Era como se uma batalha tivesse ocorrido em frente à Magi’s Tale. Uma grande rachadura cortava a rua, e os portões metálicos que cercavam a loja estavam escancarados. A placa da loja estava caída no chão, e a casa do outro lado da rua estava crivada de marcas de balas. Sangue seco manchava os prédios próximos. A Terceira Ordem havia sido enviada para manter a paz, controlando a multidão curiosa que observava a cena.

Alguém havia invadido a Magi’s Tale. Fui informado disso justo quando Sitri e eu estávamos discutindo nossos planos para o futuro. O ladrão havia entrado na noite anterior. Os responsáveis foram identificados como Shadow Lynx, um grupo de criminosos que havia recebido uma solicitação para roubar certos itens. Basicamente, eram caçadores fracassados. De vez em quando, um caçador desistia de explorar um cofre e passava a usar o material de mana que absorvia e cultivava para levar uma vida criminosa. Muitos deles descobriram que atacar humanos era muito mais fácil e eficiente do que enfrentar espectros e monstros. Esses grupos de ex-caçadores dispostos a realizar atividades ilegais e perigosas eram chamados de "fantasmas" pela Associação dos Exploradores e tinham recompensas por suas cabeças. Isso era muito diferente de Sitri, que apenas teve um nível retirado como penalidade. Ela ainda era vista como uma caçadora boa e obediente às leis, enquanto esses grupos que cometiam atos ilícitos eram considerados criminosos.

— Eu sabia que eles morderiam a isca mais cedo ou mais tarde, mas não pensei que pegaríamos um idiota tão rápido... — disse Sitri com cansaço.

Eu, por outro lado, não conseguia manter a calma. Se olhasse no espelho, com certeza veria um rosto pálido de preocupação me encarando de volta. Tudo o que eu fiz foi encontrar uma Relíquia que me interessava e implorar para que outros caçadores me emprestassem dinheiro para o leilão. Mas conforme os dias passavam, essa situação só piorava, e agora uma loja de Relíquias à qual eu devia favores havia sido atacada. Vou dizer isso agora: eu juro que não esperava esse desfecho. Claro, não posso negar que sou descuidado às vezes, e sou um Nível 8, mas ainda assim, sou apenas um caçador.

A Relíquia em questão parecia ter algumas pegadinhas, e não era como se tivesse uma longa história. Como eu poderia prever essa situação? Segurei meu estômago dolorido enquanto Sitri mantinha sua compostura.

— Eu sei que a calada da noite é a oportunidade perfeita, mas não esperava alguém poderoso o bastante para invadir uma loja de Relíquias — disse Sitri. — Fui descuidada. Se tivesse investigado melhor, talvez tivesse conseguido prever outra abordagem...

Nossa única salvação foi que isso terminou como uma tentativa de roubo. Os cavaleiros haviam cercado o local e dispersado o público, mas usei minha influência como caçador de alto nível para dar uma olhada mais de perto. A porta aconchegante e rústica estava partida ao meio, e um cheiro de queimado encheu minhas narinas.

— Eu tenho trabalho a fazer, droga! — uma voz rugiu irritada dos fundos da loja. — Você acha que eu tenho tempo pra me preocupar com um ladrão ou dois?! Não vou conseguir terminar a tempo do leilão! Droga, vocês estão todos sendo manipulados pelas palavras daquele moleque! Guardas? Que nada! Não preciso de guardas! Já tenho um de confiança, muito obrigado! Um excelente guarda-costas, aliás! Preferia que vocês me ajudassem a limpar minha loja ao invés de oferecerem segurança!

Estava claro como cristal que ele estava de péssimo humor. Não sei se ele me perdoaria se eu me desculpasse aqui. Devia ter trazido Tino comigo. Relutante, mas sem escolha, respirei fundo e entrei na loja destruída.

— Hm? Ah, moleque! — Matthis berrou, com o rosto parecendo o de um demônio furioso. — Você se superou dessa vez!

Encolhi visivelmente ao vê-lo. — Uh... Eu sinto muito...

O interior da loja estava tão destruído quanto o lado de fora. Os portões foram rasgados em pedaços, e o balcão estava partido ao meio. No entanto, os expositores de vidro que guardavam as Relíquias não tinham um único arranhão. Como esperado. Apesar do caos na loja, ninguém havia se ferido. Como sempre, um guarda-costas permanecia ali, envolto por várias Relíquias. Ele geralmente era um homem pouco sociável, mas hoje parecia estar de excelente humor.

Lojas de Relíquias lidavam com itens caros e tinham uma segurança maior que outras lojas. Isso era ainda mais verdade para a Magi’s Tale, localizada nos arredores da cidade, onde os cavaleiros raramente faziam patrulhas. Apesar das aparências, a loja de Matthis tinha um dos sistemas de defesa mais impenetráveis da cidade. Ele havia aberto sua loja na capital imperial há algumas décadas, mas até hoje, ninguém jamais havia conseguido invadi-la com sucesso.

— Tsc, se vão me roubar, que façam isso de tarde! Durante o dia! — gritou Matthis, irritado. — Sempre fico sem dormir quando fazem isso à noite!

Notei olheiras escuras sob seus olhos. Com o leilão se aproximando e agora esse assalto frustrado, até Matthis, que normalmente parecia bem mais enérgico que eu, parecia prestes a desabar. Ainda assim, fiquei aliviado por ele estar ileso. Se ele tivesse sido ferido pela lâmina de um criminoso, eu não conseguiria dormir à noite. Soltei um suspiro de alívio enquanto ele olhava ao redor da loja.

— Ei, Krai! — ele exigiu. — Cadê a garotinha? Se veio me desejar sorte, melhor trazê-la junto! Não preciso de você! Você só atrapalha meu trabalho!

...Parece que eu realmente não precisava ter vindo aqui.

Os cavaleiros fizeram caretas ao observarem o estado lamentável da loja. Ouvi alguém murmurar baixinho:

— Já pegamos os suspeitos, então acho que podemos ir.

Pelo visto, já estavam fartos dos gritos ranzinzas do velho.

Segurei os ombros de Sitri e a empurrei para frente.

— Trouxe a Sitri no lugar dela. Dá pra me deixar em paz com isso?

— De jeito nenhum! Não tem substituto pra ela! — Matthis resmungou. — Hmm? Sitri, o assalto da noite passada não foi coisa sua, foi?!

— O quê?! — Sitri engasgou. — Krai me impediu de fazer isso. Mesmo que houvesse uma chance em um milhão—não, uma chance em um bilhão de eu fazer algo assim, eu pelo menos escolheria pessoas melhores.

— Tá bom! Se você tem tempo sobrando, me dá uma mão, vai? O negócio tá horrível! Meu funcionário só fica parado sem fazer nada!

Cara, ele é mesmo cheio de energia. Ele combina mais com a vida de caçador do que eu. O guarda-costas que estava do lado de fora podia ouvir a voz de Matthis sem esforço, mas não parecia nem um pouco incomodado com o comentário. Continuava ali, de pé, olhando para o nada. Ele é um espantalho ou o quê? Sitri também não parecia incomodada enquanto ajudava a arrumar tudo. Eu me sentei no balcão e dei uma olhada geral na loja.

— É raro ver você levando uma surra dessas — comentei. — Algum ferimento?

— Nenhum! — Matthis berrou de volta. — Eu estava enfrentando três fracassos de caçadores—Ladinos. O responsável por destruir minha loja foi o meu guarda-costas! Ele disse que fazia tempo que não usava Relíquias, então não conseguiu se segurar! Merda! Eu não emprestei Relíquias pra ele acabar com a minha loja!

Oh… Então não foram os ladrões. Mesmo assim, o guarda-costas em questão continuava ali, impassível. Acho que pássaros da mesma pena voam juntos—pessoas esquisitas tendem a atrair outras pessoas esquisitas. O fato de que ele conseguiu espantar os ladrões só com a ajuda das Relíquias apenas provava o quão forte ele era; provavelmente mais forte do que eu. Depois de desabafar, Matthis pareceu satisfeito e tomou um gole de água.

— Então, o que veio fazer aqui? — ele perguntou com um suspiro. — Não preciso de compensação sua. A recompensa dos fantasmas já é mais que suficiente pra me deixar no azul. Meus netos até vieram me visitar.

— Sim, mas mesmo assim—

— Eu não preciso das suas desculpas por causa dos rumores. As pessoas são facilmente manipuladas pelas palavras dos outros. Não existe Relíquia mais forte do mundo! Se algo assim existisse, eu gostaria de ver!

Eu nem tive chance de retrucar, pois Matthis falou sem parar e bateu com força no balcão. “A Relíquia mais perigosa pode até existir, mas a mais forte não”, esse era o lema favorito do velho. Sua visão vinha de décadas no ramo. Estava claro que ele não dava a mínima para os rumores. Eu não sabia se isso era um sinal de confiança em mim ou desconfiança, mas, de qualquer forma, suas palavras teimosas me deixaram mais aliviado. Sorri e decidi encerrar essa conversa de forma leve.

— A Relíquia mais perigosa, hein? — murmurei. — Talvez o mais perigoso não seja uma Relíquia, mas o coração humano.

— Cala a boca! — Matthis rugiu, franzindo a testa. — O mais perigoso é como você consegue virar o centro das atenções só por tentar comprar uma Relíquia, moleque!

Ele não estava errado, mas tentei de novo.

— De fato, a tolice humana não tem limites.

— Eu falei pra calar a boca! Suas palavras são vazias e sem sentido!

Comparado a tudo isso, quão devastador é ter uma dívida de dez dígitos? Vi Sitri correndo de um lado para o outro, limpando a bagunça. Não sei como ela negociou, mas estava usando os cavaleiros que vieram verificar o local, dando ordens e os colocando para recolher os destroços. Eles iam terminar isso num instante.

— Falando nisso, conseguiu avaliar? — perguntei.

Os detalhes não importavam mais—essa Relíquia agora era o centro das atenções do império. Eu não sabia por que Lady Éclair tinha assumido erroneamente que era a mais forte, mas assim que as habilidades do item fossem esclarecidas, toda essa confusão terminaria. Relíquias transformáveis eram estritamente regulamentadas pelo império, e os nobres tinham uma imagem a zelar. Eu tinha uma pequena esperança, mas Matthis balançou a cabeça.

— Ah, bem… — ele disse. — Usei algumas referências e tentei confirmar os poderes dela, mas minha conclusão é “indeterminado”.

Eu já esperava por isso, mas ainda assim não consegui evitar deixar meus ombros caírem um pouco. Matthis tinha um grande orgulho de seu trabalho, o que significava que não esconderia riscos potenciais, e com certeza não colocaria sua vida em perigo para avaliar esse item.

— É um item de Risco Classe S — ele continuou. — Máscaras e afins sempre dão trabalho. Expressões faciais revelam a verdadeira natureza de uma pessoa—Relíquias em forma de máscara, que escondem essa parte essencial de alguém, geralmente acabam alterando o corpo e a mente do usuário. Tentei ativar o item usando um golem, mas nada. Pelo formato da máscara, pode ser que precise de um ser vivo pra funcionar.

— Entendo…

— Nove em cada dez vezes, o resultado não vale o risco. Se você pretende dar um lance nela mesmo sabendo disso, o problema é seu.

Mais uma vez, fiquei impressionado. Ativar os efeitos de uma Relíquia já era algo difícil, mas tentar fazer um golem ativá-los era coisa que só Matthis tentaria. Não conhecia mais ninguém na capital imperial que pudesse fazer o mesmo.

No passado, quando consegui uma Máscara de Face Reversível de um bando de ladrões, um deles acabou confessando os efeitos do item. Se nem Matthis conseguiu analisar a Relíquia depois de todo esse esforço, seria difícil descobrir seus segredos sem um sacrifício humano.

O leilão de Relíquias revelaria as habilidades analisadas de cada item, bem como a opinião de um especialista. Se Matthis divulgasse o que acabou de dizer, muitos caçadores que estavam desesperados para conseguir essa Relíquia cairiam na real. O único obstáculo que restava era Lady Éclair. Seus motivos eram um mistério, mas ela estava encantada com a ideia da Relíquia mais forte. Uma dama como ela, alheia às durezas do mundo, não daria ouvidos às palavras de Matthis.

— O símbolo da sua party também parece bem estranho, mas essa máscara de carne não está ali só de enfeite — o velho resmungou. — Eu não entendo por que tanta gente tá desesperada pra conseguir isso.

— Eu sou o mais incomodado com isso, sabia? — respondi. — Estão colocando toda essa confusão como se fosse minha culpa, e pra falar a verdade, só quero que esse leilão acabe logo. No fim das contas, não importa quão forte seja uma Relíquia se o usuário for fraco.

Ele assentiu.

— Exatamente. Todo mundo sonhando demais com essas Relíquias.

Pessoas fortes eram poderosas com ou sem Relíquias, e o contrário também era verdade. Por isso, os caçadores precisavam aprender e evoluir constantemente. Organizei a situação em minha cabeça, analisando os melhores e piores cenários possíveis. O melhor caso seria se a dama, as companhias mercantes e os outros caçadores decidissem unanimemente desistir da Relíquia, permitindo que eu a adquirisse por um preço irrisório. No pior caso, a nobre e as companhias mercantes colocariam as mãos na Relíquia, usariam sem se importar com os riscos, descobririam seus verdadeiros efeitos e tentariam me esmagar em um acesso de fúria ao perceberem que os efeitos não eram o que esperavam.

Isso parecia terrivelmente irracional, mas eu estava lidando com a filha de uma nobre—quem sabia do que ela seria capaz? Em termos de posição e poder, eu estava em desvantagem evidente, então era melhor estar preparado para qualquer cenário. Eu já não queria mais aquela Relíquia. Pegaria se fosse entregue a mim, mas não estava disposto a usar o dinheiro do casamento do meu melhor amigo para obtê-la. No entanto, como eu estava no centro dessa confusão, o melhor era tomar algumas precauções. Isso me dava uma enorme dor de cabeça e eu relutava em agir, mas se deixasse isso de lado, sabia que meu futuro eu só sofreria ainda mais.

— Acho que vou conversar com Lady Éclair e contar a ela as palavras de Matthis — falei para Sitri, que estava arrumando as coisas. — Você pode vir comigo?

— Claro — ela respondeu. — Vamos conhecer melhor essa jovem que tem um fraco pelo Ark. — Ela parou de limpar, levou a mão ao rosto e abriu um sorriso radiante.

***

Éclair Gladis conheceu o caçador mais forte pela primeira vez há um ano. A Casa Gladis era uma família proeminente, responsável por formar inúmeros soldados que protegiam o império. Seus cavaleiros eram renomados por sua destreza em combate e, por gerações, protegeram o Império Zebrudio de nações inimigas, monstros e espectros. O império decidiu recorrer também aos caçadores de tesouros, elevando-os até que se tornassem uma das maiores potências globais. No entanto, apesar desse status, não podiam baixar a guarda. Manter a vigilância e estar preparado para qualquer situação era essencial. Esse era o lema da Casa Gladis.

Dentro do império, a força mais poderosa não eram os cavaleiros, mas sim os caçadores. Absorver matéria mágica permitia fortalecer o núcleo de poder. Não importava o quão rigoroso fosse o treinamento, havia uma diferença clara e gigantesca entre os cavaleiros, que precisavam proteger a terra, e os caçadores, que estavam constantemente desbravando novas masmorras.

A Casa Gladis, orgulhosa de ser a espada do império, via os caçadores de alto nível, que não podiam ser superados nem mesmo por um pelotão mobilizado de cavaleiros, como ameaças traiçoeiras—eles não eram dignos de confiança. A Casa Gladis era conhecida por seu desdém pelos caçadores, observando-os com olhos ainda mais severos do que outros nobres. Não era incomum ouvir boatos de nobres murmurando que caçadores eram basicamente saqueadores de túmulos, mas o olhar afiado da Casa Gladis era ainda mais duro.

Éclair empunhava uma espada desde que se lembrava e recebeu treinamento de espadachins renomados para garantir que jamais perdesse para um caçador. Embora tivesse guardas ao seu lado, costumava visitar masmorras pessoalmente. Ainda era uma criança, mas ninguém duvidava de seu talento notável.

Entre todos os caçadores, a Casa Gladis aprovava apenas um—Casa Rodin. Eles já haviam ouvido muitas histórias sobre a Casa Rodin: no passado, Lorde Rodin realizou um feito incrível, permitindo que essa família de caçadores de tesouros fosse reconhecida como Herói. Desde a fundação do império, séculos se passaram e, embora a nação agora fosse vista como um santuário para incontáveis caçadores, a Casa Rodin, o herói do império, ainda permanecia no topo.

Mesmo sendo caçadores, assim como a Casa Gladis, eles protegiam o Império Zebrudio por gerações e trilharam seu caminho até a nobreza. No entanto, no fim das contas, Rodin recusou educadamente o título de nobreza, mas a Casa Gladis sabia que a Casa Rodin era uma aliada. Sempre que a Casa Gladis mencionava caçadores, o nome Rodin também era citado sem exceção.

Os senhores da Casa Rodin sempre foram excelentes, mas o próximo sucessor era especialmente notável. Ainda jovem, já havia conquistado títulos honoríficos e desbravado masmorras de alto nível em sequência. Todos tinham certeza de que seu nome ficaria gravado na história como um Herói.

Sempre que Éclair ouvia seu nome, seu coração disparava de excitação ao imaginar quem exatamente era aquele homem. Quando finalmente encontrou Ark Rodin pessoalmente, ele superou todas as suas expectativas. Em total contraste com a imagem rude que os caçadores costumavam evocar, Ark exalava elegância. Seu corpo era esguio, mas bem definido, e seus olhos azul-escuros, tão profundos quanto o mar calmo, davam a ele um ar distinto dos demais. Mas, acima de tudo, o que mais a impressionava era sua força.

No duelo tão aguardado, pelo qual Éclair implorou para assistir, Ark derrotou sozinho os renomados cavaleiros da Casa Gladis. Ele deu conselhos sobre esgrima a ela. Ela o acompanhou em uma exploração de masmorra. Quanto mais tempo passava com ele, mais sua admiração crescia.

Esse homem era conhecido como a Tempestade Prateada. Ele dominava tanto a lâmina quanto a magia, um feito aparentemente impossível, e havia fundido ambas em suas técnicas. Verdadeiramente, ele era um caçador digno do título de “Herói.” Éclair ansiava por estar ao seu lado um dia. Seu corpo tremia de euforia. Depois que se separaram, ela continuou a ler fervorosamente contos de aventureiros e começou a ouvir falar de um certo caçador, conhecido por ser o rival daquele Herói.

***

A base da Casa Gladis ficava no centro da capital imperial—um distrito nobre onde muitas casas aristocráticas se erguiam. A área era completamente diferente do movimento das ruas principais, emanando um ar refinado. Ladrilhos de pedra bem polidos pavimentavam as ruas, e carruagens luxuosas, adornadas com ornamentos extravagantes, deslizavam suavemente pelo caminho. Cavaleiros usando elmos reluzentes permaneciam em posições estratégicas ao longo da rua, garantindo a segurança dos cidadãos.

Mal havia sinal de plebeus ou ladinos. Nem mesmo um fiapo de lixo pelo chão, e eu sentia que até o cheiro do ar era diferente de onde eu normalmente morava.

Conde Gladis... O título de conde pode não parecer grande coisa à primeira vista, mas dentro do Império Zebrudiano, ele era alguém de alto escalão. Claro, eu era um caçador de Nível 8, mas ainda assim, apenas um plebeu. Este país podia até ser tolerante com caçadores, mas se eu não tomasse cuidado, poderia ser esmagado como um inseto na estrada.

Além disso, eu estava indo ao encontro de um nobre infame por seu desprezo por caçadores. E ainda por cima, uma casa militar. Não me surpreenderia se uma lâmina caísse sobre mim logo na primeira reunião, e só agora meu estômago começou a doer. Eu era o mestre de um clã que Ark fazia parte, mas não sabia o quão útil isso seria para a jovem dama.

— Droga, acho que em qualquer época os plebeus estão à mercê dos nobres... — murmurei.

Enquanto continuava andando pela estrada, sentia os olhares penetrantes dos cavaleiros patrulhando a área. Caminhando a pé, eu claramente estava deslocado e atraindo muita atenção. Sitri apertou minha mão com força, seus dedos ligeiramente frios se entrelaçando com os meus.

— Não se preocupe — ela me tranquilizou. — Só vamos conversar um pouco com ela. Não há nada a temer.

— É... Aham...

Atacar uma pessoa indefesa era crime até mesmo para os nobres, mas o problema era que eles tinham meios de encobrir as provas e evitar escândalos. Sitri sorriu. Eu estava com o estômago embrulhado, mas, por algum motivo, minha amiga de infância parecia estar de ótimo humor.

— No pior dos casos, eu mesma resolvo a situação e os esmago — ela disse. — Estava justamente pesquisando sobre sangue nobre. Será que eles têm algum valor além da história que corre em suas veias? Nem mesmo a Torre Akáshica permitiria um estudo como esse.

— E-Eu... Aham...

Eu não entendi bem o que ela quis dizer, mas... ela é invencível? Sitri não teme nada?

A imensa mansão Gladis era cercada por portões. O brasão da família Gladis estava erguido com orgulho, e vários cavaleiros estavam posicionados na entrada principal. Pelo jeito, faziam parte do exército particular da casa, e todos me encaravam com cara feia, estalando a língua. Parecia que sacariam suas espadas a qualquer momento. Se Eva não tivesse feito os preparativos com antecedência, eu tinha certeza de que seríamos contidos imediatamente. Eu quase nunca tinha envolvimento com os assuntos do Lorde Gladis, mas sua fama de desprezar caçadores aparentemente era verdadeira. Um homem bronzeado de rosto intimidador estreitou os olhos para mim—presumi que fosse o líder.

— Entregue suas armas. Agora.

— Hã? Eu... Não estou carregando nada.

O cavaleiro ficou em silêncio. Dava pra perceber só de olhar, não? O líder franziu a testa enquanto me revistava e confirmou que eu realmente estava desarmado. Finalizou a inspeção colocando em mim uma braçadeira—um item que bloqueava o fluxo de mana e me impedia de usar feitiços ou habilidades. Eu não sabia usar magia, então, obviamente, essa braçadeira não fazia diferença alguma para mim. Enquanto mantinha a compostura, notei que o líder roncava pelo nariz, irritado. Olhando mais de perto, até seus olhos estavam tremendo.

— Você continua calmo mesmo nessa situação... — ele rosnou. — Não nos subestime. Se um mero caçador como você fizer qualquer coisa suspeita, não hesitarei em cortá-lo.

Ele é o quê, um bandoleiro? Eu só queria conversar e dar um conselho bem-intencionado. Já estava um pouco cansado de tudo isso. Estava acostumado a ser ameaçado, mas isso não significava que gostava da situação. Suspirei e apontei para Sitri, que estava ao meu lado com um sorriso sereno no rosto.

— Ah, e já que Sitri é uma dama, prefiro que uma mulher a revistasse.

Fomos tratados como criminosos enquanto finalmente éramos escoltados para dentro da mansão. Como esperado de um nobre, o interior era repleto dos melhores móveis. Um lustre brilhante pendia do teto, e um tapete vermelho forrava o chão. Eu tinha ouvido dizer que era uma casa militar, mas estava claro que também gostavam de ostentar sua riqueza. Sitri e eu avançamos, cercados por cavaleiros pomposos, enquanto as empregadas que faziam o serviço doméstico rapidamente saíam do nosso caminho.

Fomos levados a uma sala vasta, com um sofá imponente e uma mesa robusta. Retratos e armaduras prateadas decoravam as paredes. Uma jovem estava sentada no sofá nos aguardando e, ao notar nossa presença, cruzou as pernas e sorriu.

— Não imaginei que você teria coragem de entrar nesta casa pelos portões da frente, Mil Truques — ela disse. — Você tem fibra.

Uh, não estou aqui para arrumar confusão. Na verdade, nem quero nobres como inimigos. Ela tinha uma atitude arrogante, mas sua aparência correspondia exatamente à sua idade, e eu não conseguia me sentir intimidado por uma garota tão pequena. Não era medo dela, mas dos cavaleiros atrás dela, esses sim, me aterrorizavam. Assim como os cavaleiros que estavam atrás de nós.

Sem escolha, imitei Sitri e forcei um sorriso nos lábios. Vi Lady Éclair congelar.

— V-Você está completamente cercado e ainda assim age com tanta calma... — ela murmurou. — Entendo. Suponho que sua coragem seja comparável à de Ark.

Hmm? Não estou entendendo direito, mas... ela está me elogiando? Eu já tinha informado o motivo da minha visita com antecedência. Queria resolver tudo logo e voltar para casa, mas simplesmente não conseguia compreender o raciocínio de um nobre.

— Nah, a única coisa em que sou melhor que Ark é no meu nível — falei.

Lady Éclair prendeu a respiração. Ark Rodin era um cara popular, admirado por homens e mulheres de todas as idades. Entre os nobres, então, nem se fala. Seu poder, personalidade e rosto bonito, combinados com a linhagem honrada de sua casa, que apoiava o império desde os tempos antigos, não deixavam espaço para dúvidas sobre sua popularidade.

De vez em quando, algumas pessoas me viam, só por eu ter um nível alto, e diziam que eu era rival de Ark, mas eu estava a anos-luz da grandeza dele. Será que Lady Éclair acreditava nesse boato sem fundamento? Seria por isso que ela parecia tão rígida ao me ver pela primeira vez? Não pode ser. Só estou levando bronca de graça.

A jovem dama me lançou um olhar perigoso, e achei melhor esclarecer as coisas.

— Lady Éclair, por acaso você ouviu um rumor ridículo que me faz parecer rival do Ark? — perguntei.

— Oh? — ela respondeu.

— Esses rumores são completamente errados. Ark e eu somos muito diferentes em termos de posição e conquistas. Não tem base nenhuma. Pelo menos, eu não vejo Ark como um rival, mas sim como um amigo. Só um amigo.

— O quê... você disse?

Os punhos e lábios de Lady Éclair tremiam, suas bochechas ficaram completamente vermelhas, como se estivesse contendo a raiva. Eu disse algo errado? Desde os tempos antigos, houve inúmeros caçadores incríveis que alcançaram grande sucesso neste império, mas eu tinha certeza de que Ark era um dos mais fortes. Ele era um cara que, eventualmente, seria chamado de o mais poderoso.

— Então, Ark... não é seu rival? — Lady Éclair perguntou.

Eu simplesmente não conseguia entender por que ela parecia estar me fuzilando com um olhar ainda mais intenso do que antes. Os guardas atrás dela também cerraram os dentes enquanto nos observavam. Eles acham que estou mentindo ou algo assim? Ah, espera, acho que entendi.

Bati um punho na palma da outra mão e disse:

— Ah, para ser mais preciso, ele não é meu rival, mas é rival de um dos membros do meu grupo. Acho que isso pode soar como autopromoção, mas ela é uma pessoa muito capaz, e tenho certeza de que até Ark pode atestar isso. Não é verdade, Sitri?

— De fato — ela concordou com um sorriso tímido. — Ark é meu rival. Se olharmos o quadro geral, no momento eu estou levando vantagem, mas Ark tem crescido a um ritmo impressionante. Acho que um dia eu perderia para ele.

Ei, não a provoque assim. Sitri soava um tanto condescendente (embora sem qualquer tom de sarcasmo), e as orelhas de Lady Éclair começaram a ficar vermelhas.

— Er, acho que Ark está acima de nós, para ser honesto — acrescentei rapidamente. — Nós apenas conquistamos muito mais cofres de tesouro, só isso.

— Ah... — Sitri resmungou. — Krai, de que lado você está? Do Ark ou do meu?

— Uh, do seu, é claro, mas há um tempo e um lugar para tudo.

A geralmente composta Sitri, conhecida por sua habilidade impecável de ler o ambiente, havia soltado algo completamente fora do seu padrão. Eu me sentia como um gerente preso entre seu superior e seus subordinados. Era difícil classificar caçadores em primeiro lugar, mas eu sentia que Ark era o mais forte. Ele estava um nível acima de todos os novatos, e não havia uma única pessoa que pudesse vencê-lo em um duelo. No entanto, se fosse um confronto entre os dois grupos, Ark Brave e Grieving Souls, eu tinha certeza de que venceríamos. Isso não era culpa do Ark, mas sim dos membros do seu grupo. Com exceção do líder dos Grieving Souls, todos os outros eram incrivelmente poderosos, mas no Ark Brave, todos, exceto o líder, careciam de força de combate. Não era como se fossem fracos — eles certamente tinham habilidades de primeira linha — mas, para ser franco, nenhum deles era particularmente impressionante.

Mesmo que o grupo reunisse pessoas excelentes, todos acabavam ofuscados pelo líder e desistiam por conta de um senso de inferioridade. Homens, em particular, pulavam fora rapidamente. Havia uma piada aí, mas eu não queria tocar em um assunto delicado e não encontrei o momento certo para dizê-la. Será que essa jovem riria se eu dissesse? Eh, provavelmente não... Eu continuei sorrindo quando a jovem nobre de repente desembainhou sua lâmina e a bateu na mesa, enterrando metade da espada no móvel. Lasca de madeira voaram pelo ar, e eu congelei de choque com sua ação repentina. De maneira nada nobre, ela ergueu a perna direita sobre a mesa, seu rosto completamente vermelho e lágrimas se formando em seus olhos bem delineados.

— E-eu entendi muito bem o que vocês estão insinuando! — ela gritou com a voz trêmula. — Posso ver que estão zombando tanto do Ark quanto da minha família!

— Espera, o quê? — eu disse. — Não estamos zombando—

— Se eu tivesse o poder, já teria cortado suas cabeças!

Desculpa, o quê?! Essa garota acabou de falar sobre decapitação? Qual é, o que eu fiz? Todos os guardas de Lady Éclair já tinham as mãos em suas espadas. No momento em que ela desse a ordem, eles avançariam contra nós. Eu estava aqui com boas intenções, mas não esperava que ela tentasse me matar. Enquanto meu rosto se contorcia em pânico, Sitri ainda mantinha um sorriso dançando em seus lábios. Era bom ver que ela mantinha a calma, não importava o quê, mas eu não achava que sua atitude combinava com a situação. Acho que, comparado aos cofres do tesouro, isso não é grande coisa...

Lady Éclair apontou o dedo indicador para nós. Isso pode ser uma informação desnecessária, mas, já que sua perna ainda estava levantada, eu quase conseguia ver sua roupa de baixo.

— Mas sua insolência termina aqui! — ela gritou. — Vou fazer vocês se arrependerem de menosprezar a Casa Gladis! Eu definitivamente, absolutamente, sem sombra de dúvida conseguirei aquela Relíquia mais poderosa!

— Não, essa é perigosa — respondi rapidamente. — O avaliador também disse isso. Acho melhor você não dar um lance nela.

Eu ainda estava confuso, mas decidi voltar ao meu objetivo inicial e tentar negociar com ela. Além disso, você já tem poder e dinheiro. Qual o sentido de ir atrás de algo desnecessário? Se eu fosse filha de um conde, eu só ficaria de boa sem fazer nada o dia todo.

— De acordo com minha investigação, você está correndo por aí e coletando Relíquias! — Lady Éclair gritou. — Você provavelmente usou esses itens para se tornar um Nível 8, não é?! Sua força vem simplesmente de um poder emprestado!

— Hmm? Uhhh, é... uh-huh. Acho que sim?

Ela estava meio certa. De fato, minha força vinha das minhas Relíquias, cem por cento, mas mesmo usando toda a minha coleção de algumas centenas de Relíquias, isso não seria suficiente para me tornar um Nível 8. Por que ela está tão exaltada?

— Eu vou dar a Ark a Relíquia mais poderosa! — ela rugiu furiosa. — E isso será o seu fim! Você nunca mais conseguirá se manter no topo!

Eu... não acho que ele ficaria feliz em recebê-la. Ark já estava destinado a se tornar o sucessor da Casa Rodin e, portanto, já tinha acesso a Relíquias poderosas. Ter mais desses itens não o tornaria necessariamente mais forte. Como eu já disse antes, ele era um cara forte; não precisava do poder das Relíquias para provar isso. Assim como Luke poderia facilmente me matar com as próprias mãos, pessoas poderosas são poderosas com ou sem Relíquias. E não importa o quanto eu me esforçasse para tentar virar o jogo, eu era fraco. Isso também era uma verdade incontestável.

— Isso é inútil — falei. — Os fortes continuarão fortes mesmo sem Relíquias, e o contrário também é verdade. Os fracos continuarão fracos, mesmo tendo Relíquias.

— O quê? — Lady Éclair perguntou.

— Essa é simplesmente a realidade das coisas. Só porque ele conseguiu essa Relíquia, isso nunca será o mesmo que a força de Ark. Como amigo dele, só quero dizer que ele não ficará feliz, mesmo que fique mais forte com um item terrível como esse.

Então, por favor, me entregue essa Relíquia. Vamos lá, o Ark já tem tudo de bom. Ele é bonito, então não precisa mudar o rosto, certo? Ele pode se defender se alguém for atrás dele, então não há necessidade de esconder o rosto.

Lady Éclair ficou atônita por um momento antes de seu corpo começar a tremer. Lágrimas escorreram de seus olhos.

— Urgh... — Ela fungou antes de gritar: — C-Cala a boca! Cala a boca, cala a boca, cala a boca! Você é tão estúpido! Seu idiota! Eu definitivamente, absolutamente não vou entregar esse item para você! Saia! Saia deste lugar agora mesmo!

Foi então que um mordomo entrou voando na sala vindo do lado de fora.

— O que você—m-minha senhora?! Por favor, acalme-se!

Ele tentou ao máximo acalmar Lady Éclair, mas ela balançou a cabeça freneticamente e continuou chorando.

U-uh, isso parece que fui eu quem fez ela chorar? Isso é ruim? Será que vou ser julgado por desrespeito a uma nobre ou algo assim?

Sitri, que estava observando tudo, se levantou.

— Lady Éclair, estamos aqui hoje porque queremos que você desista dessa Relíquia.

Lady Éclair fungou.

— O-O quê?

Ela esfregou os olhos e encarou Sitri.

Quer dizer, ela não está errada, mas precisava falar isso agora? Eu não disse a mesma coisa antes?

— Essa Relíquia é algo que nem você nem Ark podem lidar — continuou Sitri. — Acredito que a decisão mais sábia é desistir dela.

Talvez ela estivesse furiosa de novo, porque vi o rosto da jovem nobre ficar vermelho enquanto ela mordia os lábios com tanta força que começou a sangrar.

Todos focaram em Sitri, que colocou uma mão sobre a bochecha e sorriu.

— Você mencionou antes que tem cem milhões de gild preparados. Nós temos duzentos milhões.

— Duzentos... milhões? — Lady Éclair murmurou.

Sitri assentiu firmemente e declarou:

— E esse é o nosso limite absoluto. Você pode ser filha do Lorde Gladis, mas deve ter um limite de gastos. Além disso, essa Relíquia não tem significado para você. Se ainda deseja tanto esse item, por que não junta mais de duzentos milhões de gild? Se estiver disposta a ir tão longe, lamento dizer, mas não teremos escolha a não ser admitir nossa derrota.

Sitri…

***

Era difícil apagar um incêndio depois que ele já tinha se espalhado. Rezei para que os rumores morressem até o dia do leilão, mas minhas esperanças foram esmagadas, e as pessoas ainda estavam obcecadas com o Rosto Reversível. As palavras de Sitri também devem ter inflamado Lady Éclair—ouvi dizer que ela implorou para que seu pai mexesse alguns pauzinhos e estava juntando todo o dinheiro que podia. Ela parecia madura para sua idade, mas acho que ainda é só uma criança que precisa da ajuda dos pais.

Todo ano, pouco antes dos leilões, rumores começavam a circular sobre alguns itens específicos, mas, este ano, toda a capital imperial estava de olho no Rosto Reversível. Até no salão, esse era o único assunto das conversas. Só Eva e eu, o centro dessa confusão, estávamos cansados de ouvir sobre isso.

Enquanto eu relaxava no escritório do mestre do clã, Sitri entrou com uma expressão animada. Ela colocou diante de nós uma mala bem maior do que as que havia trazido antes. Seus olhos rosa-pálidos brilhavam discretamente com determinação. Diferente de Liz, Sitri conseguia conter sua vontade feroz e se manter em silêncio.

— Juntando com os fundos do casamento, consegui arrecadar 910 milhões de gild — disse ela. — Vamos derrubá-la. Siddy e T também contribuíram.

Ela até deu a Lady Éclair um limite falso para manter a nobre sob controle.

Caí na gargalhada ao perceber o quão infantil a estratégia de Sitri era. Parecia que eu tinha caído num poço de areia movediça sem fundo. A essa altura, teria que levar para o túmulo o verdadeiro motivo pelo qual queria um Rosto Reversível.

Eva, que estava se esforçando para conter o alvoroço, não conseguiu esconder o choque.

— Krai, estamos nos aproximando de uma dívida de onze dígitos.

— Eu sei — respondi.

O único vencedor nesse leilão seria Arnold, que trouxe essa Relíquia em primeiro lugar. O leilão cobraria uma taxa de administração, e a fatia deles aumentaria conforme o valor do item subisse, mas ainda assim era praticamente garantido que ele sairia de lá com os bolsos cheios.

Os dados estavam lançados. Eu não podia mais voltar atrás nesse leilão, e, mesmo que desistisse, essa empolgação não diminuiria. Eu não sabia como isso terminaria. Sentia que perderia de qualquer jeito.

— O que acha? — perguntei.

— Sinceramente, neste momento, estamos em desvantagem — Eva respondeu. — Há várias companhias comerciais dispostas a emprestar dinheiro para a Casa Gladis e, embora dependa muito do quanto Lorde Gladis se dobraria aos caprichos da filha, ele é conhecido por ser bem extremo às vezes.

Eva permaneceu séria desde que as notícias do leilão começaram a esquentar. Era difícil para plebeus como nós enfrentarmos nobres de frente, já que eles tinham poder, dinheiro e influência militar. Eu sabia disso muito bem, por isso fui até a Casa Gladis para tentar convencer a jovem nobre do contrário, mas falhei espetacularmente.

A perspicaz Sitri assentiu em concordância com as palavras de Eva enquanto me olhava.

— Bem, se quisermos estar em nossa melhor forma, talvez eu devesse negociar com as companhias comerciais e pegar um empréstimo... — Sitri começou.

— Isso não será necessário — respondi com firmeza.

— Mas...

— Não é necessário.

— Como uma das Alquimistas mais brilhantes de sua época e sempre estudiosa, as poções de Sitri poderiam facilmente render milhões. Se procurássemos, certamente encontraríamos empresas dispostas a lhe emprestar dinheiro. Mas, é claro, o credor saberia exatamente por que precisaríamos do dinheiro rápido — o timing do leilão entregaria tudo. Talvez fosse tarde demais para dizer isso depois de ter feito ela vender alguns de seus equipamentos extras e poções armazenadas, mas, se ela contraísse dívidas agora, havia uma boa chance disso voltar para assombrá-la no futuro. Esse era um resultado que eu não poderia aceitar. Sitri inflou as bochechas em discordância, mas quando sorri para ela, ela desistiu e retribuiu o sorriso.

— Entendido — ela finalmente cedeu. — Se você diz isso, então suponho que não seja necessário. Mas não entendo muito bem o motivo.

Independentemente do resultado, eu havia causado muitos problemas a todos desta vez. Sitri, Liz, Eva, Tino e Matthis foram todos vítimas dos meus caprichos. Eu tinha certeza de que alguns dos membros do clã também se sentiam desconfortáveis com toda essa situação. Este leilão não era uma guerra — era um festival anual. Era para ser um evento divertido, mas estava longe disso. Nunca mais pedirei dinheiro aos outros para comprar Relíquias. Nunca mais.

Esfreguei entre as sobrancelhas na esperança de relaxar os músculos faciais. Certo. Deveria aproveitar o leilão. Isso não é uma guerra. Não é como se eu fosse morrer sem aquela Relíquia. Quem se importa se Lady Éclair conseguir colocá-la nas mãos e ficar desapontada com seus efeitos? Não é problema meu.

— Neste ponto, tudo o que podemos fazer é rezar para a Senhora da Sorte — eu disse. — Depois que o leilão acabar, por que não fazemos uma festa para comemorar?

— Isso parece maravilhoso! — disse Sitri com um sorriso radiante. — Devíamos convidar Lady Éclair para a festa também.

Era evidente que ela estava totalmente determinada a vencer e quebrar o espírito da jovem nobre ao meio. Agora que penso nisso, não é culpa do Ark por ter causado toda essa confusão? Ele trouxe aquela dama com ele. Muito bem então, a festa será por conta dele. Mantive uma expressão calma enquanto gravava esse pensamento no coração. Restava apenas um dia até o leilão — uma batalha feroz estava prestes a começar.

***

Os orgulhosos nobres de Zebrudia tinham momentos em que nunca podiam recuar. A Casa Gladis estava longe de ser pobre. Embora não possuíssem muitas terras em comparação com outras casas, comandavam um exército de cavaleiros excepcionais cujas habilidades superavam as dos caçadores. Eles mantinham a paz e a ordem dentro do império e desfrutavam de mais riqueza do que os caçadores atraídos pelos cofres de tesouro. No entanto, mesmo para nobres influentes, duzentos milhões de gild não eram uma quantia desprezível. Pelo menos, certamente não era uma quantia que Éclair, que nem sequer era a atual líder da casa, pudesse usar livremente. O Conde Gladis deixou isso claro quando sua filha relatou que precisaria de pelo menos duzentos milhões de gild.

Vestindo um casaco carmesim, o Conde Gladis carregava uma grande lâmina presa à cintura e tinha cabelos castanhos escuros cuidadosamente arrumados. Seu olhar era afiado demais para um nobre e sua constituição robusta evidenciava sua força. Van Gladis, pai de Éclair, era tanto um nobre quanto um soldado militar. Havia momentos em que ele liderava pessoalmente seus cavaleiros no comando direto das operações. Seu olhar penetrante — severo demais para ser direcionado a uma criança — silenciou instantaneamente a raiva de Éclair.

— Muito bem — ele finalmente disse. — Vença, Éclair. Acho isso tolice. Não estamos em guerra e gostaria de evitar conflitos contra Passos por uma Relíquia que nem usaremos; mas recuar após confrontá-los mancharia nosso nome. Você pode ser apenas uma criança, mas se espalharem boatos de que foi superada por caçadores, não poderei encarar meus ancestrais.

Seu tom era calmo, mas Éclair sentiu sua voz emitir uma pressão como nunca antes sentira, trazendo-a de volta à realidade. Éclair era culpada por iniciar tudo isso: ela havia descoberto informações sobre um homem considerado rival de Ark e estava reunindo Relíquias sem pensar nas consequências. Antes que percebesse, juntou dois mais dois e invadiu uma taverna para declarar suas intenções impulsivamente — ações imprudentes eram algo que seu pai mais detestava.

Antes mesmo que pudesse expressar sua gratidão, Van franziu as sobrancelhas.

— Não se engane — ele disse. — Não temos dinheiro para você esbanjar com seus desejos egoístas. Estou apenas emprestando esse dinheiro a você, Éclair. Quero que me pague um dia desses. Você ainda pode ser apenas uma criança; mas como alguém com o sangue da Casa Gladis correndo em suas veias suas ações carregam grande responsabilidade. Talvez por ser minha primeira filha eu tenha lhe dado liberdade demais; mas esta será uma excelente oportunidade.

Ele fez uma pausa antes de continuar:
— Esta é uma ordem do líder da Casa Gladis: vença a qualquer custo, Éclair! O fracasso não é uma opção; nossa casa não precisa dos fracos! E finalmente... quero que aprenda as consequências das suas ações! Vou instruir Montaure a lhe dar total apoio; ele é um homem ponderado então use-o bem.

Essa foi uma condenação transparente ao comportamento impulsivo dela; vencer era imperativo agora! Afinal foi ela quem iniciou essa batalha; como nobre do império tinha o dever de levar isso até o fim.

— Minha senhora; acabei de contatar a Welz Trading Company e eles nos garantiram empréstimos caso precisemos — disse um homem idoso aproximando-se de Éclair.

Ela estava em seu quarto privado na mansão sentada sem expressão alguma; embora estivesse claramente irritada Montaure nem sequer vacilou enquanto seus olhos inteligentes e voz calma chamavam sua atenção; ele era braço direito da Casa Gladis há anos assistindo o conde em áreas além do combate.

— Quanto eles nos ofereceram? — Ela perguntou

Éclair arregalou os olhos em choque ao ouvir o homem que conhecia desde que era bebê. Aquela mulher irritante havia afirmado que o limite deles era duzentos milhões, pensou a jovem dama. Ela acreditava que poderia vencer facilmente o leilão, já que tinha mais do que o dobro dessa quantia preparada, mas Montaure aparentemente negociou com a Welz para emprestar ainda mais dinheiro. Ele franziu o rosto, normalmente gentil.

— Minha senhora — disse Montaure —, ninguém declara honestamente seu limite a um oponente durante um leilão. Esse conselho deve ser especialmente seguido contra o Mil Truques, um homem renomado por sua engenhosidade. Acima de tudo, a mulher que estava com ele, Sitri Smart, é uma excelente Alquimista. Ela pode facilmente preparar mais de duzentos milhões de gild.

— O quê?! — Éclair exclamou.

Sua mente ficou em branco, atordoada pela revelação surpreendente. Sitri havia declarado guerra tão orgulhosamente contra Éclair e até mesmo afirmado sua derrota caso a jovem nobre conseguisse reunir mais de duzentos milhões. O rosto composto da Alquimista ao lado do Mil Truques passou pela mente de Éclair. Haveria alguém ousado o suficiente para desinformar uma nobre? Ela não conseguia — ou melhor, não queria — acreditar nisso.

— Isso é... impossível — murmurou a jovem garota. — E-Ela nos disse firmemente que admitiria derrota se reuníssemos mais de duzentos milhões! Se temos mais do que isso, ela deveria se render.

— Meu senhor desejava uma vitória certa para você, minha senhora — retrucou Montaure. — Acho melhor estarmos preparados. Ataques surpresa são esperados durante batalhas. Para leilões, não é exagero afirmar que as informações que reunimos previamente são o coração da disputa.

Ela estava perdendo a confiança. Precisava alcançar uma vitória certa e fazer os preparativos necessários. As palavras de Montaure eram verdadeiras — era vital atender às expectativas de seu pai. Seus ombros caíram por um momento enquanto Éclair tremia, mas conseguiu reunir forças para dizer suas últimas palavras.

— Ah sim, obrigada. Você está certo. É melhor estarmos preparados.

O dinheiro extra seria usado apenas em caso de pior cenário possível. Se ela pudesse vencer com duzentos milhões de gild, seria ótimo. Caso isso não fosse suficiente por algum motivo, ela recorreria aos fundos extras e usaria tudo o que tinha para esmagar seus oponentes no chão. O leilão estava se aproximando e a verdade sobre esse resultado seria revelada muito em breve. Com os punhos cerrados, Éclair continuava se tranquilizando enquanto Montaure a observava calmamente.