanhando Krai na viagem. Será que está indo bem para ela?
— Será que o velho está bem? — perguntou Gilbert, com um tom de preocupação genuína.
— Eu queria que tivéssemos trazido ele com a gente. Mas ele provavelmente não teria ficado muito feliz com isso...
Rhuda suspirou ao pensar em Greg, o único do grupo que conseguiu escapar dessa enrascada.
***
— O quê? Ele já foi embora?!
Arnold ficou tenso.
— De fato — respondeu Chloe, com uma expressão amarga. — Investiguei e parece que ele partiu logo após o amanhecer.
— Logo depois do amanhecer?!
— Por que ele sairia tão cedo?!
Eigh franziu a testa. Rhuda e os outros ficaram boquiabertos.
— Não sei — respondeu Chloe. — Não há indícios de que ele tenha passado na filial local da Associação dos Exploradores.
O elemental de relâmpago havia sido repelido pouco antes do amanhecer. Só para garantir, eles permaneceram em alerta e se moveram para um local melhor para tratar seus ferimentos depois do amanhecer. Depois de tudo isso, Chloe pediu ao sentinela que detivesse o Mil Truques caso ele tentasse partir. Mas parece que Krai já tinha ido embora antes mesmo de ela fazer o pedido.
Ela não podia culpar o sentinela por não saber que sua solicitação havia sido tardia; todos estavam ocupados lidando com o caos causado pelo elemental, e os caçadores não tinham sido os únicos combatentes.
A revelação pegou Chloe de surpresa. Mesmo que Krai estivesse com pressa, ela não conseguia entender por que ele teria saído logo depois do amanhecer. Caçadores eram treinados para perceber sinais de perigo e desastre. Ela não conseguia imaginar um caçador de alto nível ignorando completamente o tumulto causado pelo ataque do elemental.
Mais do que isso, era bizarro que ele não tivesse aparecido durante a batalha. Chloe considerava que um ataque de uma criatura tão poderosa era algo que um Nível 8 deveria estar na linha de frente resolvendo. Mas ele não estava. Mesmo estando na cidade, ele não participou da luta.
Então, Chloe percebeu algo: era quase como se Krai soubesse que outro caçador de alto nível resolveria o problema. Ela olhou para os caçadores exaustos. Estava apenas delirando.
A batalha contra o elemental tinha sido tão exaustiva que era quase estranho ter terminado sem baixas. Não importava o quão inteligente o Mil Truques fosse, não era possível que ele previsse com exatidão o momento da chegada de Arnold e companhia. Porém, Chloe também sabia que muitas das façanhas de Krai desafiavam os limites da compreensão humana.
Ele era imensamente poderoso, mas justamente por isso raramente se envolvia pessoalmente. Ele usava sua quase clarividência para treinar seus companheiros e transformar os Primeiros Passos em um dos melhores clãs que existiam. A situação atual lembrava muito um de seus Desafios, exceto que os sujeitos eram Névoa Caída, uma rival e potencial inimiga—
— Ah, isso mesmo, o sentinela me disse— Ah.
Tudo parecia tão confuso para Chloe que as palavras simplesmente escaparam de sua boca.
— O que foi?
Droga, pensou Chloe. Fiz isso antes e fiz de novo agora.
Ela conseguiu se conter rapidamente, mas não rápido o suficiente. Arnold lançou-lhe um olhar intimidador. O que ela ouviu do sentinela provavelmente só serviria para inflamar ainda mais a fúria de Arnold, e manter boas relações entre caçadores também era parte do trabalho da Associação dos Exploradores.
— Chloe, você não me parece o tipo de garota que mentiria — disse Eigh, exasperado.
— Fala logo — ordenou Arnold.
Ela sentiu seu rosto corar. Uma mentira meia-boca não enganaria um caçador de alto nível. Além disso, Arnold provavelmente já tinha uma boa ideia do que o sentinela havia dito.
Chloe aceitou seu destino e disse, num fio de voz:
— Ele está impressionado.
— O quê? Repete — disse Arnold, a voz trêmula.
Por que Krai sempre tem que ser tão provocador?! pensou Chloe.
Grieving Souls já havia exterminado todo tipo de elemental antes. Mesmo sem sua equipe completa, deveriam ser capazes de lidar com um elemental de relâmpago. Eles deveriam ter aparecido assim que o alarme soou.
— Ele disse que está muito impressionado. O fato de termos conseguido repelir o elemental sem baixas foi realmente algo especial! — respondeu Chloe, a própria voz trêmula.
O rosto de Arnold se contorceu. Sua expressão demoníaca fez Rhuda soltar um pequeno grito.
O que Krai disse era claramente condescendente. Não era um insulto direto, mas, dadas as circunstâncias, sua intenção era óbvia. Onde quer que estivesse na cidade, seria impossível que ele não tivesse ouvido o alarme, mas ele o ignorou e depois elogiou Arnold. Não era difícil entender o que isso significava—o Mil Truques deliberadamente escolheu não intervir.
Ele provavelmente assistiu à batalha de longe, como um pai observando um filho, pronto para intervir apenas se houvesse risco de morte. Sua decisão de partir sem sequer perguntar sobre a luta fazia sentido se ele já a tivesse visto à distância.
A única coisa que Chloe ainda não entendia era por que ele ignorou um funcionário da Associação dos Exploradores.
Arnold se levantou; parecia ter chegado às mesmas conclusões que Chloe. Sua figura imponente não demonstrava um traço sequer do cansaço de antes.
— Vamos atrás dele. Ainda podemos alcançá-lo. Se preparem! Não vamos deixar ele fugir!
— Sim, senhor! Vamos nos aprontar imediatamente!
Eigh e alguns outros saíram correndo.
— Isso vale para todos vocês! Se demorarem, vamos levar só a Chloe, entenderam?!
— Muito bem. Vamos, pessoal. O próximo destino dele nessa rota deve ser Gula — disse Chloe.
Tradução: Carpeado
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