Nageki no Bourei wa Intai shitai | Let This Grieving Soul Retire Volume 03 – Capítulo 6 [A Verdadeira Vitória]
— Não acredito! — Liz lamentou. — Fui a seis lugares diferentes e não encontrei um único! Nada! Zero!
— É, bom... Essa época do ano é bem movimentada — eu disse.
— Fiquei em dúvida entre sair em uma expedição ou procurar uma recompensa. Mas levaria tempo para encontrar uma recompensa e converter o pagamento em dinheiro, e se eu fosse em uma expedição, talvez não chegasse a tempo para o leilão. Então, pensei que a melhor opção seria vender os itens que conseguimos de fantasmas e monstros para conseguir pelo menos um pouco mais para o nosso fundo!
— Aham...
Eu caminhava pela capital imperial com uma sorridente Liz e Sitri me acompanhando. O leilão já havia começado, e a cidade estava lotada de gente. Por um tempo, a capital ficaria barulhenta como em um festival. Barracas se alinhavam pela rua principal, algumas até realizavam pequenos leilões, imitando o leilão oficial que estava para acontecer. A Associação dos Exploradores estava sobrecarregada de pedidos, e essa era a época perfeita tanto para comerciantes quanto para caçadores ganharem dinheiro.
Minha mente estava ocupada com a Face Reversível os últimos dias, mas, ao me acalmar, percebi que várias outras Relíquias úteis seriam leiloadas também. Minha situação atual não me permitia disputar por elas, mas isso me dava uma leve sensação de solidão, como se não pudesse participar da festa. Liz estava toda animada, mas Sitri soltou um suspiro profundo.
— Você é tão inútil, Liz — Sitri resmungou. — Se pelo menos tivesse encontrado uma Relíquia cara, isso me deixaria mais tranquila.
— O quê?! — Liz protestou. — A culpa disso tudo é sua, pra começo de conversa! Por que todo mundo sabe sobre a Relíquia que o Krai Baby está atrás?!
Ah... Isso é culpa minha... Olhei para as duas irmãs discutindo e senti um peso na consciência, desviando o olhar em silêncio.
— Hm... Mesmo juntando todas as nossas economias, não chegamos a um bilhão de gild — Sitri disse.
— Bom, demos tudo de nós para conquistar aquele palácio, e nossas recompensas estão nas mãos do Luke — Liz fez um biquinho.
Nosso grupo tinha uma regra: se alguém tivesse que sair por qualquer motivo, salvo circunstâncias excepcionais, não poderia levar a recompensa dessas expedições. Se Liz ou Sitri tivessem conseguido pegar pelo menos uma parte desse dinheiro, o desfecho do leilão poderia ter sido diferente.
Sitri suspirou.
— Concordo. Foi só um azar de timing. Normalmente, eu conseguiria virar essa situação a nosso favor.
Ela fez tanto e ainda não está satisfeita? Pensei enquanto ela olhava para mim.
— Temos cerca de setenta por cento de chance de ganhar — ela disse. — Se você não tivesse dito não, acho que ainda poderíamos bolar alguns planos...
— Não — respondi firmemente. — Você já fez mais do que o suficiente, Sitri. Obrigado.
— Ah...
O canto de seus lábios se ergueu. Sitri era mais esperta que Liz, mas tinha a tendência infeliz de ir longe demais. Suponho que esse seja o destino de alguém competente.
— Já sei! Krai Baby, se você não conseguir essa Relíquia... — Liz disse com um sorriso confiante, apertando meu braço direito e encostando-se ao meu lado — eu vou roubá-la daquela pirralha de merda!
— Você sabe que está lidando com um nobre, né? — avisei.
Quer dizer, não é como se devesse roubar mesmo que não fosse um nobre. Roubar é crime.
— Hã? Isso é um problema? — ela perguntou. — Relaxa, aqueles cavaleiros acomodados não podem nem encostar em mim! Não vou perder pra eles!
— Liz, se fizer isso, o Krai vai se tornar o principal suspeito! — Sitri retrucou. — Se for fazer... Melhor que pareça um assalto ou algo assim.
— Parem com isso — eu disse.
Sério. Vocês não sabem quando é hora de pisar no freio? Presumi que estivessem brincando, mas algumas piadas têm gosto bem duvidoso.
O Leilão de Zebrudia acontecia em um teatro branco como giz, no centro da capital imperial. Esse local normalmente era usado para concertos e peças de teatro; o prédio de mármore polido reunia uma multidão de homens e mulheres de todas as idades. Quantos deles estavam planejando dar lances? Quantos tentariam nos superar? Tudo o que eu podia fazer agora era torcer por um leilão justo e divertido.
A entrada era dividida em três: uma para nobres, outra para caçadores e uma para o restante do público. Era óbvio que os nobres eram separados do resto, mas os caçadores também tinham um espaço próprio, já que certamente haveria problemas se fossem misturados ao público geral.
A taxa de entrada do leilão era cem mil gild. A entrada mais lotada e chamativa era a dos caçadores. Primeiro, porque suas aparências eram muito distintas. Por que alguém veio com uma armadura completa para o leilão? Alguns pareciam incrivelmente intimidadores, e por algum motivo, alguns até trouxeram suas armas.
Notei um grupo familiar entre a multidão. Havia um garoto jovem de cabelos vermelhos flamejantes, um velho assustador de cabelos castanho-escuros, uma Ladina de cabelos castanhos e a aprendiz da mulher que ainda estava grudada no meu braço direito.
Fazia tempo que os membros que foram lançados no Covil do Lobo Branco não se reuniam assim. Havia alguns rostos desconhecidos ao redor deles, mas eu jamais confundiria o rosto da Tino. Pensei em falar com Gilbert primeiro, mudei de ideia para Greg, considerei Rhuda e, por fim, decidi chamar a Tino.
— Ei, Tino! — chamei. — Vocês vieram comprar algo também?
— Mestre! Bom dia! — ela respondeu.
Os outros membros me notaram e deram um sorriso sem jeito. A Tino começou a andar com eles depois que formamos grupo juntos? De qualquer forma, fico feliz que ela tenha feito alguns novos amigos.
— Estou aqui para ver sua bravura com meus próprios olhos! — Tino disse. — Eu os vi tentando visitar o leilão, então pensei em acompanhá-los, só isso.
— Tino, você vira outra pessoa quando está perto do Mil Truques — Gilbert murmurou.
Tino lhe lançou um olhar de desprezo.
Por pura coincidência, eu me vi no centro desse furacão chamado leilão. O homem ao lado de Gilbert me olhou com interesse antes de começar a cochichar.
É... Isso está ficando desconfortável pra mim.
— Coragem à parte, se você ia ao leilão, deveria ter ido conosco — eu disse.
— Er... Bem, você não... me convidou — Tino respondeu.
Desculpa. Meu Deus, me desculpa mesmo. Ouvi dizer que você até emprestou um pouco do seu dinheiro pra gente. Sinto muito de verdade. Isso passou completamente batido. Mas se eu puder dar uma desculpa, er... Ah! Provavelmente é melhor que você tenha ido com Rhuda e os outros para evitar chamar atenção. Sinceramente, se pudesse, eu trocaria de lugar com você.
Percebi Rhuda me lançando olhares furiosos. Talvez ela tenha descoberto que Tino está me emprestando dinheiro.
— Ah, er... Isso é... — gaguejei.
Tino me encarava enquanto eu tentava encontrar as palavras certas. O que eu devia dizer? Eu poderia convidá-la agora, mas ela já está com eles e não ficaria à vontade com Liz e companhia ao lado. Foi então que tive uma grande ideia.
— Tino, se não se importar, que tal entrar no leilão no meu lugar? — sugeri.
— Hã? No seu lugar? — ela repetiu.
O Leilão de Zebrudia permitia o uso de um substituto. Isso era bem autoexplicativo, mas era uma política que permitia a participação de alguém no leilão em nome de outra pessoa. Nós assistiríamos ao evento, mas em vez de anunciar nossos lances, usaríamos sinais manuais únicos para que Tino fizesse os lances por nós.
A substituição era usada principalmente por aqueles que queriam ocultar suas identidades. Como já sabiam que eu estava atrás de um Rosto Reversível, isso pouco ajudaria a esconder minha identidade, mas ao menos me permitiria aproveitar mais o leilão. Tino arregalou os olhos em choque, enquanto Sitri estreitou os dela e assentiu.
— Entendo... — murmurou a Alquimista. — Não é uma ideia ruim. Embora eu não tenha certeza de como a jovem nobre reagiria a isso, talvez consigamos confundi-la. Pode ser que apenas alivie um pouco nossa ansiedade, mas tem certeza? Você não gostaria de dar lances no item que quer?
De fato, eu adorava leilões. A emoção de disputar ferozmente por um item e sair vitorioso era extremamente satisfatória. Mas achei que dessa vez deveria abrir mão desse privilégio.
— Participei do leilão no ano passado e no retrasado também — respondi. — Está um pouco caótico dessa vez. Ah, qual é, Liz, não faz essa cara de desânimo.
Liz parecia inquieta, provavelmente querendo ser minha substituta. Mas senti que ela estava agindo um pouco infantil.
— Certo... — Liz murmurou lentamente, antes de encarar a irmã. — Tsk, é bom que você vença, T.
— C-Certo! — Tino respondeu. — Deixa comigo, Mestre, Lizzy! Vou vencer esse leilão e conseguir o item! Pode contar comigo!
Ela fechou as mãos em punhos com determinação. Parece que ela está sentindo a pressão para ganhar, mas nossos fundos são limitados, então se ultrapassarmos o orçamento e perdermos, isso não será exatamente culpa dela.
Uma carruagem chegou à entrada dos nobres, ostentando o emblema familiar da Casa Gladis. Envolta em um vestido branco puro, Lady Éclair desceu e olhou ao redor. Quando finalmente me viu, lançou-me um olhar tão intenso que era difícil acreditar que se tratava de uma jovem garota. A expressão de surpresa que demonstrara quando negociamos com ela havia desaparecido por completo—um sinal claro de que ela havia reunido mais de duzentos milhões.
Sitri permaneceu composta, mas apertou minha mão. Quando olhei para ela, um sorriso estava estampado em seu rosto, mas percebi que ela tentava desesperadamente esconder sua ansiedade por trás daquela expressão animada. Perdemos essa?
***
O salão do leilão estava repleto de energia dos licitantes. Os assentos ao redor do grande palco central eram divididos em três setores. A maioria era destinada ao público em geral, incluindo comerciantes e pessoas ricas. Os caçadores de tesouros eram guiados a assentos um pouco mais isolados do restante, enquanto os nobres e outros VIPs tinham lugares especiais.
Os assentos dos caçadores eram os mais barulhentos. Qualquer um podia participar do Leilão de Zebrudia, contanto que pagasse a taxa de entrada, mas nenhum plebeu pagaria cem mil gilds apenas para assistir. Naturalmente, isso significava que muitos licitantes eram refinados e pertenciam à alta classe, mas essa regra não se aplicava aos caçadores de tesouros.
A taxa de entrada não era tão alta para os caçadores. A maioria vivia sem pensar no futuro, e o ambiente deles era completamente diferente do restante do público. Comida e bebida não eram permitidas no local, mas risadas escandalosas e gritos vulgares ecoavam por toda a sala.
Havia assentos em níveis elevados para garantir uma boa visão do palco. Nós fomos guiados para uma área mais alta do que a dos outros caçadores, permitindo-nos uma visão panorâmica de seus lugares.
— Hã?! — Liz rosnou, ameaçando imediatamente um caçador próximo. — Ei, seu bastardo! Você estava me olhando, não estava? De onde você é? Vou te dar cinco segundos. Fala logo!
— O-O quê?! — o pobre caçador respondeu.
— Ei, pode impedir ela por mim? — sussurrei para a calma Smart, cutucando-a.
Liz havia agarrado o braço de um homem corpulento, muito maior que ela, e o encarava com fúria ardente nos olhos. Ela era uma mulher pequena, e o homem que ameaçava era muito mais musculoso, mas ele rapidamente ficou pálido, seu braço rangendo nas articulações sob o aperto dela. Apesar da aparência frágil, ela era incrivelmente forte. Poderia facilmente quebrar um braço ou dois sem hesitação. O homem se contorcia tentando recuar, mas, talvez devido à diferença de força, percebeu que não conseguia se mover. Sitri, que antes parecia apenas uma espectadora inocente, se levantou para conter sua irmã encrenqueira.
— Liz, Krai disse para soltá-lo.
— Hã? De novo? — Liz resmungou. — Que tédio.
— Não é como se essas pessoas valessem a pena lutar contra, de qualquer forma. Anda, senta aí.
— Tch — Liz estalou a língua com irritação, soltando sua pobre vítima. — Cai fora, ouviu? Da próxima vez que aparecer com essa cara de merda, vou te socar até o inferno.
O ladino rapidamente fugiu com o rabo entre as pernas. Isso sim era o auge da sobrevivência do mais apto. A multidão ficou em silêncio por um momento ao ver Liz rugir para o ladino, mas logo voltou a ficar barulhenta. Trocas como essa eram ocorrências diárias. Eu quero parar de ser um caçador. Só quero ir para uma cidade distante, abrir uma confeitaria e viver o resto da minha vida em paz.
— Me desculpe, Krai — Sitri se desculpou. — A Liz é pequena, mas barulhenta.
Liz ouviu as palavras da irmã.
— Siddy, para de usar minha presença pra ganhar pontos com o Krai Baby! Foi porque você não se preparou direito que esses caras estranhos estão perto da gente. E além disso, que diabos? Quem te deu permissão pra sentar do lado dele? Não toca no Krai Baby! Você tem que ficar a um metro de distância dele o tempo todo!
— A culpa é sua porque você se atrasou! Você devia estar na frente, abrindo caminho pra gente! Faz seu trabalho. Sou eu que estou financiando isso, sabia...? Né, Krai?
— Hã?! E daí? Isso não importa, né, Krai Baby?
— Mhm, uh-huh — respondi. — Tenho certeza de que tem muito mais Relíquias no leilão... Olha só, Correntes do Leão. Urgh, mas correntes grandes ocupam muito espaço e nem são tão resistentes assim.
Cruzei as pernas enquanto folheava o catálogo que recebi ao entrar no evento. O nome, características, efeitos, vendedor e avaliador estavam todos listados de forma organizada para cada Relíquia. Havia até uma classificação de perigo e a localização da descoberta. Cada item do leilão era avaliado por um especialista, mas isso não significava que os itens leiloados eram definitivamente autênticos. Embora fossem raros, existiam casos de azar em que alguém comprava uma falsificação por um preço absurdo.
O leilão também era um lugar para avaliar itens e fazer contatos. Livros raros, artefatos, obras de arte e joias também estavam à venda, mas eu só me interessava por Relíquias. Este leilão anual fazia jus à sua reputação e oferecia muitas Relíquias interessantes. Eu vou juntar dinheiro pra poder participar direito no ano que vem. Juro que vou. Fui muito descuidado desta vez.
Lá embaixo, Tino conversava nervosamente com Greg e os outros. Mais distante, nos assentos nobres perto do teto, Lady Éclair estava sentada, parecendo igualmente ansiosa.
A Relíquia que estávamos almejando, que se tornou um grande assunto na capital, apareceria apenas na segunda metade do leilão, sendo tratada como um dos destaques do evento. Com a briga resolvida, Sitri sentou-se à minha esquerda, enquanto Liz se acomodou à minha direita. Finalmente as coisas estavam começando a se acalmar. O Leilão de Zebrudia, que vinha me preocupando há dias, finalmente havia começado.
***
O Leilão de Zebrudia era um evento simples. Cada item começava com um lance mínimo, e os participantes declaravam o quanto estavam dispostos a pagar. Cada item tinha um incremento mínimo no valor do lance, que geralmente era de cem mil gilds, um milhão de gilds ou dez milhões de gilds. Quando alguém oferecia o maior lance, o leiloeiro aguardava dois minutos. Se não houvesse mais ofertas, o item era vendido para o último comprador.
Uma vez que um item era vendido, não havia como cancelar a transação. Se, por qualquer motivo, o comprador não pudesse pagar o valor prometido, ele seria severamente punido por seu crime.
Havia várias formas de dar um lance. Você podia escrever um valor em uma placa e levantá-la no ar ou gritar o valor. Também era possível usar sinais de mão pré-determinados.
— Muito bem! Vendido por quinze milhões de gilds! O Escudo Espelhado vai para o Número 413! — anunciou o leiloeiro.
Um estrondoso aplauso ecoou pela sala. Como o nome sugeria, um escudo misterioso que lembrava um espelho foi levado para fora do palco. Conforme o leilão avançava, o fervor da multidão aumentava. Os participantes ficavam cada vez mais inquietos e ansiosos.
— O próximo item é o Número 15! — o leiloeiro anunciou. — Vindo da Era das Armas Mágicas, um item que supostamente pertencia a um clã de correntes e é conhecido como a Relíquia mais forte do tipo corrente para ataques...
Eu não pude evitar me inclinar para frente, empolgado. Eu estava animado. Hoje, eu só poderia dar lance em um único item, então as Relíquias que estavam sendo leiloadas agora eram apenas aperitivos, mas mesmo assim, fui contagiado pela disputa acirrada que se desenrolava. Meu coração batia acelerado de empolgação.
Por que essa Máscara Reversível está na segunda metade do leilão?! Se ela fosse leiloada primeiro, eu poderia usar o dinheiro restante para dar lances em outras Relíquias!
— Krai, seu rosto está vermelho — observou Sitri.
— Acho que você está imaginando coisas — respondi.
— Não se preocupe. Usarei qualquer meio necessário para conseguir esse item sem falhar. Juro pelo meu nome. Pode ficar tranquilo. Se nossos fundos não forem suficientes, não me importo em vender nossa casa.
Sitri cerrou o punho, completamente alheia aos meus pensamentos. Eu não estava em posição de pedir para usar parte dos nossos fundos para dar lance em outra Relíquia. Um arrependimento avassalador tomou conta de mim. Droga! Se ao menos eu tivesse guardado mais dinheiro! Não, se ao menos Luke e os outros voltassem logo... Espera... Isso mesmo! Eu tenho as economias da Lucia! Quase esqueci! Uh... Será que é certo um irmão mais velho usar o dinheiro da irmã mais nova...?
Bati o pé impacientemente enquanto via um item após o outro sendo leiloado diante dos meus olhos. Não sabia dizer se o momento era perfeito ou terrível, mas todos os itens eram Relíquias. Havia uma corrente e um anel com poderes misteriosos, uma capa que permitia respirar debaixo d’água e um par de botas que permitia ao usuário flutuar um centímetro no ar. Vi uma bola de cristal que podia prever o clima com setenta por cento de precisão e uma espada que podia encolher até trinta centímetros ou se estender até três metros. Eu quero isso. Eu quero isso desesperadamente.
Era raro que meu lado materialista se manifestasse tão abertamente, mas não conseguia evitar esses sentimentos que afloravam dentro de mim.
Eu não era um usuário de Relíquias; era apenas um colecionador. Mesmo que os itens fossem fracos ou inúteis, eu os queria para minha coleção. Essas preciosidades estavam sendo vendidas por uma pechincha. O destaque do leilão apareceria mais tarde, mas se eu tivesse dinheiro agora, teria dado um lance nessas Relíquias sem hesitação. Droga! Se eu tivesse conseguido comprar aquele Rosto Reversível por um preço baixo, poderia ter comprado todas as outras também! Vocês não compraram aquele item como investimento, certo? Vocês vão usá-los, não vão?! Eu os usaria! Eu os usaria com todo o cuidado, então, por favor, me deem eles. Quem liga para o Rosto Reversível, certo? Talvez devêssemos desistir, hein? Quantidade acima de qualidade?
Ver mercadores e caçadores aleatórios comprando Relíquias bem na minha frente era como sentir a dor de ver sua paixão sendo roubada sem poder fazer nada. Mas se eu desse um lance em algo aqui e perdesse o leilão do Rosto Reversível, eu não conseguiria encarar as pessoas que fizeram o possível para me trazer até aqui. Cerrei os punhos com tanta força que meus nós dos dedos ficaram brancos. Eu tinha que aguentar. Se eu me permitisse relaxar demais, acabaria gritando. Por que eu não sou podre de rico?! Droga! Esse é o meu limite?
Tino olhava para mim, esperando ansiosa pelo meu sinal. Eu já tinha dito a ela qual item eu estava de olho, mas ela sempre confirmava com cuidado, demonstrando sua natureza honesta. Infelizmente, essa qualidade dela estava jogando contra mim no momento. Eu podia ver nos olhos dela que ela estava me incentivando. — Mestre, tem certeza de que não precisa disso? Se você não comprar agora, nunca mais terá outra chance — estava estampado em seu rosto. Eu tinha certeza de que conseguia ouvir os pensamentos dela.
Isso era uma alucinação auditiva ou era real? Nunca fiquei tão desnorteado antes. Eu estava bem mais calmo quando fui cercado pelos cavaleiros-lobo no Covil do Lobo Branco ou quando o Sitri Slime sumiu. Minhas mãos não estavam apenas suadas—parecia que estavam completamente encharcadas. Meus dedos trêmulos ficaram dormentes enquanto eu mantinha o punho fechado. Meu coração batia como se eu tivesse acabado de correr uma maratona em velocidade máxima. Minha garganta estava seca, e eu ansiava por um gole d’água. Eu queria uma Relíquia em forma de cantil que fornecesse água ilimitada! Eu queria um anel que me impedisse de sentir sede! Alguém, por favor, me pare! Assuma o controle! Droga!
T-Tino está me mandando comprar essas Relíquias. Eu consigo ouvir os pensamentos dela! — Mestre, estou decepcionada com você por não conseguir comprar itens desse nível. Você é um fracasso como colecionador. — Eu consigo ouvi-la dizendo isso! Tem certeza? Eu realmente posso? Vale a pena decepcionar uma aprendiz? Passei a mão pelos cabelos, grudados de suor, enquanto encarava o palco. Minha hora de decidir havia chegado. O Rosto Reversível ainda aguardava sua vez. O objetivo deste leilão era superar os outros, mas, sem dúvida, meu maior adversário era eu mesmo. Não queria me gabar, mas tanto meu corpo quanto minha força mental eram bem frágeis. Tentei conter meus impulsos e engoli em seco. Fiquei tentado a fechar os olhos e tapar os ouvidos, mas senti que isso significaria admitir derrota.
— O que houve? Você está bem? — Liz me olhava com preocupação.
— S-Sim, estou — respondi.
Fechei os olhos e me repreendi. Eu sou inútil em combate, mas não achei que seria tão patético em situações como essa também. Espera. Eu sou fraco, um nada. Isso é verdade. Mas, justamente por ser tão fraco, eu não posso decepcionar aqueles que esperam algo de mim. Se eu cedesse aos meus desejos e participasse do leilão agora, como Matthis e Eva se sentiriam? Já causei problemas suficientes para eles. E os membros do meu clã, que me viram afundado em dívidas, o que pensariam? Provavelmente me veriam como alguém sem autocontrole, um fracasso como pessoa. E, bem, para ser honesto... eles não estariam errados. Acima de tudo, como Sitri e Liz se sentiriam? Se eu gastasse o dinheiro que eles reuniram com tanto esforço em outra Relíquia, será que eles diriam alguma coisa?
Depois de refletir por um momento, finalmente abri os olhos. Sim, acho que os Smarts me perdoariam sem dizer uma palavra. Já havíamos arrecadado bem mais de duzentos milhões, o valor que dissemos à Lady Éclair. Acho que estaríamos bem mesmo que gastássemos um pouquinho. Aguentar tudo isso é ainda mais estressante, de qualquer forma.
Antes que eu percebesse, meu corpo havia parado de tremer. Respirei fundo e levantei a cabeça, finalmente tomando minha decisão. Minha determinação vacilante só se solidificou quando a vocalizei. A voz rouca que saiu da minha boca deixou claro o quão seca minha garganta estava.
— A hora... chegou.
Muito bem. Sua imprudência termina aqui. Vou mostrar a vocês o que é o verdadeiro medo. Eu sou o Mil Truques, o homem que pegou dinheiro emprestado da sua amiga de infância para comprar Relíquias. Gravem bem minha patética figura em suas mentes.
Um enorme conjunto de armadura negra foi carregado para o palco. Ele se mantinha imponente e digno, como se houvesse alguém dentro dele, silenciando a multidão barulhenta. Tinha cerca de quatro metros de altura. Um escudo gigantesco e uma espada impressionante, que combinavam perfeitamente com a armadura, completavam o conjunto. Era óbvio que não havia sido feito para humanos usarem. Talvez Ansem conseguisse vesti-lo. A multidão aguardava silenciosamente as palavras do leiloeiro.
— Entrada número 44! Um item do orgulho do império, o Escritório de Investigação de Cofres! Este é um golem metálico criado por uma certa organização mágica!
Entendo. Então não é uma arma, mas um golem... Espera, hã? Olhei para o lado e vi Sitri encarando aquilo com espanto, os olhos arregalados.
— Hã? — ela murmurou. — Um... kasha?
Eu conhecia muito bem essa palavra. Virei-me novamente para o boneco que foi levado ao palco. Escritório de Investigação de Cofres, uma certa organização mágica, um golem metálico... Não havia dúvida. Esse era o golem que estava na lista dos espólios de guerra que discutimos dividir dias atrás. O que ele está fazendo neste leilão? Instituições governamentais ocasionalmente leiloavam alguns itens, mas eu não fazia ideia de como esse golem específico foi parar aqui.
Havia alguém com gostos peculiares? Alguém estava planejando usá-lo como objeto de pesquisa? O item, que tinha um lance inicial de trinta milhões de gild, desencadeou a disputa mais feroz do dia. Seu preço começou a disparar num piscar de olhos, e eu simplesmente não conseguia entender seu valor. Se eu tivesse tanto dinheiro para gastar em um mero golem, eu o gastaria em Relíquias.
— Siddy... — murmurou Liz.
— A-Ahn... — respondeu Sitri.
Claro, minha linha de pensamento era minoria. Notei Sitri sentada ao meu lado, de olhos arregalados, enquanto seus ombros tremiam. Sua postura normalmente calma havia sumido, e ela olhava fixamente para o golem negro, apertando as mãos com força sobre o colo. A disputa continuava acirrada, e duas pessoas, desesperadas para colocar as mãos naquele golem, continuavam aumentando o preço. Finalmente, um lance superior a cem milhões de gild foi dado, e até mesmo o leiloeiro não conseguiu esconder a empolgação na voz.
— Você não queria isso, Sitri? — perguntei, cutucando seu ombro.
— N-Não... — Sitri respondeu, balançando a cabeça lentamente após um momento de silêncio.
No entanto, pude ver que seus olhos estavam marejados. Sitri era introvertida e raramente expressava suas opiniões. Ela sempre dava um passo para trás, especialmente quando se tratava de mim. Percebendo meu olhar duvidoso, ela rapidamente tentou pensar em uma desculpa.
— M-Mas é, hmm... um item que foi criado após muitos anos de pesquisa e inúmeras tentativas fracassadas. O custo para construí-lo sem dúvida é grande, mas isso não é o mais importante... — Sitri disse em voz baixa, sua fala tremendo, carregada de emoção.
Eu não entendia completamente, mas ao ouvir sua explicação, ficou claro que era um item impressionante. Outros provavelmente também sabiam do valor daquele golem, já que o preço continuava subindo. Até o leiloeiro parecia não esperar que um item avaliado inicialmente em trinta milhões de gild chegasse a mais de duzentos milhões. E a disputa não mostrava sinais de desaceleração. Agora, três pessoas estavam envolvidas na batalha pelo lance. Parece que há muitas pessoas ricas por aqui.
— Hm, não sei como os outros veem esse golem, mas para mim, ele é mais como uma lembrança de um amigo — disse Sitri.
— Tem valor sentimental para você, então? — perguntei.
Olhei para ela buscando confirmação, mas achei impossível. Não havia como ela ter sentimentos nostálgicos pelos golems coletados na Torre Akáshica. Sitri visivelmente encolheu-se e abaixou a cabeça, tentando esconder suas expressões.
— Hm, na verdade, não... N-Não é algo com que você precise se preocupar... — sussurrou.
Suspirei e estendi a mão, segurando a dela sobre seu colo.
— Você está mentindo, não está, Sitri?
Eu podia ser denso, mas conhecia minha amiga de infância muito bem. Mesmo que não a conhecesse há tanto tempo, ao vê-la com lágrimas nos olhos, não havia como aceitar suas palavras ao pé da letra.
***
O preço continuou a disparar, ultrapassando trezentos milhões. Um dos licitantes desistiu, restando apenas dois.
Um deles... era eu.
Todos os nossos fundos eram as economias de Sitri. Não havia Relíquia no mundo que eu desejasse mais do que os anseios silenciosos de minha amiga de infância. Era minha culpa por não conseguir esse item para ela quando dividimos os espólios de guerra.
Lambi os lábios e tentei me animar enquanto me gabava:
— Dinheiro deve ser usado em momentos como este.
Provavelmente havia algo mais por trás disso do que apenas uma lembrança de um amigo. As chances eram baixas de que o amigo de Sitri estivesse envolvido com uma organização mágica perigosa. No entanto, sua expressão estava longe de ser tranquila. Ela estava acostumada a reprimir seus desejos, e era raro vê-la demonstrar suas emoções assim. Presumi que a tecnologia do amigo Alquimista de Sitri tivesse sido usada para criar aquele golem. A Torre era um sindicato mágico ilegal e não se importava em roubar ideias dos outros. Havia uma chance de que seu amigo tivesse sua tecnologia roubada e sido morto no conflito. Sindicatos mágicos nunca estavam envolvidos em coisa boa.
Por isso, Sitri pediu o golem quando dividimos os espólios e agora estava dividida entre sua lealdade a mim e seu desejo pelo item. Posso estar sendo tendencioso, mas acho que estou certo. Espera... estou tendo um momento de gênio agora?
Para ser honesto, eu não entendia os sentimentos de Sitri. Mesmo que ela me contasse, eu provavelmente continuaria confuso. Mas eu não era do tipo que tomava decisões erradas. Eu era o líder dos Grieving Souls, o melhor amigo de Sitri primeiro e o Mil Truques depois.
T me olhou com suspeita, como se perguntasse: "Hã? Sério? Tem certeza? Você quer esse boneco estranho em vez de uma Relíquia?" Mas eu tinha certeza. Esse dinheiro era da Sitri, afinal.
— Hã? — murmurou Sitri, chocada.
Ela achava que eu priorizaria meus próprios desejos em vez das lágrimas dela? Você não confia o suficiente em mim. Devia ser mais aberta sobre o que quer. Liz, que sempre dizia o que queria e vivia sem estresse, olhou surpresa.
— Hã? Krai Baby, você...? Isso aí!
— De qualquer forma, sindicatos mágicos nunca fazem nada de bom — falei.
Sitri apertou os dedos trêmulos enquanto olhava fixamente para o palco. Isso me lembrou da época em que ela ainda era uma criança e não tinha confiança no que fazia. Liz cruzou as pernas e me lançou um olhar.
— Mas você tem certeza disso, Krai Baby? E a máscara? Se fosse eu, teria me segurado.
— Tudo bem — respondi. — Eu não preciso dela. Isso não vale nada em comparação.
Ela riu.
— Está tentando bancar o durão?
Ugh, é por isso que amigos de infância têm vantagem... Assim como eu conhecia bem a Sitri, Liz também me conhecia muito bem. Ela continuou a rir e cutucar meu ombro.
Franzi as sobrancelhas.
— Não estou. Claro, talvez eu quisesse aquela Relíquia, mas esse golem é muito mais importante agora.
— O-O...Obrigada! — gaguejou Sitri. — E-Eu não achei que ele apareceria... Krai, eu definitivamente vou retribuir isso um dia.
Retribuir? Esse dinheiro é seu.
— Não se preocupe com isso — respondi. — E o leilão ainda não acabou. Talvez seja um pouco cedo para comemorar.
Houve um momento de silêncio antes que ela soltasse uma resposta carregada de emoção:
— Certo.
Eu não sabia se era por causa da empolgação dela, mas sua pele, normalmente pálida, estava avermelhada—até mesmo suas orelhas tinham um tom rosado. Provavelmente, ela não teria ficado tão emocionada se eu tivesse conseguido comprar a máscara. Mas eu ainda não tinha desistido da Relíquia, então fiz um gesto para Tino continuar aumentando o preço pelo menor incremento possível. Sitri tinha preparado um total de 950 milhões de gild. Se o plano dela desse certo e eu conseguisse comprar a máscara por pouco mais de 200 milhões de gild, ainda teríamos 750 milhões sobrando.
Eu não sabia nada sobre alquimia, mas duvidava que o mais novo golem custasse 750 milhões de gild. Afundei no assento, relaxado, enquanto ouvia o preço subir pouco a pouco. Duzentos milhões já tinham virado trezentos milhões, e então se tornaram quatrocentos milhões. Espera, quatrocentos milhões?! Como assim?! Quem tem tanto dinheiro assim?! Com quatrocentos milhões, eu poderia comprar quatro Relíquias de cem milhões! A arena do leilão ficou em silêncio com o preço inesperado. Sitri apertou os punhos contra o peito, assistindo ansiosa. Eu não tinha escolha além de manter a compostura e cruzar os braços.
Sitri, você precisa mesmo disso? Você quer tanto assim? Não, desculpa. Tudo bem. É o seu dinheiro, então eu não me importo. Mas o preço continuava subindo silenciosamente. Eu só estava competindo com uma pessoa. Um único outro licitante. Ninguém tinha os olhos nesse golem e esperava que o preço disparasse tão rápido. A máscara tinha chamado toda a atenção—quem poderia imaginar que o golem se tornaria uma disputa tão acirrada?
— Quem poderia imaginar isso?! — gritou o leiloeiro. — Quinhentos milhões de gild! O golem agora está em quinhentos milhões! A partir daqui, o menor incremento será de vinte milhões de gild! Ah, e já temos um lance! Cinquenta e vinte milhões de gild!
Quinhentos e vinte milhões?! Que tipo de magnata estamos enfrentando?! Ainda assim, isso era muito abaixo da dívida em que me enfiei. Será que isso tudo era só por causa da empolgação do leilão? Duvidava que meu oponente esperava pagar mais de quinhentos milhões de gild por esse item. Os lances continuavam, e o preço subia devagar. A emoção e aquela sensação única de poder eram os maiores atrativos de um leilão, mas, dessa vez, eu só podia rezar para que meu oponente desistisse logo. O preço já estava em 660 milhões de gild.
— Krai... — Sitri murmurou com lágrimas nos olhos. — Está tudo bem. Nesse ritmo, você não vai conseguir...
Eu não esperava esse desfecho. Se não tivéssemos nos preparado bem para a máscara, eu nunca teria tentado dar um lance no golem. Mas Sitri, esse dinheiro é todo seu. Você, Liz e Tino juntaram tudo, mas eu estou quebrado e não contribuí com um único gild. Me desculpa.
— Não tem com o que se preocupar — eu disse, tentando aliviar a tensão dela. — Na verdade, eu estava juntando esse dinheiro para comprar o golem.
— O quê?! — Sitri engasgou. — Eu... não percebi isso. Achei que só eram suas... tendências habituais.
Habituais? Como é? Eu não disse nada e apenas voltei a encarar o palco. Vamos, desiste logo. Temos 750 milhões de gild à disposição. Só desista e vá embora. Por favor. Eu imploro. Preciso me ajoelhar e implorar? Se precisar, eu faço. Sem problema nenhum. Mas minhas preces não foram atendidas, e o leiloeiro gritou com empolgação.
— O preço aumentou mais cem milhões de gild! Agora está em 760 milhões! O Número 25 fez um lance!
Quem diabos é o Número 25?! Tino se virou para mim, claramente surpresa, já que sabia dos nossos fundos e do que eu realmente queria comprar. Silenciosamente, fiz um sinal de positivo, indicando que continuaríamos na disputa. Meu estômago começou a doer. A menos que aquela jovem nobre desistisse por conta própria, não havia chance de eu conseguir aquela máscara.
Mas, se fosse assim, eu iria até o fim pelo golem. Eu o conseguiria, custasse o que custasse. Precisava me preparar mentalmente para isso. Talvez estivéssemos enfrentando alguém muito mais rico do que nós. Talvez nunca conseguíssemos esse golem, por mais que tentássemos. Se déssemos tudo de nós e ainda assim não conseguíssemos, Sitri desistiria também.
Ainda assim, eu suspeitava que nosso oponente também não estava em uma situação fácil. Esse item começou custando trinta milhões de gild, então tínhamos uma boa chance de vencer. Esse acréscimo de cem milhões talvez fosse a última tentativa deles—o limite absoluto. Mesmo que não fosse, provavelmente estavam perto do máximo que podiam pagar. Respirei fundo e dei uma nova ordem para Tino. Toma essa!
— O quê?! — gritou o leiloeiro. — O preço subiu mais cem milhões! Temos um lance de 860 milhões de gild, pessoal! O Número 66 fez uma oferta de 860 milhões!
Eu me senti mal. Fazia tempo que eu não gastava tanto dinheiro em um único item. Me senti enjoado. Mesmo tendo uma dívida de dez dígitos para pagar, isso era resultado de anos de acúmulo—mas, como alguém pobre até o osso, eu sentia que dar um lance tão alto era puro sofrimento.
Eu tremia de nervoso enquanto o leilão continuava. Talvez surpreso com o aumento repentino, ninguém disse mais nada. Embora não houvesse um confronto literal de espadas, uma batalha estava sendo travada ali.
— Mais alguém? Oitocentos e sessenta milhões de gild! Oito-seis-zero! Só temos mais trinta segundos! O Número 66 pode levar esse item para casa!
Morra! Morra e desista desse golem! Respirei fundo, rezando incessantemente para uma divindade na qual nem sequer acreditava. Sitri se encolheu em uma bola e ficou imóvel, como se estivesse tentando se proteger de uma tempestade. Estávamos chegando ao nosso limite.
Oitocentos e sessenta milhões de gild era mais do que suficiente para passar o resto da vida brincando sem fazer nada. O que será que a Sitri planejava fazer com um dote de casamento tão absurdo, afinal? Pensamentos inúteis giravam na minha cabeça enquanto eu tentava escapar da realidade. Ainda não passaram trinta segundos?! O tempo passava devagar; cada segundo parecia durar vários minutos. Eu sentia como se tudo estivesse parado enquanto o golem negro refletia um brilho opaco sob a luz do lustre. Foi então que o leiloeiro fez uma expressão de puro choque.
—N-Novecentos... e sessenta milhões.
Ficamos atônitos com esse lance.
—Novecentos e sessenta milhões de gild! O Número 25 fez um lance de 960 milhões de gild! — gritou o leiloeiro.
Senti meu sangue gelar. Quem diabos estamos enfrentando? Uma empresa comercial? Um nobre? Isso é impossível. Quem daria tanto dinheiro por um golem? Os olhos de Sitri estavam arregalados de choque enquanto uma única lágrima deslizava por sua bochecha.
—Ah, bem, tivemos azar — Liz suspirou. — É raro te ver perder, Krai Baby. Devíamos ter vendido nossas armas e qualquer outra coisa que tivéssemos. Agora é fácil falar.
Embora eu tivesse minha coleção, leilões não aceitavam itens como pagamento. Precisávamos de um cheque ou dinheiro vivo. Sitri abaixou a cabeça, e Tino me encarou, atônita. Achei ter visto sua bochecha tremer, mas ela apenas deu um pequeno aceno. Em meio à multidão barulhenta, a voz do leiloeiro soou clara e firme.
—Um bilhão?! O Número 66 fez um lance de um bilhão e sessenta milhões de gild!
—Hã? — murmurou Sitri, enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto.
Ela se virou para mim, confusa. Todas as suas economias somavam 950 milhões de gild. Se o comprador não pudesse pagar pelo item após arrematá-lo, sofreria uma punição severa. Isso significava que não podíamos ultrapassar o orçamento. No entanto, eu me sentia em paz. A ansiedade que tinha me dominado momentos atrás havia se dissipado no ar. Eu estava sereno como a superfície de um lago tranquilo. Um sorriso calmo se formou em meus lábios enquanto eu segurava as mãos de Sitri.
—Eu te disse, não disse? Não se preocupe com isso. Bem, eu gostaria que você se preocupasse um pouco...
Para ser mais preciso, por favor, venha comigo quando eu tiver que me ajoelhar diante da Lucia. Droga, acabei de usar mais da metade das economias da Lucia sem permissão. Mas não me arrependo das minhas escolhas. Não me arrependo. E-eu... Eu não me arrependo! Ahhh!
—Dou-lhe uma, dou-lhe duas... Vendido! Para o Número 66, o caçador de tesouros Greg Zangief! Este enorme golem metálico foi arrematado por um bilhão e sessenta milhões de gild! Uma salva de palmas para este ousado caçador que venceu este leilão acirrado! — anunciou o leiloeiro.
Em meio aos aplausos estrondosos, Greg, que estava sentado ao lado de Tino, ergueu o olhar para mim com o rosto completamente pálido.

A arena ainda estava tomada pela paixão do leilão acirrado. Houve um breve intervalo, mas praticamente ninguém saiu. Lançamos um olhar de esguelha enquanto deixávamos a arena, e Tino correu atrás de nós. Ela se aproximou de Liz, Sitri e eu, juntou as mãos na frente do corpo e fez uma profunda reverência.
— Me desculpe, Mestre. Eu não achei que isso fosse acontecer — disse Tino.
— Hã? — respondi. — Ah, tudo bem. Não me importo.
Eu tinha pedido para Tino me substituir. Fiquei um pouco surpreso ao ouvir o nome de Greg sendo chamado em vez do dela, mas isso não era algo para me irritar. Já fazia um tempo desde que a disputa pelo golem havia terminado, mas Greg estava atrás dela, pálido como um fantasma. Ele estava suando em bicas, olhando ao redor ansiosamente como um pequeno animal assustado, e eu conseguia me identificar com ele.
Ele era o herói que fez o lance pelo item mais caro até o momento — deveria estar orgulhoso disso. Ele já havia removido o número que usou no leilão e ninguém conhecia seu rosto, então ainda não estava cercado por uma multidão, mas era apenas questão de tempo até que seu nome se espalhasse por toda a capital.
Para manter as coisas justas, o Leilão de Zebrudia permitia que os compradores fossem facilmente rastreados. Assim, existia um sistema de substitutos, mas para um caçador de nível intermediário, isso poderia ser um fardo pesado demais. Tino estava nervosamente dando suas explicações para Liz, que apenas sorria em silêncio.
— Eu realmente planejava assumir, mas não consegui me preparar a tempo, e quando tentei confirmar seus sinais manuais, Mestre, percebi que não fazia ideia do que significavam — disse ela.
Tino pode ser meio avoada às vezes... Mas haviam inúmeras sinalizações usadas durante um leilão. Era impossível para um novato aprendê-las todas de uma vez. Claro, nesse caso, era possível simplesmente gritar o valor ou erguer uma placa com o preço escrito, mas quase todos que participavam do leilão optavam por utilizar sinais manuais.
— E como Greg disse que os conhecia, deixei com ele — continuou. — Dividimos os papéis — eu olharia para seus sinais enquanto Greg participaria do leilão. Eu não achei que as coisas sairiam assim. Achei que ele lidaria com a primeira rodada do leilão enquanto eu aprendia, e então eu assumiria para o verdadeiro prêmio!
— Ah, sim, uh-huh, estou ouvindo... — respondi.
O resultado foi que gastei todo o nosso dinheiro naquele golem em vez da Relíquia que eu inicialmente almejava. Em minha defesa, eu também não esperava esse desfecho, então não era como se pudesse ter evitado. Liz bateu no meu ombro, fez um gesto como se devesse decapitar alguém e finalizou inclinando a cabeça para o lado, imitando uma morte. Eu não vou fazer isso...
— Você não precisa parecer tão assustada — eu disse. — Você fez mais do que o suficiente. Muito mais do que eu poderia pedir. Está tudo de acordo com o plano.
— Krai — Greg disse, revelando o motivo de estar tão pálido. — Er... Você está acima do orçamento, mas está bem com isso?
O lance que ele deu ultrapassou drasticamente o orçamento que eu havia estipulado antes do leilão. A falta de pagamento resultaria em uma punição severa para Greg, então eu entendia o medo dele. Claro, eu não pretendia colocá-lo em apuros.
— Ah, não se preocupe com isso. Eu tenho dinheiro — respondi.
Mas não é exatamente meu dinheiro. Eu estava, internamente, me prostrando diante de Lucia enquanto assinava um cheque de 110 milhões de gild e o entregava para Sitri. Eu estaria retirando dinheiro da conta de Lucia, mas já estava estabelecido que eu poderia assinar em seu lugar. Sitri pegou o cheque e o guardou cuidadosamente em sua bolsa, somando um total de um bilhão e sessenta milhões de gild.
— Mestre... — Tino murmurou, constrangida. — Er, um... E a Relíquia...
— Ah, eu não preciso mais dela — respondi. — Nós já alcançamos nosso objetivo, não foi? Estou cansado, então acho que vou para casa.
— Hã?
O leilão tinha acabado de começar e a arena ainda estava cheia de gente. Provavelmente Relíquias raras ainda seriam expostas — eu estava curioso, mas era difícil olhá-las sabendo que não tinha mais fundos para dar lances. Havia até a chance de ceder à tentação e tentar usar o restante do dinheiro de Lucia. Melhor que eu nem estivesse presente para evitar isso.
Acima de tudo, eu não poderia mais comprar aquela máscara. Meu leilão havia terminado. Suspeitava que Lady Éclair já estivesse tomada pelo espírito competitivo agora, mas eu não poderia mais entreter isso. Você venceu. Claro que venceu. Eu só vou para casa e me afundar na cama.
— Krai, vou com Greg buscar o item que acabamos de arrematar — disse Sitri, com um sorriso que ia de orelha a orelha. Ela ergueu sua maleta recheada de moedas de prata.
Bem, pelo menos consegui proteger o sorriso dela.
— Liz, pode dar uma investigada em nosso oponente, o Número 25? — perguntou Sitri. — Ele pode já ter ido embora, mas tenho certeza de que o leiloeiro tem essa informação.
— H-Hey, peraí. Não é contra as regras investigar nossos...— Liz começou, mas rapidamente mudou de tom. — N-Não, deixa pra lá.
Pode até ser contra as regras, mas não era difícil descobrir. Não podia culpá-la por querer saber quem era nosso oponente. Mas duvidava que nos mostrassem documentos com seus dados.
— Greg, obrigado por me ajudar hoje. Espero que nos encontremos de novo — disse antes de me virar para a radiante Sitri. — Sitri, deixo o resto com você.
— Claro! — respondeu animadamente. — Obrigada, Krai! Vou te visitar depois!
Eva vai ficar brava comigo? Provavelmente... Mas paciência. Abri bem a boca e bocejei enquanto saía da arena, com uma sensação de satisfação preenchendo meu coração.
***
— E vendido! — gritou o leiloeiro. — A enigmática máscara de carne foi adquirida pela filha da renomada Casa Gladis, Éclair Gladis, por impressionantes duzentos milhões de gild!
Os assentos abaixo explodiram em aplausos. Éclair, que estava na beirada de sua cadeira, soltou um suspiro alto. Seus olhos estavam úmidos e suas sobrancelhas, geralmente franzidas, pareciam relaxadas por ora. Não havia alegria ou euforia pela vitória que acabara de conquistar—apenas um profundo alívio. A batalha havia sido bem menos intensa do que ela esperava. Os conselhos de Montaure antes do leilão não passavam de temores infundados para ela, e ela conseguiu adquirir o item por duzentos milhões.
Apesar dos rumores que circulavam antes do leilão, a disputa foi unilateral. Os boatos de que a Casa Gladis estava seriamente de olho no item trabalharam a seu favor. Os nobres detinham poder dentro do império, e nem as companhias comerciais nem os caçadores ousariam enfrentar tal autoridade diretamente. Uma pessoa tão destemida simplesmente não poderia existir.
Éclair, que parecia ter reafirmado essas crenças, ergueu orgulhosamente o olhar para seu pai, Van Gladis. Seu pai, no entanto, limitava-se a dar respostas monossilábicas aos elogios que recebia de outros nobres e estava fixado no palco. Ele não comemorava a vitória de sua filha—não, ele observava com desconfiança, como se estivesse vendo algo suspeito. Percebendo o olhar de Éclair, ele franziu as sobrancelhas antes de murmurar palavras que sua filha não esperava.
— Ele cedeu essa vitória para nós, entendo...
— O quê? — perguntou Éclair.
Montaure, que estava atrás de Van, confirmou sua concordância em um tom baixo.
— Parece que sim. O Mil Truques já deixou o leilão. Não há mais ninguém aqui sob sua influência.
— Hmph, aquele caçador de Nível 8... — Van disse. — Eu achei que ele fosse apenas um bruto ingênuo, mas parece que os rumores sobre suas estratégias engenhosas não são infundados. Interferimos na Relíquia que ele queria obter, mas ele recuou com facilidade. Uma decisão bastante fria para um caçador que valoriza honra e reputação acima de tudo. Como Ark diz, ele é um sujeito interessante.
— O-O que está dizendo, pai?! — exclamou Éclair. — Como pode ver, eu venci essa disputa de maneira justa!
Havia algumas ocorrências inesperadas, mas o resultado era que ela havia arrecadado fundos suficientes e garantido sua vitória.
— Éclair — Van começou. — É verdade que você conseguiu comprar essa Relíquia. Infelizmente, isso não foi uma vitória louvável. Eu planejava apenas observar essa disputa, acreditando que isso seria uma experiência valiosa para você, independentemente do resultado, mas perceber que você nem mesmo estava no mesmo palco que ele... Acho que fui ingênuo. E você não percebe isso, não é?
Ela encarou seu pai, chocada.
— Minha senhora — disse Montaure. — É um fato que o Mil Truques reuniu bem mais que duzentos milhões de gild. Recebi informações de que Sitri vendeu seus equipamentos e poções. Embora a pessoa que eu tinha vigiando suas ações tenha sido expulsa, o Mil Truques de fato deixou a arena antes mesmo do início da disputa pela Relíquia.
Éclair ouviu essas palavras em silêncio atônita, enquanto uma miríade de emoções a dominava. Confusão, alívio, perplexidade e raiva tomaram conta de sua mente enquanto ela conseguiu balbuciar algumas palavras.
— Eu disse a ele que essa seria uma disputa justa.
— Eu já havia negociado com algumas companhias comerciais, nossos potenciais rivais neste leilão, de antemão — revelou Montaure. — Minha senhora, como membro da Casa Gladis, você tem o dever de vencer. Caçadores e nobres possuem algumas semelhanças. No mínimo, tropeçar aqui faria com que fosse subestimada no futuro. E você, de fato, venceu um caçador de Nível 8 hoje.
— Mas qualquer um com um pingo de discernimento pode ver que essa vitória nos foi entregue — acrescentou Van. — Que incorrigível. Tudo o que ganhamos ao gastar duzentos milhões de gild foi uma noção da generosidade do Mil Truques.
Vendo a expressão de desagrado no rosto de seu pai, Éclair falou com a voz trêmula.
— Eu fui... Ele teve pena de mim? Ele me desprezou?
— Foi exatamente porque ele não a desprezou que você conseguiu arrematar esse item — Montaure respondeu. — Se isso pode ser chamado de vitória ou não, depende unicamente de você, minha senhora.
Não. Isso não foi uma vitória. De jeito nenhum. Será que ela venceu por falta de competição? Não, isso não trazia nem um pingo de satisfação. Ela teria preferido enfrentá-lo de igual para igual e perder. Éclair rangeu os dentes, emitindo um som abafado. Ela havia perdido. Estava claro como o dia—ela venceu a batalha, mas perdeu a guerra. Não havia como apresentar essa Relíquia com orgulho para Ark, a pessoa que tanto admirava.
— Parece que temos uma dívida com ele — murmurou Van.
— Pode-se ver isso como o homem dando sua aprovação silenciosa para que minha senhora reunisse os duzentos milhões de gild conforme prometido. Esse era o acordo inicial feito em nossa casa, afinal — Montaure disse. — Custa a crer que os infames Grieving Souls tenham recuado apenas por estarem enfrentando uma casa nobre renomada.
— Seja como for, uma dívida é uma dívida. Não importa como nos vejam, como um nobre do Império Zebrudian, uma dívida deve ser paga. Espero que esse não seja o verdadeiro objetivo daquele homem que deseja essa enigmática Relíquia.
Enquanto o Conde Gladis observava com severidade, até mesmo o normalmente inexpressivo Montaure ficou sombrio.
— Não houve sinais de que o Mil Truques tenha se envolvido pessoalmente com os rumores que se espalharam. Minha senhora apenas acompanhou Sir Ark até a sede do clã, mas isso foi por vontade própria. Só consigo pensar que tudo isso é uma grande coincidência.
O conde, no entanto, permaneceu insatisfeito, apesar da opinião de seu braço direito. Sua filha ainda estava congelada na cadeira, tentando processar a situação.
— Éclair — ordenou Van. — Você pode fazer o que quiser com a Relíquia que comprou. Mas não permitirei que se envolva com aquele homem além disso. Ele certamente não é alguém com quem você possa lidar.
Ela permaneceu em silêncio. Estava frustrada. Pensava que tinha iniciado essa batalha, mas sentia como se estivesse dançando na palma da mão dele. Era miserável demais para ela. Mas o que mais posso fazer? O que eu deveria fazer? Éclair sempre teve o cuidado de agir de maneira condizente com uma aristocrata, sempre destemida, não importa o que enfrentasse. Agora, seu coração estava tomado por uma ansiedade inexplicável.
— Você entendeu? — Van gritou. — Responda-me!
— Sim, pai... — Éclair conseguiu responder enquanto mordia os lábios e tentava conter os soluços.
***
Eu era, sem dúvida, um cara inútil. Nada dava certo quando eu realmente precisava. Por exemplo, quando comecei a montar um grupo, escolhi o nome Grieving Souls, mas as pessoas nos confundiram com um grupo de fantasmas, o que nos fez ser constantemente alvos de outros sindicatos criminosos e caçadores. Quando criei um clã e tentei sair para apreciar as flores com eles, ocorreu um abalo tectônico que fez surgir cofres de tesouros de alto nível. Quando enviei Tino para a Toca do Lobo Branco, houve uma série de eventos inesperados. Sempre que eu tomava uma decisão, quase nunca dava certo.
Eu era geralmente uma pessoa azarada, mas quando me tornei um caçador, senti que minha sorte atingiu um novo nível de desastre. Superei tudo isso graças à ajuda dos que estavam ao meu redor e me humilhando quando necessário. Mas isso não significava que eu aceitava bem essas circunstâncias ou que estava acostumado a elas.
Já se passaram alguns dias desde aquele leilão deprimente, e eu ainda não consegui recuperar minha energia. Eu ficava largado no sofá do escritório do mestre do clã, apenas me remoendo. Nunca fui muito enérgico para começo de conversa, mas sentia que todo o meu esforço dos últimos dias havia se transformado em poeira, como se tivesse levado um golpe fatal.
Quando Eva me disse que Lady Éclair havia comprado com sucesso a Face Reversível, fiz o possível para agir com indiferença, mas, com o passar do tempo, percebi que não conseguia deixar para lá. Eu não me arrependia de ter dado um lance em um item que Sitri queria. A maior parte de nossos fundos era dinheiro dela, e eu preferia ficar sem uma Relíquia do que vê-la chorar. Ainda assim, isso não significava que eu podia simplesmente desligar meus sentimentos. Sabia que ficaria para baixo por um tempo. Não queria fazer nada. Nem sequer tinha motivação para sair, e nem mesmo queria comer algo doce.
Todo mundo sabia que eu estava atrás daquela máscara. E, é claro, também sabiam que nem cheguei a dar um lance e fugi como um perdedor. Sob os olhares curiosos dos outros, minha atitude certamente foi a de um mestre de clã de segunda categoria. Essa era a única coisa que eu queria evitar. O quarto andar e acima da sede do clã ficava ocasionalmente fora dos limites para que nenhum caçador me visse parecendo um morto-vivo.
Enquanto torcia meu corpo e continuava largado no sofá, acabei rolando para o chão. Soltei um suspiro quando atingi o piso com um leve baque. Eu pareço um derrotado lamentável, pensei. Achei isso engraçado e quase ri. Eu tinha certeza de que Lady Éclair estava me ridicularizando por ser um homem patético que fugiu antes mesmo da batalha começar. Talvez eu tenha contribuído para o desprezo crescente do Lorde Gladis pelos caçadores. O golpe final foi que a máscara que eu tanto queria seria enviada para Ark, que nem sequer a desejava.
Ugh, a vida nunca segue do jeito que eu quero. Eu não tinha senso de vergonha. Instintivamente, segui meus impulsos e continuei rolando pelo chão do escritório do mestre do clã. Eva havia se esforçado para colocar um tapete de alta qualidade, então não doía nada. Eu queria passar o resto da vida rastejando no chão como uma lagarta. Se houvesse um buraco, eu certamente me enterraria nele. De novo, não era vergonha—eu só achava que viver debaixo da terra seria reconfortante.
Enquanto estava absorto nessa ação sem sentido, ouvi uma batida na porta. Espalmei meus membros como uma estrela-do-mar, deixando meu corpo tocar o chão o máximo possível para minimizar os efeitos da gravidade sobre mim, e consegui soltar uma resposta rouca.
— Yeaaah?
— Com licença, Krai—huh?! O-O que você está fazendo?! — Eva disse, chocada ao me ver estirado no chão como um cadáver.
Ela sabia o quão fraco eu era, então não escondi nada dela. Nos últimos dias, quando fiquei trancado no escritório do mestre do clã ou no meu quarto, foi Eva quem trouxe minhas refeições.
— Dá pra perceber só de olhar? — perguntei.
— N-Não exatamente — ela respondeu.
— Vamos lá. Eu estava rolando no sofá, mas caí no chão.
— Argh! Pelo amor de Deus! Pare de rolar pelo chão! Está sujo! Você não é um nível 8?!
Eva segurou meus braços e ombros, me levantou e me colocou sentado no sofá como um boneco sem vida. Ao contrário de mim, a aparência dela estava impecável, e eu não podia acreditar que ela estava trabalhando muito mais do que eu. Bem, zero vezes qualquer coisa ainda é zero, mas mesmo assim... Droga, como pude me comparar com ela? Que rude da minha parte.
— O que houve? — ela exigiu. — Por que você está parecendo tão abatido nos últimos dias?
— Esse é o meu estado normal — respondi.
— E-Er, bem... — Ela parecia um pouco incomodada.
Quando minha confiável vice-mestre de clã soube que gastei um bilhão de gilds em uma compra inesperada e a máscara me escapou por entre os dedos, tudo o que fez foi soltar um único suspiro. Ela era tão generosa que eu me sentia tentado a ver até onde poderia testar sua paciência.
— Se você se sente à vontade comigo e tem algo te incomodando, posso te ouvir — Eva ofereceu.
Eu só tinha preocupações. Cara, se eu pudesse converter a quantidade de coisas que me incomodam em ouro, já estaria sem dívidas agora.
— Só tá na hora de eu cair fora, sabe? — eu disse. — Eu não sou digno. Minha vida nunca segue do jeito que eu quero. Quero me aposentar.
Quando Eva ouviu minhas lamentações de sempre, arregalou os olhos em choque e deu um passo para trás. Eu tinha conseguido fazer até minha confiável vice-mestre de clã recuar com minhas loucuras — eu simplesmente era um ser humano horrível assim. Isso mesmo. Esse sou eu. Eu sou um lixo. Só quero virar uma ostra e viver no fundo do oceano. E então um polvo tenta me comer e eu não consigo fazer nada, então sou devorado inteiro.
— V-Você está dizendo que as coisas não estão indo bem? — Eva perguntou, perplexa.
— Se eu tivesse que me dar uma nota de cem, sendo generoso, daria uns quinze pontos — respondi. — Eu nem consegui aquela máscara.
— Quinze?!
Eva parecia estar sendo feita de boba ao ouvir minha resposta sem vida. Sinto muito por sempre te preocupar. Eu queria retribuir um dia, mas, conhecendo a mim mesmo, provavelmente só daria tudo errado.
— Ahm, ouvi dizer que deixar aquela máscara para trás fazia parte do seu plano... — ela disse.
Quem foi que disse isso? Olhei para ela, mas seu rosto permanecia sério como sempre. Eu só tinha dito aquilo para bancar o durão. Duvidava que alguém presente naquela hora tivesse levado minhas palavras ao pé da letra. "Tudo conforme o planejado"? Eu queria aquela máscara, e as pessoas acham que eu planejei abrir mão dela? Só que não.
De Akasha ao preço que eu dei no leilão, tudo estava fora dos meus cálculos. Eu só estava indo com a maré do começo ao fim, como um pedaço de alga no mar. Desviei o olhar e suspirei profundamente. Já que eu acabaria sendo comido como um molusco, preferia ser uma rocha ou algo assim. Sei lá.
— Bom, mais ou menos, não exatamente... — falei. — Eu poderia ter jogado melhor minhas cartas, mas minha vida realmente tá fora do meu controle.
— Quer que eu prepare um chá? — Eva ofereceu. — Tenho uma mistura de ervas que pode acalmar sua mente.
Permaneci em silêncio, mas ela preparou o chá para mim. Sua gentileza e eficiência me fizeram querer morrer. Todo mundo ao meu redor era gentil e excelente demais. Recuperei um pouco da minha vontade de viver e me encolhi no sofá, abraçando os joelhos.
— Bem, não é nada para se preocupar — eu disse. — Só estou esperando me acalmar.
— Claro — Eva respondeu.
— Acho que logo vou superar isso.
Por ser um covarde sem espinha, eu tinha o péssimo hábito de me escorar nos outros. As pessoas ao meu redor eram todas independentes. Sitri e Ansem, claro, mas Liz e Tino também eram incríveis por mérito próprio. Luke, embora um pouco impulsivo, estava um nível acima dos outros em termos de força, e eu o respeitava por isso. Eu era o único que provavelmente morreria assim que me largassem sozinho.
Pensando bem, talvez os Grieving Souls tenham se tornado excepcionalmente poderosos para compensar por mim, que não passava de um peso morto. Talvez eu ajudasse a fazer com que eles se destacassem. Como prova, o líder da Ark Brave era forte demais, fazendo o resto do grupo parecer insignificante em comparação.
Uma xícara estilosa foi colocada à minha frente. O chá de cor lima exalava um aroma levemente doce.
— Mas você precisa sair um pouco — Eva insistiu. — Todos estão preocupados, e isso não faz bem para sua saúde. Admito que não faço a menor ideia do que se passa na sua cabeça.
O que estou pensando? Odeio dizer isso, mas não estou pensando em nada. Não se preocupe. Eu fico para baixo bem rápido e sou levado pela situação com facilidade, mas também não costumo refletir muito sobre as coisas. Sentia culpa por fazer os outros se preocuparem comigo, mas não estava mentindo quando disse que logo superaria isso.
Eu me conhecia melhor do que ninguém. Peguei a xícara de chá e lentamente a levei aos lábios, deixando o aroma levemente azedo e doce preencher meu corpo. Como Eva tinha dito, senti que isso acalmava minha mente e minha alma. Não que minha mente precisasse de acalmar, honestamente. Assim que recuperei um pouco da minha compostura, continuei a me repreender. Por que eu não guardei um pouco de dinheiro? Eu só precisava de duzentos milhões. Isso era tudo o que eu precisava para comprar o que Sitri queria e conseguir aquela máscara também. Provavelmente nunca mais teria a chance de obter uma Face Reversível. Como Lady Éclair me odiava, negociar era praticamente impossível. Mesmo que um fracassado como eu, que se trancou no quarto de choque, fosse implorar de joelhos pelo item, duvidava que ela fosse vendê-lo para mim. Ela já ia entregá-lo para Ark, de qualquer forma.
Foi então que uma revelação me atingiu. Senti como se tivesse levado um raio enquanto arregalava os olhos, endireitava minha postura e me virava para Eva. Por que eu não pensei nessa solução simples antes?! Tentando parecer descolado, estalei os dedos.
— O-O que aconteceu? — Eva perguntou. — Você me assustou.
— Onde Ark está agora? — perguntei.
É isso! Óbvio! Se não posso comprar da jovem nobre, posso simplesmente comprar de Ark. Ark Rodin era um poderoso Espadachim Mago. Ele já possuía uma Espada Sagrada e, como eu disse antes para Lady Éclair, não precisava de uma máscara parcialmente ilegal. Havia uma chance de que eu pudesse comprá-la dele. Embora o público em geral nos considerasse rivais, na verdade não éramos nada disso. Fazíamos parte do mesmo clã, e eu sentia que havia construído uma boa relação com ele. Se eu implorasse de coração, não tinha como aquele rosto bonito recusar. Na verdade, eu estava disposto a colocar parte da minha coleção na mesa. Heh heh heh, sua perda, Lady Éclair!
Eu podia ser um fraco, mas ainda era um mestre de clã. Você não perdeu para mim; perdeu para minha rede de contatos! Ufa, como estou feliz por ser um mestre de clã!
Eva pareceu preocupada enquanto respondia:
— Hã? Vejamos... Ele precisava resolver alguns assuntos da Casa Rodin, então acho que tem viajado pela capital nos últimos dias.
— Ark é um cara ocupado — comentei.
Achei que ele tinha acabado de voltar, mas fiquei impressionado com o quanto trabalhava. Eva franziu as sobrancelhas com minhas palavras sinceras e me encarou silenciosamente.
— Só queria apontar que, como mestre de um grande clã, não faltam pessoas querendo falar com você, mas eu cuidei de cada uma delas — ela disse.
— S-Sério?
— Todo mundo já está acostumado com o fato de você não visitá-los, mas acho que não custa nada aparecer pelo menos uma vez, não acha? Isso me ajudaria bastante.
— Você sempre foi uma grande ajuda, Vice Mestre do Clã. Arranjei tudo para que, eventualmente, você se torne a mestre do clã.
— Não, obrigada.
Desviei o olhar. Não eram apenas os caçadores que possuíam uma aura esmagadora—mercadores e nobres também podiam exercer uma pressão aterrorizante. Provavelmente havia muitos que eram inteligentes também; eu só seria facilmente manipulado por eles. Mas, se Ark estava ocupado nos últimos dias, parecia que a Relíquia que Lady Éclair comprou ainda não havia sido entregue a ele. Eu tinha que agir enquanto ainda estava empolgado com tudo isso. A Máscara Reversível podia parecer grotesca, mas talvez ela acabasse gostando dela com o tempo, assim como eu. Era importante que Lady Éclair entregasse a Relíquia para Ark rapidamente, antes que fosse tarde demais.
— Você pode chamar o Ark? — perguntei.
— Não é impossível, mas a Casa Rodin é um pouco complicada de lidar — disse Eva, parecendo incomumente preocupada com o pedido.
Aquela casa está cheia de esquisitos. Mas eu não podia desistir agora. Essa poderia ser realmente minha última chance. Estiquei meu corpo e encarei minha vice mestre de clã com uma expressão séria.
— Esse é um pedido urgente. Pode usar minha autoridade como o Mil Truques. Chame Ark aqui imediatamente.
Minha batalha decisiva estava prestes a começar.
***
— Eu estou me sentindo ótima, Krai! — disse Sitri, sorrindo de orelha a orelha. Já fazia alguns dias desde sua última visita ao escritório, e era raro vê-la de tão bom humor. — Também não há nenhum problema particular com o golem!
— Ótimo. Fico feliz em ouvir isso — respondi.
Ela usava uma túnica cáqui folgada que escondia sua silhueta, como de costume, mas parecia mais radiante do que o normal.
— Como saímos rapidamente do leilão, consegui pegar meu item sem problemas — continuou. — Talvez você já saiba disso, mas aparentemente houve sinais de alguém invadindo o depósito do leilão. Acho que isso não foi divulgado.
— Invadindo? — perguntei. — Não foi a Liz?
O Leilão de Zebrudia era organizado pelo império. Com certeza era bem protegido, e a honra da nação estava em jogo. Somente pessoas insanas tentariam invadir um lugar como aquele. Minha pergunta foi meio brincadeira, mas os olhos de Sitri brilharam.
— Não foi a Liz — ela disse. — Nós podemos ter esmagado Noctus Cochlear, mas ele era apenas o chefe do departamento de pesquisa. A fundação sobre a qual ele construiu ainda está infestando o império. Cada departamento de pesquisa da Torre Akáshica é dividido e completamente isolado, então, mesmo que um caia, isso não afeta realmente os outros. Até eu não ouvi nada sobre os outros laboratórios. Mas Noctus Cochlear era um excelente Magus e, quando seu laboratório foi destruído, houve gente disputando os restos do seu trabalho! O golem provavelmente foi parar no leilão após ser pressionado por alguém!
Sitri parecia empolgada, mas eu apenas lhe dei uma resposta vaga enquanto seguia para a sala de reuniões. Fiquei feliz em vê-la tão animada, mas minha mente estava ocupada pensando em como conseguir aquela máscara. Eva havia cumprido minhas ordens e passado meu chamado para Ark. Daqui para frente, tudo dependeria da minha habilidade. Sitri caminhava ao meu lado, girou levemente e se agarrou ao meu braço direito. Eu não conseguia entender por que ela parecia tão animada. Estou aqui para negociar, sabia? Isso está me distraindo um pouco.
— É tudo graças a você, Krai — ela ronronou. — Não só conseguimos obter a sugadora de dinheiro Akasha por meros um bilhão de gilds, como também abrimos um novo caminho! Ah, será que eu deveria tentar invadir de novo ou simplesmente esmagá-los e roubar seu trabalho? Mas estamos lidando com uma grande organização, eles estão de olho em você, e o império também está atento. Eu tenho que pensar no meu trabalho também, então estou tão dividida!
Parecia que Sitri estava animada para enfrentar uma organização secreta que estava na lista de procurados. Ela já estava perseguindo a Torre Akáshica de qualquer forma, mas eu me perguntava se todos os caçadores eram imprudentes como ela. Ela percebeu que eu estava tendo dificuldade para andar com ela tão colada ao meu lado e, por fim, se afastou. Pessoalmente, eu não queria que ela se metesse em algo tão perigoso.
— Se acalma um pouco, hmm, Sitri? — falei. — Você já conseguiu o que queria, então por que não tira um tempo para descansar agora?
Estávamos lidando com uma grande organização, mas também éramos um grande clã. Eu não achava que eles tentariam nos enfrentar. E, se possível, queria que eles simplesmente esquecessem completamente sobre Akasha.
— Entendo... Então esperamos o momento certo e os deixamos ansiosos — respondeu Sitri. — Sinto que poderíamos derrotá-los se atacássemos direto, mas, quando atacamos, há uma boa chance de que nossas defesas fiquem vulneráveis. Sinto que estamos sendo um pouco cautelosos demais, mas temos você do nosso lado, não temos?
Ela olhou para mim. Parecia que nossa conversa não estava exatamente se encaixando, mas eu apenas assenti.
— Acho que caçadores devem ser mais cautelosos do que imprudentes — eu disse. — De qualquer forma, pode me ajudar? Bem, para ser franco, tudo que preciso é de ajuda financeira.
Presumindo que Lady Éclair tenha dado a máscara para Ark, eu não achava que ele simplesmente me entregaria de graça. Caçadores sempre esperavam alguma forma de compensação ou troca equivalente. Se ele me desse de graça, isso implicaria que eu tinha uma enorme dívida com ele. Eu sabia que minha versão endividada não era a melhor para falar disso, mas queria evitar essa situação o máximo possível. Sitri, no entanto, não parecia nem um pouco incomodada com o meu tom despreocupado.
— Ficarei feliz em ajudar — ela disse. — Quanto ao dinheiro, eu já planejava agir mesmo se você não tivesse pedido.
Certo... Digo, eu usei o seu fundo de casamento, afinal. Um dia eu vou pagar tudo, então por favor me perdoe. Sitri estendeu o braço e segurou minha mão, tocando-a com tanta delicadeza como se eu fosse uma obra de arte. Ela suspirou e me olhou com as bochechas coradas.
— Então, Krai... Estava pensando em uma forma de te agradecer e, bem... Por que não vem ficar na minha casa? Tenho tempo e gostaria de te mostrar minha hospitalidade.
— Hmm, talvez da próxima vez — respondi.
— Ah, que pena.
Seus olhos baixos mostravam o quanto estava desapontada. Seu convite e sorriso gentil tornavam difícil recusar, mas, se eu aceitasse sua oferta, me tornaria um completo inútil e desceria ladeira abaixo.
Eu já tinha sido convidado para a casa dela várias vezes no passado, mas a hospitalidade de Sitri poderia facilmente transformar qualquer um em um inútil na sociedade. Tudo era feito por mim. Todas as minhas responsabilidades e deveres eram tirados de mim, e ela cuidava de tudo o que eu precisava. Ela até lavava minhas costas e me fazia massagens, satisfazendo todos os meus desejos, e eu não tinha mais nenhuma reclamação no mundo. Todos os meus sentidos ficavam entorpecidos, e eu parava de sentir a necessidade de pensar ou suportar qualquer coisa.
Quando experimentei esse luxo pela primeira vez, se Liz não tivesse percebido a situação incomum, eu certamente ainda estaria afundado naquele inferno paradisíaco até hoje. Era como cair em um poço sem fundo. Sim, estou fazendo parecer que a culpa é da Sitri, mas a culpa é toda minha. Ela obviamente não tem nenhuma má intenção. Eu tratava os convites dela como um teste mental. Já estava me afundando sem fazer nada nos últimos dias e, se me entregasse ainda mais, me tornaria um caso perdido de verdade.
Ark e seus amigos já estavam me esperando no salão. Entre eles estavam a Santa de Nível 5, Ewe Shiragi, uma pessoa que carregava um ar de mistério, mas também um coração forte; Isabella Merness, uma Maga de Nível 6 do norte, que me parecia um pouco rude; Armelle Hellstrom, uma Espadachim de Nível 6; e Benetta Raim, uma Ladina de Nível 6, que sempre era alvo das provocações de Liz e não parecia ter uma boa impressão de nós.
O líder desse adorável grupo, Ark Brave, era o único homem da equipe e um dos mais fortes da capital, o Nível 7 Tempestade Argêntea, Ark Rodin. Ele tinha tudo — um rosto bonito, um temperamento radiante e uma força esmagadora. Ele era um homem que nasceu para se tornar o Herói.
Hoje, ele não usava seu uniforme de aventureiro da Passos, mas sim roupas casuais. Sua postura era reta e vigilante, sem deixar nenhuma abertura. Ele claramente sorria para mim, mas emanava uma certa aura que insinuava que havia mais nele do que se podia ver. Ao lado dele, Liz estava completamente à vontade, relaxando com confiança. Eu não lembro de ter chamado ela. Quando me notou, ela se sentou e acenou para mim de forma exagerada, sorrindo de orelha a orelha.
— Krai, querido! — ela chamou. — Aqui! Você é horrível! Por que não me chamou? Isso parece tão divertido!
Ark à parte, o resto do grupo dele me lançava olhares furiosos. Não posso culpá-los — provavelmente tinham seus próprios planos, mas foram convocados por mim à força, apenas para darem de cara com Liz, que era difícil de lidar.
— Isso... pode ser problemático — murmurei. — Eu não vim me divertir, para falar a verdade.
— Deixa comigo — Sitri garantiu.
— Eu consigo negociar sozinho. É contra o Ark, então acho que posso lidar com ele.
Eu cheguei cedo para não fazê-lo esperar, mas parece que a diligência do Ark jogou contra mim. Para o nosso grupo, se metade dos membros chegasse no horário, já era algo excelente, mas os Braves eram muito diferentes. Tentei, pelo menos, cumprimentá-lo com um sorriso, e ele, por sua vez, sorriu brilhantemente como de costume.
— Me desculpe por chamá-lo tão de repente, Ark. Por favor, me perdoe — comecei. — Era uma emergência, e acho que isso não será um mau negócio para você também.
***
Um cara interessante. Se Ark Rodin tivesse que descrever o Mil Truques em poucas palavras, essa seria sua frase padrão.
Todos os anos, caçadores de tesouros e aspirantes a aventureiros de todas as partes se reuniam na capital de Zebrudia, a terra sagrada. A maioria deles se aposentava sem alcançar grande sucesso. Alguns morriam tentando limpar um cofre do tesouro, outros sofriam ferimentos graves que encerravam suas carreiras prematuramente, e havia aqueles que ficavam tão abalados psicologicamente que juravam nunca mais sair da cidade. Mesmo os que conseguiam evitar essas armadilhas comuns geralmente não eram capazes de se sustentar na capital devido à falta de habilidades, sendo obrigados a procurar outro lugar para se estabelecer.
Krai Andrey também era um desses caçadores, vindo do interior. Para piorar, ele não tinha experiência como caçador e apenas aspirava se tornar um. Era desnecessário dizer que os caçadores que permaneciam na capital eram extremamente habilidosos e elevavam o nível para os demais. Apenas um punhado de talentos realmente conseguia se destacar na capital. Havia uma abundância de cofres do tesouro esperando aqueles que ousassem desafiar seus perigos. O lugar era repleto de rivais excelentes lutando por essas relíquias, e rufiões de olhos afiados vagavam pelas ruas, esperando para tirar vantagem de caçadores derrotados. Locais saturados de itens e pessoas também atraíam uma quantidade considerável de malfeitores. Apenas caçadores poderosos, capazes de repelir ataques de outros, podiam chamar a capital de um lar confortável.
Isso servia como uma espécie de batismo para caçadores iludidos pela riqueza que parecia praticamente garantida e que viam a profissão através de lentes cor-de-rosa.
Os Grieving Souls, no entanto, contrariavam todas as probabilidades e avançavam à força por qualquer obstáculo que surgisse em seu caminho. Eles conquistavam cofres do tesouro, ignoravam caçadores imaturos acima deles que viam novatos talentosos como uma ameaça e até mesmo destruíam grupos fantasmas que frequentemente se aproveitavam dos recém-chegados. Eles se tornaram um grupo famoso em uma velocidade impressionante. Era quase inevitável que chamassem a atenção de Ark.
Os Grievers sempre estavam cobertos de sangue. Sua luz era tão intensa que projetava sombras escuras por onde passavam. Cada um deles transbordava um talento ofuscante, e não era surpresa que despertassem inveja e rancor. Eles seguiam um caminho espinhoso, repleto de dificuldades: suas vidas foram alvo de tentativas de assassinato mais de uma vez, e rumores desagradáveis sobre eles circulavam constantemente. Mas talvez esses obstáculos apenas tivessem criado um monstro ainda mais poderoso.
Antes que alguém pudesse reagir, a presa havia se tornado o predador. O caipira que sonhava alto demais para seu nível ganhou talentos aterrorizantes, e seu grupo se transformou em algo que os outros temiam — nenhum inimigo deles escapava impune.
Ark Rodin também havia se tornado um caçador na capital, mas sua situação era completamente diferente. A Casa Rodin já possuía a base e o conhecimento necessários. Eles desfrutavam de uma excelente reputação. Desde jovem, ele passou por um treinamento rigoroso para se tornar um caçador e até havia explorado alguns cofres de tesouro antes de se tornar oficialmente um. Recebia o apoio da nobreza e reunir membros para sua equipe nunca foi um problema. Sua base era o completo oposto da de Mil Truques. Ark Rodin, no mínimo, acreditava que Ark Brave e Grieving Souls eram polos opostos, e essa diferença se estendia também aos líderes.
O homem de cabelos escuros sentado à sua frente estava exatamente igual ao dia em que se conheceram, anos atrás. Ele era o mais fraco. Ark sabia que aquele homem era chamado de estrategista genial e que esse apelido era tão preciso que parecia simplesmente prever um futuro inevitável.
Mesmo assim, levando tudo isso em conta, aquele homem não parecia ter nada de especial. Ark conhecia vários caçadores de nível mais alto do que ele. Alguns eram parecidos com Mil Truques, e outros talvez estivessem até abaixo dele em termos de habilidade de combate. Mas cada um desses caçadores era inegavelmente poderoso. Todos tinham algo que os tornava diferentes dos demais. Quando Ark conhecia esses caçadores pessoalmente, era difícil duvidar de sua força. Infelizmente, o homem à sua frente, apesar de seu alto nível e dos resultados que comprovavam isso, carecia dessa aura avassaladora.
Um cara interessante. O líder de um grupo com membros absurdamente poderosos era absurdamente fraco.
A curiosidade de Ark foi despertada. Esse era o principal motivo para Ark Brave, que havia sido recrutado por clãs antigos e poderosos, ter se juntado à Primeiros Passos. E mesmo após alguns anos, Ark ainda não conseguia compreender a verdadeira essência daquele homem. No passado, ele havia sido comparado a Mil Truques em várias ocasiões, mas isso parecia um erro tolo. Não fazia sentido simplesmente comparar números, e a Tempestade Prateada e Mil Truques não podiam ser analisados tão facilmente. Por exemplo, somar ou subtrair poder de ambos os lados não os tornava equivalentes. Isso não era apenas uma questão de status—os dois haviam trilhado caminhos completamente diferentes. Não estavam sequer na mesma dimensão.
As pessoas ao redor de Mil Truques sentiam inveja. Alguns aspiravam ser como ele, enquanto outros o viam como uma ameaça. Ark Rodin nasceu um vencedor—esse era seu destino. Ele nascera para trilhar seu próprio caminho sozinho e, por isso, não sentia inveja de ninguém. Tudo o que possuía era uma mente inquisitiva que vinha sendo passada adiante desde o primeiro lorde da Casa Rodin.
E assim, “rival” ou “inimigo poderoso” não eram palavras adequadas para descrever a relação entre Ark Rodin e Krai Andrey. “Amigo” era a palavra mais apropriada. Ark, que vinha se ocupando com assuntos de sua casa, foi de repente chamado por Mil Truques, que não demonstrava um pingo de arrependimento por tê-lo convocado. Na verdade, o homem cruzava os braços de forma arrogante, completamente indiferente ao olhar afiado que Isabella lhe lançou.
— Vou ser direto — disse Krai. — Você precisa ir para a casa da Lady Éclair o mais rápido possível. Você vai entender tudo quando chegar lá. Você sabe que nós dois estávamos disputando um leilão por uma Relíquia e que eu perdi, certo?
— Sei — respondeu Ark. — Estive ocupado nos últimos dias, mas ouvi falar sobre isso. Para evitar mal-entendidos, quero deixar claro que não tenho nada a ver com ela. Ela não é uma pessoa ruim, mas tem uma tendência a agir impulsivamente.
Ark era um homem ocupado. Como membro da Casa Rodin, além de suas caçadas, tinha uma montanha de trabalho para administrar. Enquanto a capital se agitava com o leilão, ele não teve tempo de participar da empolgação e estava sempre ocupado, sendo chamado de um lado para o outro. Ele riu ao ouvir que o preço da Relíquia disparou simplesmente porque descobriram que Mil Truques estava interessado nela e ficou surpreso ao saber que Lady Éclair estava envolvida por algum motivo, mas foi só isso. Liz, que estava sentada ao lado de Krai, com as costas retas e as pernas cruzadas, soltou um grito agudo de protesto.
— O quê?! Eu já ia lá, mas agora você quer mandar o Ark?
— O quê?! — Isabella rugiu furiosa. — Você vai usar o Ark como seu capacho de novo?! Ele é um homem ocupado! Vá você mesmo!
Ark suspirou. Ela era uma excelente Maga, mas seu maior defeito era não conseguir se conter sempre que Ark era subestimado ou tratado com desdém.
— O quê?! Como é que é?! — Liz berrou de volta. — Você só está na sombra do Ark! Não ouse falar tão insolentemente com o Krai Baby aqui! Eu vou te matar! Quando a gente manda você ir a algum lugar, a única resposta aceitável é "quando e onde", sua idiota!
— Sombra?! Eu vou te mostrar...
— Agora, agora. Que tal acalmarmos os ânimos? — Sitri interveio com um sorriso e uma palma estalada, interrompendo as duas antes que elas pudessem se levantar. — Vocês estão incomodando tanto o Ark quanto o Krai.
— Tch.
Alguns membros de Grieving Souls e Ark Brave absolutamente se odiavam. Isso não era novidade. Krai parecia mais sério do que nunca, o que fez Ark endireitar a postura.
— Eu tentei, mas ela não me ouviu — confessou Krai. — Ark, essa Relíquia... é perigosa, sabe? Tenho certeza de que você pode fazer algo a respeito. Se você for agora, acho que ainda dá tempo.
Como de costume, as palavras de Krai eram vagas e enigmáticas, mas ele sempre acertava no alvo. Ark sabia disso muito bem. Não era a primeira vez que ele era chamado assim, então deixou todas as perguntas de lado e fez apenas uma.
— Vou precisar da minha arma?
— Hã? Não, acho que não — respondeu Krai. — Na verdade, pode ser até melhor se você não levar nada.
Eu não preciso de armas? pensou Ark. Isso é incomum. Então não se trata de uma batalha? Mas ele disse que era perigoso. Que tipo de situação perigosa não exige armas?
— E se eu não chegar a tempo? — Ark perguntou, franzindo a testa.
Krai inclinou a cabeça para o lado e fez uma expressão preocupada.
— Então eu ficarei triste.
***
Ark acalmou seu grupo, cada um deles me encarando com desdém, e saiu rapidamente do salão. Como eu esperava, Ark aceitou meu pedido. Não pude entrar em detalhes devido à natureza desse pedido, mas ele provavelmente entendeu uma parte das minhas intenções pelas minhas ações e palavras. Eu não esperava menos de Ark Rodin. O caçador mais forte do império também era incrivelmente generoso. Eu adoro esse cara. Ele é um excelente generalista. Você sabia que ele até consegue usar magia de cura? Dá para acreditar? Ele era exatamente o oposto de mim, que não conseguia fazer nada.
Era comum caçadores de alto nível terem membros de grupo poderosos, mas aqueles que iam além disso seguiam sozinhos. Foi exatamente o que Xerxes Zequenz, o homem que fez com que nos, os Grievers, nos tornarmos caçadores e um dos únicos três caçadores de nível 10, fez. Caçadores que estavam um nível acima do resto simplesmente não conseguiam que os outros os acompanhassem.
Ark explorava cofres de tesouros que estavam de acordo com o nível de seus companheiros de equipe. Se trabalhasse sozinho ou entrasse para um grupo mais forte, poderia ter subido de nível muito mais rápido. Seu grupo era praticamente um harém, mas ele ainda conseguia mantê-lo, o que era um tanto incomum para um caçador de primeira classe.
— Isso é tão injusto! — reclamou Liz. — Você sempre depende do Ark! E eu? Dependa mais de mim! Vamos lá! O Luke se foi, eu não posso treinar com a Siddy, e a T é muito fraca! Vou acabar enferrujando! Por favor? Eu faço qualquer coisa!
Ela implorou enquanto se esfregava em mim. Ela tá agindo como meu bichinho de estimação ou algo assim? Você disse que faria qualquer coisa, né? Então, por favor, fique quieta. Eu não tinha reclamações sobre as habilidades de Liz, mas ela era um pouco impulsiva demais.
Suspirei. — Liz, você entende o que eu acabei de pedir?
— Claro! — respondeu ela com um sorriso orgulhoso. — Você quer que eu vá até a casa daquele pirralho idiota e roube aquela Relíquia, né? Deixa comigo!
Você realmente não tem lógica nem bom senso.
— Ah, qual é, isso é moleza comparado a cofres de tesouro — continuou ela. — Os cavaleiros que guardam aquele lugar são todos amadores. Barreiras e essas coisas podem ser um pouco difíceis pra mim sozinha, mas eu só preciso pegar antes que me encontrem, né? Ah, já sei! Talvez eu arraste a T junto!
Por favor, não faça isso com ela. Liz costumava ser mais sensata, mas deve ter se acostumado demais com a bagunça. A máscara já estava resolvida—eu tinha certeza de que Ark a traria de volta. Sitri, a voz da razão, repreendeu sua irmã mais velha com um olhar cansado.
— Liz, você está incomodando o Krai de novo! Ele provavelmente tem um motivo pra achar que Ark é a pessoa certa para o trabalho, e nós temos nossos próprios papéis a cumprir.
— Papéis? — perguntou Liz.
— Juntar dinheiro.
Liz descruzou as pernas, surpresa com a resposta imediata de Sitri. A irmã mais velha então assentiu em concordância enquanto me lançava um olhar.
— Ah, entendi — disse Liz. — Acho que faz sentido. De qualquer forma, nem dá pra pedir isso ao Ark.
— Temos que pagar a Lucia antes que ela volte também — disse Sitri. — É o momento perfeito, não acha?
Espera, o que é perfeito? As duas irmãs continuaram conversando, completamente me ignorando. Acho que irmãs realmente têm algum tipo de conexão telepática que os de fora não conseguem entender. Liz se levantou, agora sorrindo de orelha a orelha, um contraste gritante com sua atitude reclamona de poucos instantes atrás.
— Entendi... — murmurou ela. — Como sempre, os planos do Krai Baby são perfeitamente calculados. Tudo bem, eu faço isso. Quanto antes, melhor, né? Já faz um tempo, mas eles podem estar mais preparados. Você que se cuide, Siddy.
— Eu sei, eu sei — respondeu Sitri.
— Beleza, então acho que vou dar uma aquecida. Te vejo depois, Krai Baby! Vou me esforçar pra trazer boas notícias! Fica aí esperando!
Com um aceno, ela saltou graciosamente para fora do salão. Não parecia que ela ia atrás do Ark, mas eu não tinha ideia do que estava prestes a fazer. Como Sitri estava com ela, eu tinha certeza de que ficaria tudo bem.
— Krai, eu preciso ir com ela também — disse Sitri. — Vou garantir que ela não exagere.
— Claro, uh-huh — respondi. — Só não causem confusão demais.
Eu queria oferecer minha ajuda também, mas provavelmente só atrapalharia. Sitri fechou a mão em um punho e sorriu diante do meu incentivo vazio.
***
Ark retornou à sua base e rapidamente começou a se preparar. Como caçador, mesmo sem planos de explorar cofres de tesouro, ele sempre carregava o mínimo essencial de suprimentos. Sua bolsa dimensional lhe permitia armazenar muito mais do que se imaginaria à primeira vista. Apesar da aparência compacta, a bolsa não apenas possuía um grande espaço de armazenamento, como também parava o tempo dentro dela, impedindo que itens apodrecessem ou estragassem. Era uma relíquia inestimável passada de geração em geração na Casa Rodin; Ark a usava para guardar poções, comida e itens necessários para acampamentos. Ele estava sempre preparado para qualquer situação.
— Nós realmente vamos? — perguntou Saint Ewe, seus olhos cinzentos cheios de preocupação enquanto olhava para seu líder.
Ark sorriu. — Você está ansiosa?
O restante do grupo não expressava tantas preocupações por respeito ao líder, mas todos se preparavam com expressões tensas. Como caçadores de primeira classe, eles embalavam seus equipamentos de forma rápida e eficiente, mas seus rostos diziam que estavam prestes a enfrentar um cofre de tesouro extremamente perigoso.
Se houvesse algo que realmente definisse a Primeiros Passos, não era seu programa de bem-estar para membros nem o poder individual de cada um—não, a verdadeira marca registrada do clã era o Mil Desafios, que o mestre do clã ocasionalmente emitia. Esse Desafio era dado igualmente a todos, e o grupo de Ark não era exceção.
Na verdade, o grupo de Ark servia como o braço direito do clã, o que significava que eram frequentemente chamados para atender às demandas do mestre do clã. Tirando Ark, o resto do grupo sempre dizia que nenhum cofre de tesouro perigoso ou difícil poderia se comparar aos pedidos absurdos e repentinos do mestre do clã, que mal lhes dava tempo para se preparar.
O rosto belo de Ewe estava marcado pela preocupação.
— Estou — ela confessou. — O Krai... tende a te arrastar para muitas coisas.
— Como ele é um nível 8, deveria lidar com isso sozinho — disse Isabella, suspirando profundamente enquanto se envolvia em um manto branco puro que usava para explorar cofres. — Acho que você está mimando ele demais, Ark.
Era verdade que Ark quase nunca recusava os pedidos de Krai. Uma pessoa que temia acontecimentos inesperados jamais poderia se tornar um caçador, e todos os pedidos do mestre do clã realmente exigiam que alguém tomasse atitude para evitar que a situação escalasse e se tornasse um desastre.
— Você não acha que ele deveria agir por conta própria também? — perguntou Isabella, buscando validação. — Ele tem Liz e Sitri ao lado dele.
Ark deu um sorriso exasperado.
— Você está dizendo que essas duas deveriam se encontrar com Lady Éclair? Acho que não teria coragem de fazer algo tão aterrorizante.
— Bem... você tem um ponto. Sinto que Liz realmente entraria em uma briga com uma garota de dez anos. Provavelmente ela nem se importa com ranking ou honra.
— É assustador pensar nisso, mas é uma possibilidade — concordou Armelle, fazendo uma careta severa.
Os Grievers eram bem conhecidos por seu poder e insolência. Ark, que também fazia parte do clã e os conhecia há tempos, sabia que os rumores amenizavam as ações deles. Na verdade, “insolente” nem começava a descrever alguns deles, que se assemelhavam mais a membros exaltados da máfia.
— Talvez fosse uma história diferente se Lucia e Ansem estivessem aqui, mas eles ainda estão fora... — disse Isabella, antes de balançar a cabeça rapidamente. Ela tentou manter sua postura desafiadora, mas estava claro que já não parecia tão convicta. — N-Não, mesmo assim, eles deveriam ter ido sozinhos! Krai consegue convencer aqueles nobres com facilidade, não consegue?!
Logicamente, ela devia ter percebido que a decisão do mestre do clã era sensata, mas emocionalmente, ainda não conseguia aceitar o pedido de bom grado. Éclair podia ser uma criança, mas era uma nobre. Uma jovem orgulhosa que claramente desprezava Krai. O mestre do clã talvez pudesse lidar com ela, mas era evidente que seu amigo Ark era um candidato muito mais adequado para essa negociação.
— Apenas admita, Isabella — disse Ark. — Minha casa tem laços com a Casa Gladis. Se realmente há algo acontecendo com eles, então isso é ainda mais um motivo para eu ir. Não é certo reclamar com Krai.
Embora Ark conhecesse Krai há tempos, ainda não conseguia compreendê-lo completamente. No entanto, independentemente dos outros membros do grupo, nenhuma das provações que Ark havia recebido até aquele momento o tinham irritado. Ele tinha um propósito e o poder de salvar os outros.
Depois de terminar seus preparativos, Ark segurou o cabo dourado opaco de sua lâmina e a puxou da bainha branca. A espada não tinha ornamentos intrincados, mas, quando embainhada, sua aura celestial encantava qualquer um que a visse. Aquela era uma Relíquia do tipo lâmina que, supostamente, o primeiro lorde da Casa Rodin havia usado— a espada sagrada, Historia. Junto com os Rodin, Historia havia salvado muitos de desastres e pavimentado o caminho da história. Entre as inúmeras Relíquias do tipo lâmina, Historia era conhecida como a mais forte de todas; uma lâmina incomparável que ainda não encontrara um item que não pudesse cortar com um único golpe.
Normalmente, ninguém tinha permissão para levar armas para dentro do solar de um nobre, mas Ark era uma exceção notável. Claro, Ark Rodin não era um homem que cairia diante de um guarda ou cavaleiro só porque suas armas haviam sido confiscadas, e Lorde Gladis sabia disso muito bem. Embora Krai tivesse afirmado que uma arma não era necessária, Ark sempre carregava a lâmina sagrada ao seu lado. Enquanto a mantivesse embainhada, não achava que isso causaria problemas. Apesar de confiar em Krai, também sabia que o mestre do clã tinha o péssimo hábito de ocultar informações ao ordenar uma Provação.
Ark estava pronto. Tudo o que restava era visitar Éclair.
Isabella, que também acabara de terminar de se preparar, franziu as sobrancelhas bem desenhadas.
— Ark, o que você acha que ele quis dizer com “Eu vou ficar triste”? Sinto que ele só está brincando com a gente.
— Você é uma pessoa bem sincera, hein? — respondeu Ark. — Agora, por que não nos apressamos? Lady Éclair ainda deve estar no solar dela.
— Hã? O quê? Eu estava errada nisso?
Enquanto Isabella entrava em pânico e os outros membros do grupo lhe lançavam olhares incisivos, Ark seguiu em direção ao solar, onde certamente o caos já estava à espreita.
***
A máscara, que valia mais de duzentos milhões de gild, era mais grotesca do que se imaginava. Éclair já sabia disso de antemão, mas, se tivesse visto o item pessoalmente antes, talvez nem tivesse dado um lance nele. Aquela era uma Relíquia amaldiçoada de efeitos desconhecidos — uma máscara de carne que até mesmo um avaliador experiente havia considerado perigosa.
A Relíquia, que parecia carne crua amassada, se contorcia e pulsava como se estivesse viva. O mordomo da Casa Gladis, que recebera o item no lugar de Éclair, fez uma careta ao vê-lo. Quando as criadas e mordomos inicialmente souberam da vitória da jovem no leilão, todos a encheram de elogios, mas, ao verem a Relíquia, foi evidente que ficaram abalados.
Desde o leilão, Éclair estava trancada em seu quarto no solar. Dentro do quarto escuro, com as cortinas fechadas, a jovem estava completamente sozinha. No dia em que o leilão terminou, sentiu-se tão humilhada e furiosa que chorou em isolamento, mal conseguindo abafar seus soluços. No segundo dia, teve um acesso de raiva, descontando sua fúria em objetos enquanto o arrependimento profundo consumia seu corpo. Chamou os criados várias vezes apenas para gritar com eles e mandá-los embora. Sua atitude era indigna da orgulhosa filha da Casa Gladis, e era difícil vê-la continuar assim.
Ela havia sido alvo de pena. Só isso já era difícil de engolir, mas a Relíquia que obteve parecia tão terrivelmente hedionda que só podia questionar a sanidade do vendedor. Mesmo que fosse um item conquistado honrosamente em uma batalha feroz, sua aparência era tão horrível que ela relutava em entregá-lo a Ark, a quem admirava tanto. Se alguém tivesse a pele arrancada do rosto e alguns traços esculpidos da maneira certa, ficaria exatamente como essa máscara. De fato, “uma máscara de carne” era a descrição perfeita para essa Relíquia medonha. O item, que havia sido tão desesperadamente procurado apenas alguns dias antes, agora estava largado sem cerimônia em cima da escrivaninha ao lado de sua cama.
Éclair não tinha mais nada. Sua cabeça latejava e, embora as refeições fossem deixadas na frente de seu quarto, mal tocava na comida. Ela havia se acalmado consideravelmente nos últimos dias, mas, enquanto jazia em sua cama sem vida, não sentia vontade de fazer absolutamente nada. Estava tão esgotada e sua mente tão fragilizada que já nem nutria mais raiva pelo Mil Truques.
O que... eu faço agora? Éclair pensava, atordoada. Suas ações impulsivas e emocionais a colocaram em uma dívida de duzentos milhões de gilds. Esse dinheiro podia pertencer à sua família, mas ela havia prometido devolver cada gild que tomou emprestado.
O que poderia fazer agora? Deveria vender a máscara que acabou de comprar? Duvidava que alguma empresa estivesse disposta a comprá-la. O preço daquela Relíquia só disparou porque ela entrou na disputa; não podia esperar que alguém pagasse um valor ainda mais alto. Então, deveria simplesmente entregá-la a Ark, como havia planejado inicialmente? Isso estava fora de questão. Éclair não podia chamar aquele leilão de vitória, e presentear alguém com uma Relíquia de efeitos desconhecidos só causaria problemas ao destinatário. Deveria simplesmente descartá-la? Jogar fora um item pelo qual lutou tanto para obter parecia absurdo.
Então... deveria vendê-la para o Mil Truques? Isso soava como a maior idiotice. Apesar de sua interferência no leilão, aquele homem lhe deu essa vitória. Como poderia sequer pensar em vender a máscara de volta para ele? Só a ideia a fazia querer morrer, e ela chegou a engasgar ao imaginar esse cenário.
Sua mente estava cheia de pensamentos e ideias, mas nenhuma delas trazia uma resposta. Mudou de posição na cama e lançou o olhar para a máscara de carne. Éclair, que não estava acostumada a ver itens grotescos, sentiu um enjoo só de olhar para ela. Quando o especialista inicialmente apresentou uma análise de "não pôde ser determinada", ela riu e zombou do homem medroso, mas, ao ver a máscara com seus próprios olhos, entendeu por que o avaliador chegou a essa conclusão. Nem sequer conseguia tocá-la—teria certamente questionado a sanidade de qualquer um que ousasse usá-la.
Só então Éclair percebeu sua confusão. Por que o Mil Truques queria essa máscara? Ela ouviu dizer que ele queria essa Relíquia desde o início, tanto que chegou a negociar com o vendedor antes do leilão. Éclair, as companhias mercantis e outros caçadores decidiram roubar esse item dele assim que souberam disso.
A máscara era tida como a Relíquia mais poderosa, mas agora ela achava difícil acreditar nisso.
— Você deseja poder?
— Hã?
Éclair arfou audivelmente quando uma voz ecoou repentinamente em sua mente.
Ela se levantou num salto, notando o ar frio preenchendo o quarto. De onde isso veio? Instintivamente, levou a mão à espada ao lado do travesseiro. A lâmina que normalmente manejava com tanta graça agora pesava em suas mãos. Mal conseguia arrastá-la para perto de si.
— Tenho observado você. Há um bom tempo. Sua dor, tristeza, raiva e, acima de tudo... desespero. Eu vi tudo. Você é um aglomerado de talento excepcional e brilhante. Seu corpo pode ser frágil, mas isso é algo que posso contornar. Você é uma candidata digna de receber meu poder.
Éclair percebeu de onde vinha a voz.
— A-a máscara está falando?!
Isso era impossível. Por mais horrível que parecesse, o item era uma Relíquia e nada além disso. Não deveria ser capaz de falar! Ela continuava repetindo isso para si mesma em pânico. E, no entanto, não conseguia desviar os olhos da máscara de carne em cima da escrivaninha. Apavorada, sacou sua espada e a ergueu no ar. Com a mão esquerda, foi recuando lentamente. Já enfrentou inúmeros monstros e aparições antes, mas sua lâmina começou a tremer diante dessa presença desconhecida e assustadora.
— Eu posso fazer muito mais do que apenas falar, ser frágil. Sou aquele que impulsiona a humanidade. Dou esperança aos fracos. E é muito conveniente que esteja sozinha. Farei o que deve ser feito—existe um propósito para minha existência... minha mestra.
Éclair engasgou quando a máscara começou a levitar no quarto escuro. Mas o item não estava apenas flutuando—várias protuberâncias semelhantes a tentáculos brotaram dela, erguendo-a no ar.
Impossível! Ninguém ativou a Relíquia! Ela não pode agir sozinha! Não pode ser!
As palavras de um homem de rosto cansado, que tentou negociar com ela antes do leilão, passaram por sua mente.
— É uma Relíquia perigosa.
***
O grupo de Ark foi convidado para a sala de reuniões da mansão da Casa Gladis. O lorde e chefe da família, Van Gladis, contou a Ark os eventos que haviam ocorrido, fazendo o caçador se arrepender de não ter dado uma explicação melhor. Quando Lady Éclair e Krai se encontraram na sede do clã, Ark deveria ter esclarecido qualquer mal-entendido sobre o mestre do clã naquele momento.
Éclair era madura para sua idade, mas ainda era uma criança. Pensando bem, houve momentos em que ela demonstrou insatisfação pelo fato de Ark não ser o mestre do clã, mas apenas o segundo no comando (embora, para ser preciso, aqueles ao seu redor o vissem assim, mas ele nem isso era).
Isabella, que estava sentada ao lado de Ark, estreitou os olhos e sussurrou:
— Eu já tinha pensado nisso quando fiz minha ironia, mas ele é tão imaturo...
— Sinto que ele acredita que isso seja uma Provação... — murmurou Ewe com desprezo.
O esquema do Mil Truques que o grupo ouviu era tão engenhoso e ardiloso que não era algo para se usar contra uma garota que acabara de completar dez anos. Se Éclair estivesse apenas irritada com tudo isso, o evento poderia ser tratado com um riso e esquecido. Mas, como aparentemente ela estava de cama nos últimos dias, ficava claro que o homem havia ido longe demais. Ark se encontrava em uma posição difícil. Ele descobriu que Éclair estava tentando obter a Relíquia por causa dele; ela queria presenteá-lo com a Relíquia mais poderosa para que ele fosse elevado do segundo lugar e superasse o mestre do clã. Ark não se lembrava de jamais ter pedido isso, é claro, mas tinha certeza de que esse era o objetivo de Éclair — ela era tão imatura quanto Krai às vezes.
— Estou honrado em receber o favor de Lady Éclair — começou Ark. — No entanto...
— Ela voou perto demais do sol — disse Van com uma expressão carrancuda, sua voz menos imponente do que o normal. — Ela enfrentou um oponente difícil. Só posso esperar que isso leve ao crescimento de Éclair de alguma forma.
Apesar de ser um homem geralmente rigoroso e severo, Van Gladis também era um pai. Ele estava bastante preocupado com o isolamento repentino da filha. Era verdade que essa recente derrota havia ferido muito o orgulho da pobre Éclair.
No entanto, o verdadeiro problema era que suas ações foram totalmente inúteis. Se Éclair tivesse de fato conseguido uma vitória contra o Mil Truques, esmagando-o espetacularmente e obtendo a Relíquia, então o quê? O item teria sido entregue a Ark, que teria que aceitá-lo com um sorriso. Mesmo que a Relíquia realmente permitisse que ele liberasse todo o seu potencial e ganhasse ainda mais poder, isso não significaria que Ark era melhor que Krai. Desde o início, ele já tinha muito mais habilidade em combate do que Krai. A diferença entre os dois não era uma questão de força bruta. Portanto, mesmo que Ark recebesse uma poderosa Relíquia, isso faria pouca diferença para preencher essa lacuna.
Mas a pequena espadachim já estava mentalmente fragilizada. Como a jovem nobre se sentiria se ouvisse essa verdade agora? Se bastassem palavras para animá-la, Ark as diria sem hesitar, mas Éclair não era do tipo que se deixava confortar com elogios vazios. Ele fez uma reclamação mental ao Mil Truques, que arrastou o homem da Casa Rodin para esse caos. Krai estava lidando com uma criança. Embora caçadores tivessem uma reputação a zelar, sem dúvida havia uma maneira melhor e mais pacífica de resolver essa situação. O plano astuto, que analisou com precisão a rede de contatos e a personalidade da garota, era tão elaborado que Ark se recusava a acreditar que o Krai de sempre faria algo assim.
O mais assustador era que Ark ainda não fazia ideia do que Krai estava planejando. O Mil Truques não era do tipo que simplesmente supunha a posição de um nobre, e um colecionador de Relíquias honesto como ele não desistiria de um leilão sem motivo algum. Enquanto Ark refletia pensativamente sobre suas opções, o Conde Gladis lançou um olhar de desculpas incomum para alguém de sua posição.
— De qualquer forma, embora Éclair tenha se isolado desde sua derrota no leilão, tenho certeza de que ela sairá do quarto agora que você está aqui. Ela tem apreço por você, afinal — disse Van. — Me desculpe, mas poderia conversar com ela um pouco? Achei que não seria certo chamá-lo sem avisá-la, mas tive sorte que você veio.
— Então, irei até ela com prazer — respondeu Ark após um breve silêncio.
Ele não podia contar ao conde que havia sido enviado por Krai. Isabella e o resto do grupo também trocaram olhares desconfortáveis.
Por que Krai nos enviou? Ark se perguntou. Seria para confortar Éclair? Será que Krai achava que tinha ido longe demais dessa vez? Ark tentou se lembrar da expressão de Krai no salão, mas o Mil Truques era um homem difícil de ler. Seu apelido não era à toa, e ele mantinha uma poker face impecável.
Queria que ele mostrasse suas habilidades de outra forma. Krai era tão diferente de Ark que isso estava se tornando um fardo grande demais para o homem da Casa Rodin suportar.
— Criar filhos é mais difícil do que imaginei. Não pensei que ela se trancaria no quarto por causa de uma única derrota — admitiu Van, soltando um suspiro enquanto se inclinava para frente.
— Ela é uma jovem forte. Tenho certeza de que logo se recuperará — consolou Montaure, de pé atrás dele.
O que Ark poderia dizer? Havia alguma maneira de recusar a Relíquia? Em vez de apenas oferecer palavras, talvez dar uma aula de esgrima ajudasse a distraí-la, ele pensou. Justo quando tentava encontrar a melhor abordagem, um grito agudo cortou o ar.
Montaure imediatamente ficou em alerta, seus olhos percorrendo os arredores com atenção.
— O que foi isso?!
— Ark! À sua esquerda! — gritou Benetta, apontando para a entrada. Sendo uma Ladina, seus instintos eram mais afiados que os da maioria.
A mansão do nobre era fortemente vigiada, e a segurança contratada por Lorde Gladis era mais poderosa que a maioria dos caçadores. O grito que acabaram de ouvir era de um homem, e estava claro que ele estava em extremo sofrimento. Isso não era um assunto trivial.
— Eu vou na frente! — gritou Ark, avançando antes que Montaure pudesse dar qualquer instrução.
Ele escancarou a porta e disparou pelo amplo corredor e pelo tapete luxuoso junto com seus companheiros de equipe. Comparado aos cofres do tesouro que já havia conquistado, a mansão era muito mais fácil de navegar. As criadas que também ouviram os gritos congelaram no lugar enquanto Ark e seu grupo avançavam. Os gritos não paravam. Mais um, e outro, até que o som de vidro se estilhaçando ecoou por toda a mansão. Isabella e o restante do grupo expressaram sua preocupação enquanto corriam adiante.
— Por que estamos ouvindo gritos dentro da mansão do Lorde Gladis?!
— Talvez a Liz tenha tentado roubar o lugar.
— Se a Liz estivesse aqui, não estaríamos ouvindo gritos!
Eu sabia! Isso não era apenas uma questão de consolar Lady Éclair! — pensou Ark. Ele tentou entender a situação. Como o conde estava na sala de reuniões, provavelmente era melhor garantir a segurança de Éclair primeiro. Como nada de anormal havia ocorrido até agora, Ark baixou a guarda, assumindo que havia chegado a tempo. Não, a verdadeira luta começa agora. Eu tenho minha arma, minha energia mágica e minhas poções. Ele veio preparado e estava confiante de que poderia repelir até mesmo um dragão.
Benetta, que vinha liderando o caminho, parou de repente. De uma esquina, um guarda vestindo a armadura com o brasão da Casa Gladis voou para fora em uma velocidade impressionante, chocando-se contra uma parede. Eles se aproximaram do cavaleiro caído. A armadura que protegia suas áreas vitais estava esmagada, e ele rolou para o chão sem se mover um músculo.
Num instante, Ark analisou os ataques do inimigo. O guarda havia sido derrubado, mas não tinha ferimentos visíveis, o que indicava que fora lançado para trás apenas pela força do golpe. Embora esses guardas fossem, em sua maioria, homens grandes vestindo armaduras, qualquer caçador veterano (incluindo Ark) poderia fazer o mesmo se tentasse. No entanto, esse não era um método de combate preferido—era incrivelmente ineficiente. Mesmo que um inimigo estivesse apenas com um porrete em mãos, era muito mais eficaz atacá-lo de cima e abatê-lo com um único golpe do que jogá-lo para trás. E se ele não tem nenhum corte ou ferida...
— Ele está bem. Ainda está vivo.
— Sim. — Ark concordou.
Levando em conta o tamanho da mansão, o alvo não devia ser muito grande, e não havia presença de algo colossal. Seria um levante? Uma tentativa de assassinato? Será que um certo Ladino tentou se infiltrar na casa e roubar a Relíquia de Éclair? Mil possibilidades passaram pela mente de Ark, mas uma coisa era certa: era estranho que algo assim estivesse acontecendo na mansão do conde.
Isabella ergueu sua varinha, enquanto Armelle desembainhava sua espada. Os Braves, que já haviam conquistado inúmeros cofres misteriosos, estavam sempre atentos ao que acontecia ao redor. Eles estavam em uma mansão nobre. Com o tempo, mais soldados se reuniriam naquela área. Mas se o inimigo estava atrás de Éclair, não havia um segundo a perder.
Ark murmurou um breve encantamento, fazendo relâmpagos envolverem seu braço esquerdo. A eletricidade arroxeada que percorria sua pele era pequena, mas poderosa o suficiente para derrubar um homem robusto—esse era o golpe característico de Ark Rodin.
Uma pequena sombra surgiu lentamente na esquina do corredor, fazendo os Braves paralisarem de horror.
— Gh... N-Não me olhem assim... Não olhem pra mim desse jeito! Não temam. Não invejem... Vocês são fracos. Eu sei que são mais fracos do que eu! Raaaaah!
Seu vestido branco puro estava em farrapos. A espada pendurada em sua cintura era uma lâmina pequena que seu pai comprara para ela em seu aniversário. Seus cabelos dourados, normalmente bem alinhados, estavam completamente bagunçados, e ela cambaleava descalça.
Isabella empalideceu e deu um passo para trás. Ewe cobriu a boca com a mão, e até as bochechas de Benetta estremeceram enquanto ela ajustava sua postura. Diante deles estava a garota que Ark fora chamado para encontrar, mas que agora havia passado por uma transformação horrenda.
Uma massa de carne rosada envolvia e ocultava seu rosto. Buracos haviam sido perfurados para que seus olhos azuis e injetados de sangue pudessem espiar, e seu olhar fixo se cravou em Ark. A carne que grudava em suas bochechas se contorcia grotescamente, e uma rápida observação era suficiente para perceber que estavam diante de uma entidade aterrorizante. O horror só aumentava à medida que ficava óbvio que essa era Éclair.

O pequeno corpo dela emanava um poder terrível, que parecia distorcer o ar. Aquilo era completamente diferente da Éclair que todos conheciam; uma aura gélida a envolvia. Ark optou por não repreendê-la nem chamá-la.
— E-eu entendo — ele cuspiu. — Você usou a máscara. Não precisa de uma espada. Eu... certamente não esperava por isso.
— Ugh... — Éclair gemeu, como se estivesse presa em um pesadelo. — A... A... Ark?
O que exatamente Krai estava tentando coletar aqui?! Ark já tinha enfrentado inúmeros monstros estranhos e fantasmas no passado. Haviam plantas que caçavam humanos desavisados e aranhas colossais com mais de dez metros de altura. Ele já havia enfrentado pequenos dragões que atacavam em bando com centenas de membros, além de uma armadura vazia que se movia com a habilidade de um espadachim experiente. Mas nunca tinha visto nada como aquilo antes. Nem mesmo um caçador experiente como ele já havia encontrado uma máscara capaz de tomar o controle do corpo de alguém.
O corpo de Éclair permanecia quase inalterado. Pelo formato da silhueta, ela não parecia diferente. E justamente por isso a máscara que cobria seu belo rosto parecia ainda mais horrenda.
— Urgh... Minha cabeça... Minha cabeça... — Éclair gemeu, cambaleando e apoiando sua pequena mão na parede para tentar se equilibrar.
A estrutura rangeu e pequenas rachaduras se formaram onde ela tocou. A força que possuía ultrapassava em muito a de qualquer humano normal. Claro, Ark conseguiria fazer algo semelhante, mas a garotinha à sua frente não era uma caçadora. Éclair podia ter talento, mas isso só a colocava acima das crianças da sua idade — ela não deveria ter a técnica, a força ou a energia mágica necessárias para derrubar um guarda treinado.
Ou pelo menos era o que eu pensava..., Ark murmurou internamente.
Então o que era essa cena diante dele? Um dos guardas rolava no chão, um enorme amassado em sua armadura. Se Éclair tivesse feito isso com um único soco ou chute, ela já possuía força equivalente a um caçador de nível médio. Existiam algumas Relíquias que aumentavam as capacidades físicas do usuário, mas Ark nunca tinha ouvido falar de um item que concedesse a uma garota tão jovem uma força explosiva.
Não havia ferimentos visíveis em seu corpo. Somente o rosto dela havia se transformado, e não havia sinais de que a máscara de carne estivesse se espalhando para o resto de seu corpo. Ark fechou o punho esquerdo, dissipando a eletricidade roxa que envolvia seu braço. Ele poderia se conter, mas não queria usar um feitiço que poderia paralisar completamente um monstro ou um fantasma em Éclair. Não podia lutar com tudo que tinha, como fazia normalmente em cofres de tesouro, destruindo a área com seus raios.
— Ela me chamou pelo nome... — ele murmurou. — Ela ainda mantém... consciência?
Ele não queria recorrer à violência. Parecia que o corpo dela não havia sido totalmente dominado, então Ark sabia que precisava agir com cautela. Será que eu posso remover essa máscara? Se for possível, como devo fazer isso? Éclair ainda carregava uma espada na cintura, mas não a havia desembainhado — esse era o único motivo pelo qual os guardas espancados ainda estavam vivos. Ainda havia uma maneira de reverter aquela situação.
— Ark... Ah... Obrigada por... vir. Eu... — Éclair murmurou, atordoada.
— Lady Éclair, consegue me ouvir? — Ark perguntou.
O pequeno corpo dela cambaleou alguns passos em sua direção. Os companheiros de Ark lentamente se espalharam, prendendo a respiração para evitar provocar a garota e mantendo os olhos atentos a cada movimento.
— Ark... — Benetta sussurrou.
— Eu sei. — Ark assentiu.
A situação que eles precisavam evitar a todo custo era a máscara trocar de hospedeiro. Se ela tinha a capacidade de transformar uma inexperiente Éclair em uma caçadora de nível médio, então, se decidisse se prender a Ark ou a um dos Braves, isso os tornaria exponencialmente mais poderosos. Se Benetta ou Isabella fossem possuídas, ainda havia uma chance de detê-las, mas se Ark fosse a vítima, tudo estaria acabado. Provavelmente, poucas pessoas dentro da capital teriam poder suficiente para detê-lo.
Uma Relíquia possuindo um humano parecia algo absurdo, mas o impossível já havia acontecido diante dos olhos deles. Éclair não respondeu às palavras de Ark.
— Eu... sou forte. Fiquei forte. Não vou perder para ninguém... nunca mais. Não vou perder para caçadores, cavaleiros ou até para meu pai. Eu nunca... — ela murmurou, completamente descontrolada.
As palavras apaixonadas dela soavam mais como uma obsessão sombria. Éclair sempre foi uma garota ambiciosa, mas nunca ansiou tão desesperadamente por poder. Pelo menos, ela não era alguém que, por conta própria, escolheria usar uma máscara dessas. Para o bem ou para o mal, ela era uma garota honesta e determinada.
— Minha senhora?! — os guardas exclamaram em horror ao se aproximarem da confusão. — Por que você...
— Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! Não me olhem com esses olhos! — Éclair rugiu, sua voz carregada de fúria e tristeza.
Ela se inclinou para frente, curvando as costas ao dar um passo e se impulsionar num piscar de olhos. Seu poder, velocidade, agilidade e instinto estavam muito além do que uma garotinha poderia alcançar apenas alguns dias atrás. A posição exagerada com que se lançou para frente era semelhante ao estilo de luta preferido por Espadachins agressivos. No entanto, suas mãos nunca tocaram a lâmina.
Os guardas congelaram em pânico ao verem a dama que deveriam proteger investindo contra eles, e Éclair usou essa hesitação para reduzir a distância num instante. Seus pequenos punhos atingiram seus plexos solares.
Cada soco carregava uma força aterrorizante. O som metálico de armaduras sendo esmagadas ecoou pelo ar enquanto os guardas eram arremessados para trás, a dor aguda dominando seus corpos.
Éclair possuía uma espada prática, o que era bastante incomum para uma nobre. Ela poderia usá-la para se defender, e sua lâmina era afiada o suficiente para cortar seus oponentes. Se seus punhos sozinhos eram capazes de destruir armaduras, sua espada sem dúvida teria partido aqueles guardas ao meio, armadura e tudo.
— Gaiola Hipnótica — Isabella entoou.
Ela aproveitou o momento em que Éclair estava de costas e envolveu a garota em uma luz azul. Esse feitiço manipulava o estado mental da vítima e a forçava a dormir. Embora não fosse eficaz contra monstros poderosos e fantasmas, certamente era mais do que suficiente para uma pessoa normal que mal havia absorvido qualquer material de mana. O corpo da jovem vacilou ao ser atingido diretamente pela luz. Mas logo firmou os pés no chão—ela havia resistido ao feitiço.
Isabella ficou atônita. Tinha certeza de que seu feitiço deteria a garota descontrolada, mas Éclair se virou sem sofrer nenhum dano notável.
— E-eu tenho certeza de que a peguei desprevenida! — disse Isabella.
Feitiços psicoativos tinham mais chances de sucesso quando o alvo não os esperava. Éclair não deveria ter resistência a ataques desse tipo, mas o fato de não ter sido afetada indicava que a máscara havia fortalecido seu estado mental e a tornado imune. Guardas surgiram atrás da jovem e ao lado de Ark, lançando-lhe inúmeros olhares. Ela deu um passo à frente. A máscara escondia boa parte de seu rosto, mas seu tom de voz expressava seu estado mental.
— Não! Por quê?! Por quê?! Não... olhem para mim! — ela gritou. — Ugh... Eu... vou matar vocês! Vou matar todos vocês!
Seu grito estridente era familiar, mas suas palavras não condiziam com seu eu habitual. Os guardas que a cercavam trocaram olhares confusos. Os soldados contratados e treinados pela Casa Gladis eram guerreiros genuínos. Todos eram fortes, mas conheciam Éclair muito bem. Alguns até treinavam com ela diariamente. Ela ainda não havia atingido todo o seu potencial, mas nunca pulava seus treinos diários, e sua honestidade era algo que os outros admiravam. Ela nunca desdenhava nem zombava de seus guardas.
— Aqueles que me zombaram e humilharam... — Éclair rosnou.
Ela arranhou violentamente a máscara de carne que envolvia seu rosto, mas nenhum sangue escorreu daquele pedaço pulsante de carne, e não havia qualquer sinal de que se desprenderia da jovem. Isso não era bom. Éclair parecia claramente mais agitada do que alguns momentos atrás, e os guardas que haviam chegado começaram a se afastar da garota monstruosa com a máscara. Confusão e medo rapidamente se espalharam pelo local.
— Afastem-se, todos! — Ark gritou, avançando. — Eu vou negociar com ela.
Armelle, que estava ao seu lado e pronta para lutar, ergueu a voz.
— Entendido. Vocês ouviram! Todos, afastem-se!
As visitas frequentes de Ark à mansão jogaram a seu favor. Os guardas que cercavam Éclair pareceram visivelmente aliviados ao se afastarem. As pequenas mãos que arranhavam violentamente a máscara pararam, e Ark aproveitou a oportunidade para se aproximar lentamente.
Ele não tinha certeza dos efeitos da máscara, mas quase podia garantir que era um artefato psicoativo que mexia com a mente do usuário. Ainda assim, Éclair segurava um fiapo de sanidade, e, julgando por suas reações anteriores às mudanças na situação, a Relíquia parecia lhe conceder poder em troca de intensificar certas emoções. Ela ainda estava instável, mas, se restasse um mínimo de razão nela, ainda havia espaço para negociação. Se conseguisse acalmá-la, talvez houvesse outro meio de desescalar a situação.
Se houvesse um confronto entre a Éclair atual e os guardas, certamente haveria mortes. E isso era algo que Ark queria evitar a todo custo. Ele abriu os braços, mostrando que não representava ameaça, e falou com ela.
— Lady Éclair, por favor, acalme-se.
— Hrgh... Ugh... Ark... — Éclair gemeu.
Ele respirou fundo e sorriu, esperando que isso acalmasse sua mente. A jovem deu um passo, depois outro, em direção a Ark, seus movimentos sem qualquer hostilidade. Para ele, ela parecia uma criança perdida.
— Eu consegui. Eu venci... — murmurou Éclair.
— Conseguiu — Ark concordou.
— E agora... enquanto você tiver este item, pode se tornar o mais forte, Ark. Foi para isso que fiz tudo isso. Lutei unicamente por esse motivo. Então, por quê... — Suas palavras foram lançadas contra ele, mas pareciam mais um lembrete para si mesma sobre por que estava fazendo tudo aquilo. Seu tom carregado de tristeza transbordava arrependimento.
— Muito obrigado, Lady Éclair.
Ele expressou sua gratidão com cuidado. Os métodos de Éclair estavam errados. Poder e vitória não podiam simplesmente ser entregues por outra pessoa—eles tinham que ser conquistados com as próprias mãos. Lorde Gladis provavelmente compartilhava dessa opinião, e Éclair normalmente também entenderia a importância disso. Ela havia sido arrastada por suas emoções e iludida pelos rumores que cercavam o item, o que a levou a agir impulsivamente. No entanto, sua voz claramente carregava arrependimento. Ela não queria o poder da máscara. Quando enfrentou os guardas, não desembainhou sua espada, provavelmente porque evitou fazer isso instintivamente.
Se esse fosse o caso, ainda deveria haver um jeito de remover a máscara. O item em seu rosto era uma Relíquia e exigia mana para ser ativado. Mesmo que não pudesse ser removido agora, havia uma boa chance de que se desativasse por conta própria com o tempo. Ark também poderia consultar os Mil Truques, que o haviam metido nessa confusão. Era óbvio que Krai merecia ser duramente repreendido por suas ações, mas, mesmo assim, isso era simplesmente demais. Como alguém poderia fazer isso com uma nobre? Se Ark não conseguisse resolver esse problema sozinho, estava determinado a arrancar a solução dos Mil Truques à força.
Ark abaixou lentamente o braço direito, estendendo a mão para Éclair.
— Posso segurar sua mão?
Um longo silêncio se seguiu. Os olhos arregalados por trás da máscara de carne encararam Ark por um tempo antes que ela, silenciosamente, erguesse sua pequena e trêmula mão.
— A... A... — a garota começou.
Os Bravos observavam com a respiração suspensa, enquanto dedos trêmulos roçavam as bochechas dela. À primeira vista, parecia que a máscara havia se fundido ao rosto de Éclair, mas, olhando mais de perto, havia uma separação nítida entre os dois. Se Ark não tivesse chegado a tempo e Éclair tivesse usado a máscara por mais alguns instantes, será que ela teria se fundido completamente ao rosto dela? Logicamente, isso não parecia possível, mas ao se lembrar de sua interação na sede do clã, ele não pôde evitar um calafrio. Se, por algum motivo, Ark não tivesse acreditado nas palavras do mestre do clã e, por isso, não tivesse visitado a mansão, inúmeras pessoas poderiam ter morrido. Um soldado como o Conde Gladis poderia ter escolhido matar a própria filha para proteger todos os outros. Até onde iam as previsões de Krai? Ele realmente previu essa situação?
Ark sabia que Krai não era um homem maligno. No entanto, essa situação fez o herdeiro da Casa Rodin reconsiderar seus pensamentos. Talvez ele tivesse sido ingênuo demais. No momento em que Éclair tocou a máscara, ela congelou no lugar.
— O que houve, Lady Éclair? — Ark perguntou.
O ar ficou tenso por um momento enquanto a garota permanecia em silêncio. Ela não estava olhando para Ark—seu olhar azul e arregalado estava fixo em sua cintura, onde ele carregava sua espada branca. Historia era uma arma que simbolizava a Casa Rodin; uma espada sagrada que esmagava o mal. Era uma lâmina tão poderosa que Éclair implorava para vê-la com os próprios olhos toda vez que Ark visitava a mansão. Historia possuía poder suficiente para partir uma montanha ao meio com um único golpe e era considerada uma das melhores Relíquias do tipo lâmina. Ark não tinha intenção de usar sua espada contra Éclair, e sequer lembrava que ela estava presa à sua cintura até agora. Os olhos da jovem mudaram completamente, e as palavras do Mil Truques ecoaram na mente de Ark.
— Na verdade, talvez fosse melhor se você não carregasse nada consigo.
— A... Agh... Ahhh... Por quê?! — Éclair gritou, sua voz carregada de desespero.
Houve um brilho de aço frio. Ark conseguiu recuar a tempo e esquivar do golpe furioso por um triz. Éclair saltou para trás com agilidade, agarrando sua espada, que mantinha embainhada contra os guardas. Lágrimas de sangue escorriam dos olhos da máscara enquanto gritos ecoavam pelo salão.
— Por quê?! Ark, por que você está com essa espada?! — Éclair gritou.
O sorriso de Ark desapareceu, e ele encarou a jovem com seriedade enquanto ela se preparava para a batalha.
***
— Nossa, eu nunca pensei que aquele pedaço de lixo perigoso fosse transformar alguém num centimilionário! — Eigh exclamou.
— O povo de Zebrudia é mais do que generoso — um Espadachim riu alto em resposta.
Arnold e o resto do seu grupo estavam em uma taverna, um anexo de uma pousada cara dentro da capital. Diante de um saco de couro abarrotado com duzentos milhões de gild, celebravam sua nova fortuna. Para um caçador de nível 7 como Arnold, essa quantia não era pouca coisa. Para conseguir esse dinheiro, eles teriam que encontrar um cofre de alto nível ou caçar monstros lucrativos e eliminar vários deles. Mesmo assim, haveria gastos necessários, e raramente conseguiriam duzentos milhões de gild em lucro líquido.
Com esse dinheiro, poderiam comprar armas e armaduras excelentes. Poderiam adquirir Relíquias valiosas que os salvariam de enrascadas. Festins luxuosos e bebidas deliciosas ajudariam a elevar o moral, e até poderiam comprar uma casa para usar como base. O Névoa Caída havia acabado de concluir uma longa jornada e estava sem dinheiro—o preço exorbitante colocado na máscara de carne foi um raio caído do céu, mas um muito bem-vindo.
— Fiquei chocado quando ouvi que o Mil Truques estava se metendo nisso. Ele é um mensageiro da sorte.
— E você mesmo é um cara de sorte, Arnold.
— Não deixem isso subir à cabeça — Arnold disse, repreendendo seus subordinados com leveza. — Ainda não conhecemos bem esta capital.
Os subordinados podiam estar se gabando um pouco demais, mas quem poderia culpá-los? Ninguém em Nebulanubes queria tocar naquela máscara, então Arnold a colocou em leilão por capricho. Desde então, as coisas tinham corrido perfeitamente. Ele ficou surpreso quando o Mil Truques ofereceu comprar o item, mas o preço havia inflacionado tanto que parecia um sonho. Arnold inicialmente planejava vender o item por uma ninharia; jamais imaginou que ele se tornaria algo valendo duzentos milhões de gild.
— Como estavam falando tanto sobre isso, achei que ia render um pouco mais — um deles confessou. — Acho que a entrada de um nobre acabou jogando contra nós.
— A gente praticamente teria pago alguém para se livrar dessa Relíquia, mas, no fim, embolsamos duzentos milhões — Arnold respondeu. — Isso já é mais do que suficiente.
— Bom, nisso você tem razão...
De fato, era um pouco decepcionante que o preço tivesse parado nos duzentos milhões, mas não era sábio ser ganancioso demais.
Arnold sorriu e brincou:
— Heh heh. Além disso, se fizermos dinheiro demais, teríamos que pagar um chope para o Mil Truques, não acham?
— Hahaha! Eu não duvido!
Fazia tempo que Arnold não ficava de tão bom humor. O Mil Truques devia estar rangendo os dentes com esse desfecho inesperado. Isso era suficiente para satisfazer Arnold por enquanto. Ele não conseguiu sua vingança completa, mas poderia deixar isso de lado por ora. Depois de saciarem a fome e a sede, conferiram os fundos e viram que mal tinham feito cócegas na fortuna de moedas de prata que tinham acumulado. Poderiam relaxar e não fazer nada por um tempo, mas Arnold não veio para a capital para ficar à toa.
— Esses duzentos milhões de gild vão apenas nos dar uma ajudinha — Arnold rosnou. — Vamos nos preparar para nosso próximo cofre do tesouro.
— O quê?! Sério?!
Seu grupo protestou com vaias. Duzentos milhões de gild era muito dinheiro, mas desapareceria num piscar de olhos se precisassem comprar o equipamento necessário. No entanto, esse gasto valeria cada centavo se garantisse que voltassem vivos. A riqueza para caçadores de tesouros era sempre passageira. Arnold viu os olhares críticos de sua equipe e sorriu de canto.
— Claro, vamos descansar um pouco antes — ele disse.
Seus companheiros vibraram com entusiasmo. Era fundamental que todos estivessem com o espírito elevado para progredirem nas explorações. Com seus planos futuros para a capital em mente, Arnold assentiu, satisfeito.
À medida que a noite avançava, Arnold arrastava seus companheiros de equipe exaustos enquanto eles retornavam animadamente para a porta de seu quarto.
— Tch, vocês beberam demais — reclamou Arnold.
— Acho que não tinha como evitar. Temos tido um azar danado ultimamente... — respondeu um dos membros do grupo.
Embora fosse importante manter o moral do grupo, era raro que estivessem tão bêbados a ponto de mal conseguirem ficar de pé. Arnold abriu a porta do quarto com cansaço, quando um grande objeto saltou sobre ele. Ele arfou e instintivamente cerrou os punhos, revidando contra seu agressor. Seu punho acertou algo duro. Arnold imediatamente mudou de postura, segurou sua arma nas costas e avançou para dentro.
Como haviam acabado de ganhar uma boa quantia em dinheiro, ele estava em alerta. Qualquer um poderia facilmente verificar a lista de vendedores e encontrar o nome de Arnold ao lado da máscara. Mas ele achava que seus medos eram infundados; não esperava que alguém fosse tão idiota a ponto de tentar roubar um caçador de Nível 7.
O quarto estava todo iluminado, revelando a entrada, a sala de estar, a área de reuniões, pinturas e plantas ornamentais. Próximo à mesa onde Arnold e sua equipe haviam se reunido antes de sair para explorar, estava seu agressor, sentado de maneira desleixada no lugar onde Arnold costumava se sentar. O invasor cruzou as pernas com arrogância, e Arnold percebeu que o vaso decorativo da sala havia sido arremessado contra ele assim que entrou. Ele reconhecia aquele cabelo loiro-morango amarrado de sua agressora, que agora se virou para encarar Arnold e seus companheiros, com uma máscara esquelética cobrindo o rosto. Arnold congelou, sem esperar encontrá-la ali, mas a intrusa não se preocupou em esconder sua identidade ao falar com arrogância.
— Droga, seus inúteis estão atrasados! Desde quando vocês, desgraçados, ficaram tão cheios de si pra me fazer esperar? Hmm? Anda, fala! Eu sou a grande Liz, droga! E eu tenho coisas mais importantes pra fazer do que perder tempo com vocês, idiotas! Eu vou acabar com vocês!
— O que... isso significa? — perguntou Arnold, instintivamente apontando sua espada colossal para ela, enquanto tentava suprimir sua raiva. A voz dela apenas lhe trazia lembranças detestáveis.
Os outros membros, mesmo bêbados e cambaleando, conseguiram agarrar suas armas também. Arnold havia trancado o quarto. Outra pessoa com uma máscara de caveira estava sentada ao lado de Liz, com as mãos à frente, e o repreendeu.
— Por favor, acalme-se, Arnold — disse ela. — Não estamos aqui para lutar. Não nos entenda mal. Estamos aqui apenas para falar sobre a nossa parte do dinheiro.
Arnold e seu grupo estavam prontos para atacar a qualquer momento, analisando as duas mulheres mascaradas. Embora houvesse um motivo esquelético nas máscaras, o design predominantemente negro obscurecia completamente suas expressões, até mesmo seus olhares. Nenhuma pessoa normal usaria uma máscara assim, e parecia mais algo apropriado para um sindicato de magia ou um culto. Elas realmente queriam esconder suas identidades?
A dupla sentada não demonstrava qualquer medo. A Sombra Partida tinha jogado os pés sobre a mesa com arrogância, como se fosse a dona do lugar. A Ignóbil soava educada, mas não havia um pingo de ansiedade nela. Elas deveriam estar em território inimigo, mas suas ações eram audaciosas demais.
— V-Vocês são um grupo fantasma?! — gritou Eigh, sua voz subindo uma oitava.
— O que você quer dizer com "sua parte"? — perguntou Arnold.
Atualmente, não havia rumores sobre as Grieving Souls serem um grupo fantasma, mas a dupla infiltrada parecia muito acostumada com esse tipo de situação. Claramente, essa não era a primeira vez delas. Será que elas eliminavam qualquer testemunha? Ou será que os Grievers tinham uma reputação que fazia os outros fecharem os olhos para certas atitudes? De qualquer forma, isso era um método bem desagradável de agir.
Se Arnold estivesse lidando com alguns bandidos, resolveria o problema rapidamente, mas estava enfrentando caçadores que haviam absorvido material de mana, assim como ele. E seu grupo inteiro estava bastante embriagado. Ainda podiam lutar, mas não estavam em sua melhor forma.
Sitri falou calmamente, como se tivesse lido seus pensamentos e quisesse tranquilizá-lo.
— Por favor, não fiquem tão na defensiva. Nosso líder deseja resolver isso pacificamente. E este não será um mau negócio para a Névoa Caída.
— Siddy, você está sendo boazinha demais — disse Liz. — Eles nos atrasaram e estão nos causando problemas. Tem que fazer isso do jeito certo.
Ela bateu uma das pernas na mesa e encarou Arnold através da máscara. Sua aura era semelhante à de um espectro enquanto exalava uma intenção assassina. Arnold e seu grupo já haviam derrotado grupos fantasmas no passado, mas o olhar afiado dela era diferente de qualquer coisa que ele já tivesse experimentado. A habilidade de combate dela provavelmente era equivalente à de Arnold, um caçador certificado de Nível 7. Seu equipamento era focado em empunhar sua espada colossal, priorizando poder em vez de agilidade. Ele era um oponente ruim para Liz. Tino havia demonstrado vestígios de talento, mas a mulher à sua frente era a forma aperfeiçoada disso.
Enquanto o ambiente permanecia tenso, pronto para explodir a qualquer momento, Sitri fez uma expressão preocupada e cutucou o ombro de Liz. A Sombra Partida estalou a língua e tirou os pés da mesa. Elas não estavam ali para lutar.
Enquanto a Névoa Caída continuava de pé, Sitri suspirou levemente e disse:
— Estamos falando do leilão. Arnold, o preço da sua Relíquia disparou por causa dos planos do Krai. Temos o direito de reivindicar uma parte dos seus lucros.
— Isso está fora de questão. Embora seja verdade que eu não esperava que o preço fosse tão alto, vocês não têm crédito nisso. Nós fomos os responsáveis por trazer a Relíquia. Isso é apenas um resultado das ações impensadas do seu líder — refutou Arnold.
— Krai não deu um único lance naquela máscara. Você pode verificar isso por conta própria.
— O quê? — perguntou Eigh, perplexo.
A máscara ocultava sua expressão, mas Sitri parecia estar rindo.
— Os mercadores, nobres e caçadores estavam todos sendo manipulados pelos rumores que Krai espalhou. Vocês não perceberam isso, não é?
Arnold não havia notado. Isso era verdade. Quando Krai chegou para negociar, ele não parecia estar mentindo nem um pouco. Suas expressões, sua voz, seus pequenos movimentos e até a surpresa que demonstrou quando o nobre apareceu pareciam genuínos. Arnold mal podia acreditar no que ouvia enquanto encarava a dupla mascarada à sua frente. Será que Krai estava blefando o tempo todo? Será que o Mil Truques era muito mais astuto do que ele imaginava?
— Que idiotice — conseguiu murmurar Arnold. — Por que ele—
— Isso é um segredo — interrompeu Sitri. — Mas aposto que você pensou algo como “Não acredito que essa Relíquia que ninguém queria passou a valer mais de cem milhões de gild. Só pode ser um sonho.” Estou errada?
Arnold se lembrou da conversa que teve na taverna. Não podia negar que pensara exatamente isso. Aquela Relíquia parecia horrível e não podia ser avaliada. O bom senso dizia que um item assim jamais seria vendido por duzentos milhões de gild. Se tudo isso fosse resultado de manipulação, não podia evitar concordar.
— Graças a você, também cumprimos nossos objetivos. Temos que lhe agradecer — disse Sitri, inclinando levemente a cabeça antes de continuar. — No entanto, mesmo sem ter ciência disso, você obteve um lucro muito maior do que esperava. Como caçadores, não podemos permitir que pense que saímos perdendo nessa. É disso que se trata nossa parte.
A voz dela era calma, mas a pressão que exalava era avassaladora. Falava com confiança, como se estivesse simplesmente afirmando uma verdade, mas Arnold não podia aceitar esse acordo. Mesmo que Sitri estivesse certa sobre o plano dos Mil Truques, não havia motivo para que ele lhes pagasse. Mas recusar essa negociação diretamente era arriscado.
Por um instante, ponderou suas chances, calculando os prós e contras de cada situação. Os verdadeiros perdedores do leilão foram os nobres. Se descobrissem que Arnold estava envolvido na manipulação do preço do item, as coisas poderiam se complicar rapidamente.
Mesmo que insistisse que não sabia de nada, fazer inimigos entre os nobres afetaria seus planos futuros. Esse acordo claramente era ilegal, mas lidar com caçadores habilidosos o bastante para manipular informações e transformar lixo em uma fortuna não era algo simples. Tinha aliados na Terra das Névoas, mas poucos dentro da capital.
— Estão tentando me chantagear? — perguntou Arnold.
— Nossa, já dissemos que isso é só uma negociação — respondeu Liz. — Além disso, essa capital é o nosso território, né? Hmm? Vai, pensa bem. Você nos fez servir bebida, nos deixou esperando uma eternidade, e só estamos pedindo duzentos milhões de gild em troca. É o seu dia de sorte, viu! Ou então, eu te mato.
Duzentos milhões? Foi isso que ela disse? Arnold pensou. Aquilo não era uma “parte” dos lucros, era tudo o que tinham. Como havia uma taxa de processamento ao submeter um item ao leilão, a Queda da Névoa ficaria no prejuízo. Não havia como aceitar um acordo tão injusto. Seus companheiros, pálidos, começaram a encarar os dois intrusos. Era óbvio que não aceitariam aquela negociação.
Arnold era um caçador de nível 7 e liderava um grupo de oito pessoas. Estavam sendo subestimados. Se simplesmente pagasse, estaria acabado como caçador. Seu grupo desmoronaria. A negociação falhou; Arnold e o restante da Queda da Névoa se prepararam para o combate. No momento em que ele apertou o cabo da espada, Sitri se manifestou.
— Fique quieta, Liz! — repreendeu, suspirando. — Não podemos pegar todo o lucro deles! Isso não seria uma parte, seria tudo! Além disso, a taxa de processamento colocaria Arnold no prejuízo. Precisamos negociar direito!
— Hein? Então é só matar todo mundo e pegar o dinheiro — respondeu Liz. — Já que são caçadores, vale tudo. Não estamos infringindo regra nenhuma.
As duas começaram a discutir na frente de oito caçadores prontos para lutar. Eram malucas? Ou estavam apenas confiantes demais em suas habilidades?
Depois de repreender Liz, Sitri colocou um pequeno frasco sobre a mesa. Um líquido dourado translúcido chacoalhava dentro.
— Estamos pedindo 110 milhões de gild — disse Sitri. — Essa é a parte que queremos, e nosso líder também.
Isso significava que Arnold ainda ficaria com noventa milhões. Ainda era um valor alto, mas muito mais aceitável do que o que Liz havia exigido. Os membros da Queda da Névoa trocaram olhares.
— Aposto que vocês não esperavam que o item passasse dos cem milhões, não é? — continuou Sitri. — E vocês estão exatamente certos. Vão ficar com noventa milhões, e nós levamos 110 milhões de gild. Mantemos nossa reputação, e vocês ainda saem no lucro. O que me dizem?
Era uma proposta brilhante. Noventa milhões era menos da metade do lucro total, mas ainda assim, era muito mais do que Arnold esperava conseguir com a Relíquia. Cento e dez milhões era a maior parte, mas não tanto a ponto de obrigar a Queda da Névoa a lutar até a morte por isso.
E se isso permitisse evitar um confronto com um grupo de nível 8, o preço era ridiculamente baixo. Além disso, Sitri e Liz tinham um argumento sólido; Arnold não podia negar que havia alguma tramóia por trás daquele leilão.
Ele não se importaria em aceitar, mas o jeito descontraído e casual das duas o incomodava. Arnold era um caçador de nível 7, e estava claro que estavam subestimando ele. Seus companheiros estavam prontos para fugir, mas isso só tornava ainda mais evidente que ele precisava manter sua postura como líder.
Mas havia uma falha fatal na lógica de Sitri que Arnold não podia ignorar.
— Se transferirmos esse dinheiro para vocês, isso só levantaria suspeitas e questionamentos — disse Arnold, bufando e encarando a Alquimista. — O que vão fazer quanto a isso?
Ele não sabia exatamente o quanto os Grievers influenciavam a capital, mas certamente não estavam no controle total de Zebrudia. O Mil Truques também teria problemas se rumores de um esquema de manipulação se espalhassem. Enquanto Arnold e seu grupo poderiam simplesmente sair da cidade se necessário, os Grievers não tinham essa opção—essa era a terra natal deles.
Sitri ergueu o pequeno frasco que trouxera e o balançou com um sorriso.
— Por isso, estou vendendo esta poção para vocês por 110 milhões — disse ela. — É um antídoto. Bem potente, o suficiente para todo o seu grupo. Não me importo de esperar um tempo, viu? Na verdade, foi bem conveniente que todos vocês tenham bebido tanto. O álcool estava bom? Não entendo muito do assunto, mas, como Alquimista, parece que o grupo de vocês não tem muita resistência. Você pode até estar bem, Arnold, mas pode dizer o mesmo dos seus companheiros?
Ela envenenou a bebida? Arnold pensou, sentindo o sangue sumir de seu rosto. Até Eigh, sempre calmo, parecia pálido.
Não sentia dor alguma, mas agora que pensava, seu grupo realmente ficou bêbado rápido demais. Como estavam hospedados em um lugar caro, era improvável que os funcionários tivessem sido subornados, mas as duas tinham conseguido invadir seu quarto.
De repente, Sitri, que parecia a mais sensata das duas, parecia muito mais assustadora do que Liz.
A Ignóbil sorriu e pressionou Arnold a decidir.
— E então? O que vale mais? Seus amigos ou o dinheiro?
Tradução: Carpeado
Se gostou do capítulo, compartilhe e deixe seu comentário!