Hai to Gensou no Grimgar | Grimgar of Fantasy and Ash Volume 11
Capítulo 07
[Guia]
Eu corro.
Corro.
Está escuro.
Corro por um túnel longo e escuro como breu.
Consigo ver o que parece ser luz lá na frente.
Corro em direção a ela. Corro.
Eu corro.
Corro pela escuridão.
Em direção à luz, eu corro.
Parece que nunca consigo alcançá-la. Mesmo assim, continuo correndo.
Eu corro.
Corro.
Estou quase lá. Só um pouco mais.
Parece que o túnel está prestes a acabar, mas ele nunca termina.
Corro.
Corro.
Continuo correndo, e...
De repente, a luz transborda.
Saindo do túnel, continuo correndo.
Eu corro.
Corro o máximo que consigo.
Sob a luz do sol, meus braços e minha cabeça expostos sentem o calor.
Enquanto corro, o vento fresco me atinge e me faz não querer parar.
Eu corro.
Corro pelo campo.
Quando olho para trás, o sol entra nos meus olhos e me cega.
De alguma forma, isso me parece engraçado, e eu começo a rir.
Enquanto rio, volto meu olhar para frente e continuo correndo.
— Ei, não vá tão longe.
Ouço uma voz dizendo isso.
— Ah, não vou, — respondo, rindo de novo, acelerando o passo.
Não quero ser pega, penso.
Não quero ser pega por ninguém.
Não é como se houvesse algum lugar para onde eu quisesse ir.
Mesmo sem vento, ao correr assim, sinto como se ele estivesse soprando.
...Ei, sério... volte já.
Ouço a voz de novo.
Acho que preciso voltar, penso, e paro.
Papai está sempre ocupado com o trabalho e não faz exercícios o suficiente. Ele adora gravar tudo com sua filmadora, então, nos dias de folga, ele me leva para algum lugar—às vezes longe, às vezes apenas ao parque perto de casa—e filma. Ele gravou minha formatura na creche, a cerimônia de entrada na escola, o Hina-matsuri, o Natal, e também os meus aniversários.
Mas, por mais que ele grave, quase nunca assiste aos vídeos, certo?
— Está tudo bem — diz papai. — É um registro. Algum dia, vai chegar o momento em que vamos querer assistir, e aí podemos ver juntos e relembrar. Estou gravando para quando esse dia chegar.
— Tipo, quando eu crescer? — pergunto.
— Bem, por exemplo — responde ele. — Quando você crescer, se casar e tiver um filho seu...
É muito estranho ouvir isso. Eu, me casar?
— Você não pode dizer com certeza que não vai, certo? Bem, seria completamente normal se acontecesse. Provavelmente, um dia, você vai se casar com alguém, acho.
...Será? Vou me casar? Ter filhos? Isso significa que vou me tornar mãe?
— Talvez você se torne uma — diz papai.
Tenho a sensação de que isso nunca vai acontecer.
— ...Hã? O quê? Diga de novo — murmurei. — Espera... Não consegui ouvir direito.
Mamãe está dizendo algo pelo telefone. Mamãe está chorando. Não consigo ouvi-la direito por causa das lágrimas.
Mas, sinceramente, eu entendo. Ouvi bem quando ela disse que papai morreu.
Só que acho que deve ser mentira, ou que ouvi errado. Quero dizer, parece algo impossível de acontecer, então peço para ela repetir.
Huh?
O que foi, mamãe? Fale direito.
O que aconteceu com o papai...?
Corro.
Eu corro.
Eu corro pelo corredor da escola.
Saio pela porta e corro.
Chegando a uma avenida principal, enquanto corro, procuro por um táxi. Levanto a mão e corro.
Entro no táxi que para para mim. Digo ao motorista o destino. O táxi segue lentamente. Quando o sinal fica vermelho, ele para.
Isso é tão, tão lento, penso. Se era para ser assim, eu não devia ter pego o táxi. Devia ter continuado correndo.
O táxi para em frente ao hospital. Tento sair. A porta não abre.
— Senhorita, a tarifa. Precisa pagar a tarifa — ele me diz.
— Quanto é? — pergunto, pegando minha carteira.
Fico pálida.
Dentro dela, só há 425 ienes. Não é suficiente.
O que eu faço? O que eu faço?
— Hum, meu pai morreu, então, desculpa, pelo dinheiro... — balbucio.
— Oh, tá tudo bem, tá tudo bem, eu entendo — o motorista abre a porta.
— Desculpa, desculpa, desculpa — peço desculpas repetidamente, saio do táxi e corro. Corro pelo hospital.
Em um lugar escuro, assisto aos vídeos que meu pai gravou. Estou correndo. Rindo. Sendo educada. Assoprando velas em um bolo. Cantando.
Às vezes, ouço a voz do meu pai. Algo como, “Ei, não vá tão longe.”
Ouço a risada do meu pai.
Quando eu canto, meu pai canta também.
Eu me sento no chão de um quarto com as luzes apagadas, assistindo às imagens de mim mesma na televisão por sabe-se lá quanto tempo.
O rosto do meu pai nunca aparece. Nem mesmo suas mãos.
Eu só ouço sua voz. Mas, de vez em quando, penso: Por que eu não gravei o meu pai também?
— Por favor, namore comigo — Hakamada-kun me diz debaixo de uma árvore. Eu penso um pouco e, então, respondo.
— O que exatamente isso envolve? — pergunto.
— ...O que envolve? Tipo... ir para casa juntos e tal?
— Só preciso voltar para casa com você?
— Não, não só isso... tipo, sair para brincar também?
— Não me importo de brincar, mas...
— Mas o quê?
— Tá tudo bem, de verdade.
Acho que vamos acabar nos casando, penso comigo mesma.
Hakamada-kun não disse nada sobre casamento, é claro. Ele nem mencionou o assunto.
Mas o que significa namorar se você não está pensando em casamento? Acabo me perguntando.
— O que você vê de tão especial no Hakamada? — Yakki me pergunta, e eu inclino a cabeça, pensativa.
Yakki está com sua bicicleta estacionada ao lado do banco, comendo um picolé. Eu também estou comendo um. As cigarras do verão fazem barulho, e meu picolé está supergelado, mas eu não estou suando.
— Nada de tão especial nele — respondo honestamente.
— Ele não tem nada de bom, mas você ainda está namorando com ele? — Yakki pergunta.
— Dizemos que estamos namorando, mas tudo o que realmente fazemos é voltar para casa juntos.
— Isso é o que chamamos de namoro — diz Yakki. — Bem, vocês já se beijaram, pelo menos?
— Isso ainda não aconteceu.
— O quê, você não quer?
— Acho que nunca pensei que quisesse, na verdade.
— Por que você está namorando com ele, então?
Bem, se eu tiver que dizer algo, talvez eu tenha achado que namorar alguém não seria tão ruim, mas agora que penso nisso, sinto que é um pouco diferente disso.
Enquanto fico sem resposta, Yakki sugere: — Talvez você devesse terminar com ele.
Eu também acho. Mas como vou dizer isso para Hakamada-kun?
Quando tiro minhas pantufas do armário e as calço, sinto uma sensação desagradável nos pés. Quando as tiro, vejo uma mancha vermelha nas minhas meias.
Entendi. Aposto que sei o que é isso. Inspeciono-as.
Parece que tinha ketchup dentro. Não fui eu que fiz isso, então deve ter sido outra pessoa.
— Alguém... — murmuro para mim mesma, tirando as meias. Ambas as pantufas estão cheias de ketchup.
Não são hot docks, sabe, penso.
Não, não hot dock, hot dogs. Um dock é onde você amarra um barco. Um dog é o melhor amigo do homem. Um hot dog é um cachorro aquecido.
Mesmo pensando que não estou fazendo sentido, seguro uma das minhas meias manchadas de ketchup, caminhando pelo corredor com meu pé esquerdo ainda calçando a meia suja de ketchup e o direito descalço. Devem haver pantufas para visitantes em algum lugar.
— Huh? O que foi? — Yakki me chama.
A parte inferior do rosto de Yakki está estranhamente relaxada. A parte superior está um pouco tensa. Pela expressão dela, fico convencida de que foi ela quem fez isso.
— Estou procurando pantufas — respondo.
— Por quê? Huh? O que aconteceu com suas meias?
— Elas ficaram sujas, de alguma forma.
— Como você conseguiu sujá-las assim? Você é esquisita, minha nossa! Você é um pouco estranha, sabia?
— Sou?
Decido terminar com Hakamada-kun.
Quando digo isso para ele depois da aula, Hakamada-kun fica desconcertado.
— Hein? Eu fiz algo...?
— Você não fez nada, Hakamada-kun — digo.
— Então por que você está dizendo que quer terminar?
— Não acho que isso está certo.
— Huh? O que não está certo?
— Como posso explicar? — digo. — Hmm, eu acho que você provavelmente gosta de mim.
— Claro que gosto. É por isso que te pedi em namoro. Espera, então você não gosta de mim?
— Acho que meus sentimentos são muito diferentes dos seus. Eu nem sei o que significa gostar de alguém.
— Então talvez você não devesse ter começado a namorar comigo.
O rosto de Hakamada-kun está vermelho como um tomate. Ele está realmente bravo.
Não posso culpá-lo. Aceitei namorar sem pensar muito e estou arrependida. Acho que fiz mal a ele. Acabei machucando-o.
Percebo que não querer machucá-lo foi o motivo de ter aceitado namorar com ele. Mas isso acabou machucando-o ainda mais.
Hakamada-kun era o tipo de pessoa com quem eu conseguia conversar casualmente, e, quando ele me chamou para sair, talvez tivéssemos ido brincar com algumas outras pessoas. Fazer isso era divertido, mas então ele me pediu em namoro.
No fim, provavelmente não quis tornar as coisas estranhas rejeitando-o. Por isso aceitei. O resultado foi que ficou ainda mais estranho, e a atmosfera agora está completamente desagradável. Tenho certeza de que nunca mais conseguirei conversar casualmente com Hakamada-kun de novo.
— Eu sou terrível — digo.
— É mesmo — ele concorda.
— Me desculpe. — Faço uma reverência.
Hakamada-kun não diz nada.
Eu olho para baixo. Ele tem a mão esquerda no bolso da calça do uniforme. Sua mão direita está fortemente cerrada, tremendo.
Se eu dissesse: “Vamos continuar juntos, afinal”, será que isso acalmaria sua raiva? Mas não posso fazer isso.
— Hã? Então você terminou com o Hakamada-kun? — pergunta Yakki.
Eu respondo que foi exatamente o que fiz.
— Coitado — diz Yakki. — Azar do Hakamada-kun.
Acho que ela quis dizer má sorte. Mas fico calada.
— Espero que você aprenda com isso e não faça de novo. As pessoas vão guardar rancor de você.
Enquanto respondo com um “É”, me pergunto por que Yakki acabaria ressentida comigo pelo que aconteceu com Hakamada-kun.
Sempre que não entendia algo, eu costumava perguntar ao papai. Raramente recorria à mamãe, e ainda não o faço. Pensando bem, mamãe é um pouco parecida com Yakki.
Yakki geralmente é leve, sorridente e fácil de conversar. Mas às vezes pode ser cruel de repente. Palavras tão duras que chegam a chocar saem de sua boca, e ela explode com alguém. Então, com o tempo, age como se nada tivesse acontecido, como se nem lembrasse do que disse.
Já aconteceu várias vezes de uma coisinha que a mamãe disse sem querer—ou pelo menos acho que foi sem querer—me ferir no peito, como uma faca de vidro, me deixando em dor.
Sempre que eu falava disso com o papai, ele dizia: “Ela não quis te machucar”, e passava a mão na minha cabeça.
Eu sempre pensava: ela só estava de mau humor, ou algo assim. Ela tem dias assim.
Quando foi aquela vez que o papai e a mamãe brigaram?
— Estou dizendo que não é justo você agir assim! — gritou mamãe.
— Não precisa gritar. Eu consigo te ouvir muito bem.
— Eu sou sempre a vilã. Pode ser que você esteja bem com isso, mas eu não aguento mais.
— Você não é a vilã. Eu não acho que você seja má. Se tem alguém errado aqui, sou eu.
— Você não pensa isso, e sabe disso!
— Eu penso, sim.
— Então, o que tem de errado em você?
— Eu te deixo com raiva. Se eu não fosse ruim, você não ficaria brava comigo.
Papai era uma pessoa quieta. Estava sempre sorrindo, com um pouco de preocupação no rosto, ou parecia exausto e cansado.
No dia em que o papai morreu, mamãe se sentou em um banco no hospital, com o rosto entre as mãos.
— Como eu vou continuar vivendo sem você...?
Sentei ao lado dela, passando a mão nas costas dela. Tinha certeza de que o papai teria feito o mesmo.
— Eu estou aqui, mamãe. Você não está sozinha.
Mamãe chorou por um tempo, depois assentiu. Depois disso, aconteceu um monte de coisas naquela noite, e eu fui para um quarto escuro assistir aos vídeos que o papai havia gravado. Papai não aparecia em nenhum deles.
Em um vídeo, eu estava correndo. Onde era aquele campo, afinal?
Se eu perguntasse para mamãe, ela saberia? Mamãe provavelmente sabia. Mamãe devia estar com a gente naquela época.
Eu quero ir para aquele lugar. O sol brilha forte, quase não há vento, e, se eu ficar parada, é quente, mas eu posso apenas correr.
— Você não gosta de rosa, Meri? — papai me pergunta.
— Não, não gosto muito — digo.
— Que cor você gosta?
— Branco, talvez? Ah, e azul!
— Azul claro, né.
As roupas que mamãe comprava para mim por conta própria geralmente eram rosas.
— Você é uma menina, então rosa é mesmo a cor mais fofa, não acha? — ela sempre dizia.
Sempre que ela dizia isso e eu me irritava, papai dizia, prestativo: — Mesmo sendo menina, acho que ela pode usar a cor que quiser.
Eu quero correr.
Vamos correr.
Eu vou correr.
— Ei... — ouço uma voz me chamando.
Quem poderia ser?
Papai, talvez? A voz soa diferente.
Quero correr mais, então ignoro e corro.
— Ei, Mary... — Acho que é uma voz familiar.
Eu paro. Será que é o Michiki?
Viro-me para trás.
Há alguém à distância. Não é apenas uma pessoa. Talvez Michiki e o grupo dele?
— Michiki? Mutsumi? Ogu?
Levanto a voz, chamando por eles. Não sei se são três pessoas ou não. Eles estão longe demais. Seja como for, há alguém bem distante, e não se movem.
— Mutsumi? Ogu? Michiki? Yakki? Pai? Mãe?
Não importa quantas vezes eu chame, eles não vêm. Se não forem Michiki e os outros, ou Yakki, ou meu pai, ou minha mãe...
Eu tento chamar todos os nomes. Todos...
Quem? Quem são todos?
Não consigo lembrar.
Por quê?
Oh, claro, penso. Se eles não vêm até mim, eu posso ir até eles.
Desta vez, corro na direção deles.
Corro.
Mas, por mais que eu corra, não consigo me aproximar dessas pessoas. Avanço e avanço, mas elas não ficam maiores.
Fico exausta e paro.
De repente, uma sombra passa.
Viro-me para trás, e algo grande e escuro voa acima de mim.
O que é isso?
Eu o sigo com os olhos.
Desaparece no horizonte antes que eu consiga entender o que era.
Desisto e procuro aquelas pessoas.
Elas não estão mais lá. Em lugar nenhum. Sumiram.
Não sei para onde. De onde vim, e para onde estava indo?
O campo gramado se estende até onde a vista alcança. A grama, o céu. Não há mais nada.
— ...Estou sozinha — sussurro.
Minha voz nem soa oca. Está presa, reprimida dentro do meu coração.
Completamente... sozinha.
Reflito sobre essas palavras, mastigando-as até perderem todo o sabor, e então finalmente percebo.
Oh.
Olho ao redor.
O céu, a grama, e mais nada, como sempre.
Eu morri, percebo. É por isso que estou sozinha.
Sinto que havia alguém à distância antes, mas é só imaginação minha. Morri e acabei completamente sozinha, então não podia haver ninguém.
Quando você morre, perde a si mesmo e para de entender qualquer coisa, tenho certeza.
Mas, antes disso, eu queria vê-los. Esse desejo meu pode ter feito parecer que havia alguém ali.
Tento me sentar. Meu corpo não obedece.
Baixo os olhos.
Não consigo ver minhas próprias mãos. Não tenho braços, nem pernas, nem corpo.
Não tenho nada.
Ah, é porque eu morri—eu penso.
Porque eu morri, não sobrou nada de mim.
Mas é estranho.
Eu ainda consigo pensar assim.
Será que realmente estou pensando?
Mesmo que eu já não exista?
Nesse campo infinito, com o céu tão alto...
Campo?
Céu?
Onde estão eles?
Sumiram.
Não vejo nada.
Não ouço nada porque o vento não sopra?
Tento fechar os olhos. Nada muda. Obviamente.
Não tenho corpo. Então, não tenho olhos.
A única coisa que posso fazer é pensar.
Não sei se o que estou fazendo é pensar ou não, mas penso.
Penso.
Sobre o que devo pensar?
Decido contar.
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Onze. Doze. Treze. Quatorze. Quinze. Dezesseis. Dezessete. Dezoito. Dezenove. Vinte. Vinte e um. Vinte e dois. Vinte e três. Vinte e quatro. Vinte e cinco. Vinte e seis. Vinte e sete. Vinte e oito. Vinte e nove. Trinta. Trinta e um. Trinta e dois. Trinta e três. Trinta e quatro. Trinta e cinco. Trinta e seis. Trinta e sete. Trinta e oito. Trinta e nove. Quarenta. Quarenta e um. Quarenta e dois. Quarenta e três. Quarenta e quatro. Quarenta e cinco. Quarenta e seis. Quarenta e sete. Quarenta e oito. Quarenta e nove. Cinquenta. Cinquenta e um. Cinquenta e dois. Cinquenta e três. Cinquenta e quatro. Cinquenta e cinco. Cinquenta e seis. Cinquenta e sete. Cinquenta e oito. Cinquenta e nove. Sessenta. Sessenta e um. Sessenta e dois. Sessenta e três. Sessenta e quatro. Sessenta... sessenta... e quatro. Cinco? Sessenta... seis... sessenta... e cinco? Seis?
Não, deixe-me contar. Os números, por favor. Se eu não fizer isso, ah...
Eu vou desaparecer.
Desaparecer.
Desap...
— Mary.
Há uma voz.
A voz de alguém.
Eu quero te ver.
Porque essa é a última vez.
Este é o fim.
Antes que eu desapareça.
Todos, por favor—
Quem é “todos”?
Mary? Mary...?
Ele segurou minha mão.
O que... o que eu devo fazer...?
Você não precisa fazer nada.
Eu não preciso de nada.
Porque você já fez o suficiente por mim.
Isso não é mentira.
Eu
Fui
Feliz
Porque eu
Não estava sozinha.
Você esteve
Lá por mim.
Haru
Eu
Ouça, eu
Haru, eu
O que era mesmo?
Eu
O que eu estava tentando dizer?
Eu esqueci.
Havia tantas coisas que eu queria te contar.
Tantas coisas.
Elas estão escapando, então adeus.
Oh, se isso for um adeus...
Se eu estou indo para longe...
Todos...
Estou feliz por ter conseguido...
— Ei, nerdão.
Eu tenho um sorriso idiota no meu rosto cheio de espinhas quando Matt, o grandalhão que passou mais de cinco anos me zombando, me chama disso.
Nesse momento, eu perco a cabeça. Eu avanço contra ele. Meu ataque surpresa é um sucesso. Eu derrubo Matt. Eu o monto e começo a golpear seu rosto.
Meu corpo é fraco. Eu não consigo realmente machucar Matt, então meus golpes são ineficazes.
Matt se recupera do choque. Ele facilmente me empurra para longe. Em pouco tempo, Matt começa a me espancar, e seus golpes não são nem um pouco inofensivos.
Dói. Eu estou assustado. Quero que ele me poupe. Mas eu não imploro por misericórdia. Eu me defendo desesperadamente, cerro os dentes. Resisto até que a fúria de Matt cesse.
Os punhos de Matt começam a doer eventualmente, e ele vai embora, soltando palavrões enquanto se afasta.
Eu fico deitado na beira da estrada, na South Pine Street, sozinho, cantando uma pequena canção de vitória para mim mesmo. Eu sou um nerd, mas não sou fraco. Nem burro. Eu vou ficar mais forte e realizar meu sonho.
Eu estudo japonês. Meus principais materiais de estudo são anime e mangá. Também anisongs e J-pop. Depois, leio romances japoneses. Eu estudo.
Eu já era bom em ciências desde o início. Depois que começo a estudar japonês sozinho, paro de odiar tanto as matérias de humanas.
Eu corro. Faço alongamentos. Levanto peso. Treino meu corpo.
Eu não consigo ser um grandalhão como Matt. Mesmo assim, ganhei alguns músculos. Ninguém quer nada comigo agora.
Eu suporto a solidão. Me esforço ao máximo. Finalmente, piso em solo japonês como estudante de intercâmbio. É por um período de cerca de um ano.
Por que eu não pude nascer neste país? De qualquer forma, o país combina comigo. Eu sou um otaku e um nerd, claro.
Com minha família anfitriã, os Hazaki, eu sinto um tipo de amor familiar caloroso que nunca experimentei com minha família de verdade.
Na escola japonesa, um lugar que sonhei em frequentar, consigo fazer amigos de verdade pela primeira vez.
Eu encontro o amor, também.
Com uma colegial japonesa, uma JK, Satsuki. Sim, eu arranjei uma namorada com o mesmo nome daquela garota de Meu Amigo Totoro.
Eu seguro as mãos de Satsuki...
Caminhamos por um dique, atravessamos uma ponte, entramos em uma livraria.
— Jessie, seu japonês é muito bom — diz ela. — É tão natural.
...Satsuki?
Jessie?
E u be ij o Sa tsu ki.
É um beijo doce, apenas com os lábios tocando.
...Quem? Eu? Com Satsuki?
Eu amo Satsuki de verdade. Quero amá-la com toda a sinceridade que posso reunir, mas sem deixar de ser eu mesmo.
Am ar Sa tsuk i se m de ix ar de ser e u mes mo...
Algo parece estranho. Algo está errado. O dia em que eu deixarei o Japão se aproxima.
Satsuki me diz: — Eu fico bem com um relacionamento à distância.
Eu apenas digo repetidamente que a amo. Porque amo Satsuki.
Finalmente, volto para casa. Faço chamadas de vídeo com Satsuki várias vezes ao dia. Conversamos sobre tudo e nada. Só isso já me faz feliz.
Mas, quando as chamadas terminam, sinto-me irremediavelmente sozinho e triste. Quero ouvir a voz de Satsuki de novo. Quero ver o rosto dela.
Enquanto encerro mais uma chamada, porque já está tarde no Japão e Satsuki deve precisar dormir, sinto que algo está errado.
— Jessie, você não está sendo meio frio ultimamente? — diz Satsuki, e, quando peço desculpas, ela explode comigo.
Algo está estranho. Está errado. Tudo está errado.
Quem sou eu? Sou Jessie? Eu...
— Ageha, estaremos juntos para sempre. — Takaya me abraça apertado e sussurra no meu ouvido.
Quero que ele me segure assim para sempre. O queixo de Takaya está pressionado contra minha testa.
Takaya não faz a barba direito todos os dias, então, quando se mexe, sua barba arranha minha testa, e isso dói um pouco. Lembro-me de dizer a ele para se barbear. Ele disse “tudo bem”, mas se esquece depois de alguns dias. No fim, desisto. Acabo me acostumando.
Agora, não acho essa sensação tão desagradável. Desta vez, quando Takaya e eu estamos enrolados juntos em um cobertor, está quente, minha cabeça está enevoada, sinto sono, mas não consigo dormir, e ele é tão precioso para mim. Eu o amo, e quero pedir para que ele me beije, mas estou com vergonha. Quero que Takaya faça isso por conta própria. No entanto, Takaya está dormindo.
Ah, qual é! Fico irritada. Tento dormir também. Quando tento, os lábios de Takaya pressionam minha testa. Lentamente, eles descem. Eu os recebo com os meus próprios lábios.
Enquanto compartilhamos um longo beijo, sinto que algo está estranho. Algo está errado.
O calor de Takaya desaparece. Ele estava quente até um momento atrás. Quente, até.
Ainda estou segurando Takaya. Tento aquecê-lo. Não acho que seja em vão. Não quero pensar nisso.
Rikimaru está por perto. Karatsu está aqui. Domiko está aqui. Taratsuna está aqui. Ninguém mais se move.
O sangue derramado pelos meus companheiros agora está frio. Ouço o zumbido dos insetos. Moscas estão se juntando. Tento afastá-las com a mão. Mas não consigo afastá-las todas. É difícil até mesmo mexer minha mão. Quando olho, as moscas também estão se aglomerando no meu estômago.
Quero fazer algo quanto a isso. Não sei o que fazer.
Takaya. Acorde, Takaya. Quero chamar o nome dele. Minha voz não sai.
Uma mosca pousa nos meus lábios. Ela se move lentamente. Está tentando entrar em mim. Tento fechar a boca. Mas não consigo direito. Em vez disso, meus olhos começam a fechar. Sinto que algo está estranho. Algo está errado.
— Há uma maneira. Apenas uma.
Percebo algo.
Mesmo que não me tenham dito diretamente, não me deram a chave? Qual o significado de sermos ensinados Magic Missile, que de certo modo é um feitiço único, como nosso primeiro feitiço?
Agora entendo. Então era isso.
— É assim que é, não é, Mago Sarai?
Digo isso diretamente a ele, Sarai, o grande ancião da guilda dos magos, que apenas sorri e não diz nada.
Estão me dizendo para pensar nisso por conta própria, entendo. Para abrir meu próprio caminho. Se não o fizer, nunca alcançarei a verdadeira magia. As coisas que eu descobrir assim serão minha magia.
Mesmo que pergunte sobre isso, Sarai não confirmará. Contudo, estou confiante. Finalmente consigo enxergar. O caminho que devo seguir. Caminharei pelo caminho onde não há caminho. Esse é o meu caminho.
— Yasuma — diz Sarai para mim. — Não seja precipitado. Agora olhe para mim. A vida é longa, sabe? Você pode ir devagar.
Naturalmente, essa era minha intenção. Mesmo sentindo que algo está estranho, finalmente encontrei uma pista. É estranho dizer isso de mim mesmo, mas acho que sou sério e estudioso. Quando me tornei um soldado voluntário e mago, dediquei-me completamente a dominar a magia. Adquiri muitos feitiços.
Dou minha opinião e, se sinto que alguém está errado, digo isso. Por causa disso, já tive desentendimentos e me separei de algumas pessoas. No entanto, sempre há quem precise de mim como mago.
Como mago e soldado voluntário, vivi uma vida da qual posso me orgulhar. Tenho consciência disso. Ainda assim, algo está estranho.
Decido aprimorar meu Magic Missile. Tenho confiança de que isso será meu avanço. Ainda estou no meio do caminho. Não, nem isso; pode-se dizer que estou apenas começando.
Não posso cair ainda. E, no entanto, sinto que algo está estranho.
— Viva com força, Itsunaga. Com força...
Minha mãe está quase completamente coberta por folhas caídas. Eu mesmo as juntei.
Minha mãe parece estar com frio. Ela está tremendo. Por isso, penso que preciso aquecê-la.
Seguro a mão da minha mãe. Ela aperta minha mão de volta. Logo, seu aperto enfraquece. Minha mãe sorri.
Minha mãe está morrendo. Eu sei disso também. Já vi muitas criaturas morrerem, então sei o que é a morte. Minha mãe está prestes a morrer e está me deixando uma mensagem para que viva com força.
Acho que algo está estranho. Algo está estranho. Seja como for, minha mãe vai morrer. Segurando sua mão enquanto ela para de se mover, juro a mim mesmo que nunca esquecerei o que as pessoas da aldeia fizeram com ela e comigo.
Minha mãe não expressa nenhuma palavra de reclamação. No entanto, não consigo perdoar as pessoas da aldeia. Simplesmente não posso.
No bolso, guardei a pequena lâmina que minha mãe me deu para proteção. Resolvo vingar-me com esta lâmina. Se esta pequena lâmina não alcançar suas gargantas, encontrarei uma lâmina mais longa e, com ela, perfurarei seus corações com um único golpe.
Se eu contar isso a ela, minha mãe certamente me impedirá. Então, não direi nada. Silenciosamente, deixo minha mãe morrer em paz.
Que ela descanse.
Mas acho que algo está estranho.
Algo está estranho.
Quem sou eu? Sou Itsunaga? Nem mesmo eu sei mais quem sou. Não por completo.
Nomes mudam. Não me importo com como sou chamado. Deixo de lado dez nomes, pego cem, e possuo mil.
Diha Gatt. Esse é apenas um dos mil nomes que carrego. No entanto, é um nome bastante antigo. Talvez o mais antigo entre eles.
Eu sou—
Jessie Smith.
Ageha.
Yasuma.
Itsunaga.
Diha Gatt.
Quem sou eu?
O nome não importa. Tenho mil nomes. Atravessei milhares de terras.
Sem destino? Acho que algo está estranho. Enquanto vago em busca de paisagens desconhecidas, algo está estranho em mim.
De pé nos penhascos íngremes da enseada, com o vento subindo, olho para o mar onde o verde brilhante se transforma em azul, e depois em tons ainda mais profundos. Inalando o intenso aroma do mar, fecho os olhos.
Contemplo minhas próprias mãos. Minhas mãos, de tonalidade esverdeada. Meus dedos, robustos. Minhas garras, firmes e resistentes.
Eu sou um rato solitário.
O Rei dos Ratos.
Eu sou
Je geha há tsuna a sie yasu di su ma ie gatt mith ga didididididiha gagagagagagagagagagagagagatt gaitsutsutsutsutsuna gayasususususususususumaa geageagegegegegegegegeagehajessiejejejesiesmismismismismismismismithit hmememememememememememememe merryryryrymemememememememememememe jessiesmithagehayasuma itsunagadihagattratatatatatatatatatat kinginginginging
Eu não devo ir mais longe.
Eu estou correndo
Cor ren do
Corr
Nenhum campo
Nenhum céu
Nada
On de é is to?
Ning uém es tá a qui
Es tou soz inha
Você não está sozinha, alguém diz.
Várias pessoas dizem isso. Elas se aproximam. Me tocam. Sem hesitação. Violentamente. Forçam sua entrada em mim. Invadem.
Parem. Não entrem. Não dentro de mim. Não. Por favor.
— Mary!
Isso é...
Isso é o meu...
— Mary!
Chamem meu nome.
Chamem mais.
Me prendam.
Não soltem.
— Mary!
— Mary!
— Mary!
Ah...
E então, eu tento abrir os olhos.
Kuzaku entrou na prisão.
— Mas que droga! — ele gritou para a party. — Aqueles bichos pretendem ficar aqui mesmo depois que escurecer?!
Várias vezes, mais do que podia contar, Kuzaku tinha saído e voltado assim. Ele devia estar exausto. Sem dúvida, estava faminto e sedento. Mesmo assim, não conseguia ficar parado.
Era fácil entender o motivo. Haruhiro sentia o mesmo. Era difícil se manter calado sobre aquilo. Mas ele não podia se afastar do lado dela.
Yume estava sentada com um joelho levantado perto da entrada quebrada, onde não havia mais porta. Embora tivesse uma katana na mão, seus dedos mal estavam segurando o cabo.
Yume continuava olhando para baixo o tempo todo. Mesmo que ele a chamasse, talvez ela não respondesse. Era essa a impressão que Haruhiro tinha.
Shihoru estava em um estado parecido. Sentada ao lado de Haruhiro, com a cabeça baixa, ela permanecia imóvel.
Os pássaros continuavam fazendo um barulho terrível. Revezando-se no buraco do teto, mais de dez corvos permaneciam tão barulhentos quanto antes.
Kuzaku chutou o chão e depois se agachou. Um momento depois, ele perguntou: — O que vamos fazer?
Haruhiro abriu a boca para dizer algo. Nada saiu.
Ele passou a língua nos lábios. Doíam um pouco. Estavam secos e rachados.
No fim, Haruhiro apenas disse: — Nada ainda.
— Certo, então.
Kuzaku tentou se levantar. Suas pernas não estavam funcionando? Ele acabou caindo.
Quanto a Haruhiro, ele não estava apenas observando e sem fazer nada. Foi preciso muita coragem, mas ele verificou o estado de Mary e de Jessie, que havia se transformado em algo como uma boneca de couro fina. E fez isso não apenas uma vez, mas várias.
Era especialmente assustador tocar em Jessie. Não havia calor em sua pele, e ela não parecia úmida, mas também não estava completamente seca.
Haruhiro tentou levantar o pulso esquerdo de Jessie. Tinha peso, como deveria. Mas não o peso de um humano. Jessie era apenas pele e ossos agora? Não havia como ele estar vivo, mas também não exalava o cheiro da morte. Isso significava que ele não estava apodrecendo.
Nesse ponto, ela era igual.
Ela havia morrido. Ou deveria ter morrido. Haruhiro estava lá no momento em que aconteceu.
Mesmo agora, naquele momento, ela não estava viva. Ele havia confirmado isso. Não tinha pulso. Seu coração não batia. A temperatura de seu corpo provavelmente não era muito diferente da temperatura ambiente. Apesar disso, o rigor mortis1 não havia se instalado. Ela não estava se decompondo.
Havia mais uma coisa que ele verificou, já que lhe chamou atenção.
Nos humanos, enquanto estavam vivos, o coração bombeava sangue constantemente por todo o corpo. Quando o coração parava, naturalmente o fluxo de sangue também cessava. O que acontecia então?
O sangue era afetado pela gravidade. Se uma pessoa estivesse deitada de costas, o sangue se acumulava na parte posterior do corpo. Isso era visível até mesmo do lado de fora de um cadáver. Era chamado de lividez post-mortem, e a área afetada ficava arroxeada.
Haruhiro tentou levantar a cabeça dela. Para isso, teve que mover Jessie, que mantinha o pulso esquerdo pressionado contra o ferimento no ombro dela. Haruhiro gentilmente desfez o pano que os prendia juntos.
Ele duvidou de seus olhos. Havia um ferimento, como um corte, no pulso esquerdo de Jessie. No entanto, o ombro dela estava limpo.
O ferimento profundo, que poderia muito bem ser considerado o responsável por sua morte, havia desaparecido completamente. Nem mesmo os vestígios do sangue abundante que deveria ter saído do ferimento de Jessie estavam lá. Até o pano, que deveria estar encharcado de sangue, estava seco e não particularmente sujo.
Com um gemido, Haruhiro levantou a cabeça dela, afastando o cabelo para olhar a nuca.
Talvez o resultado fosse esperado.
Não havia sinais de lividez post-mortem ali.
O que exatamente isso significava? Ela não estava viva. No entanto, ele também não podia dizer que estava morta. Não havia como ela permanecer daquele jeito. Alguma mudança precisaria ocorrer.
Que tipo de mudança? Ele não podia prever. Era óbvio. Não havia como ele prever isso.
Haruhiro estava esperançoso de que fosse uma boa mudança. Ao mesmo tempo, estava assustado. Algo inacreditável poderia estar prestes a acontecer. Ou talvez já estivesse acontecendo.
Não importava o tipo de mudança que fosse, ele não tinha escolha a não ser aceitá-la. Mas, no final, seria capaz?
Awuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu...
— Whoa! — Kuzaku levantou-se rapidamente.
Yume também olhou para fora.
— Haruhiro-kun... — chamou Shihoru, e Haruhiro assentiu.
Ele não tinha esquecido. Jessie os avisara. Quando o sol se pusesse, os vooloos apareceriam.
Yume ficou de joelhos, preparando sua katana. Alguém entrou correndo na prisão. Yume deixou a pessoa passar sem interceptá-la. Não era um dos necrófagos conhecidos como vooloos. Era Setora, carregando um cajado, seguida por Kiichi, o nyaa cinzento.
Setora sequer olhou para Yume ou Kuzaku enquanto corria até Haruhiro.
— Haru!
— Sim — foi tudo o que Haruhiro respondeu.
Setora apoiou o cajado nas grades e parou na frente de Haruhiro, respirando fundo.
Kiichi roçou-se nas pernas de Setora, soltando um miado: nyaa.
— Onde você esteve esse tempo todo? — perguntou Shihoru.
— Procurando, — respondeu Setora de forma seca, tirando um objeto do tamanho de um punho do bolso.
Não era apenas o tamanho. Tinha o formato de um punho cerrado também. Era de metal? Parecia duro e tinha um peso considerável. Havia diversos buracos nele, de onde vazava uma luz azulada.
Haruhiro olhou para o objeto. Apenas isso. Não despertava seu interesse. Não importava o que fosse, ele simplesmente não ligava.
— Isso é um receptáculo de pseudo-alma — explicou Setora, por conta própria. — A pseudo-alma de Enba está aqui dentro. É o que se pode chamar de corpo verdadeiro de um golem de carne. O necromante liga uma pseudo-alma a um golem feito costurando corpos mortos. Eu nasci na Casa Shuro, e mexo com cadáveres de pessoas e animais desde que me lembro. Mesmo na aldeia, a Casa Shuro é vista como algo inquietante. Muitas vezes, zombavam de mim, me chamando de fedorenta.
Ela fez uma pausa.
— A verdade é que um necromante raramente lida com corpos apodrecidos. Na verdade, um cadáver meticulosamente lavado é mais limpo e menos fedorento que um humano vivo. Além disso, quando usados corretamente, ossos, músculos, vasos sanguíneos e órgãos são incrivelmente belos. Ver um golem de carne, feito costurando essas coisas, começar a se mover é, no mínimo, emocionante. No entanto, depois que criei Enba, perdi a motivação para criar outro golem. Os necromantes da Casa Shuro criam golems, os destroem e criam novos, repetindo isso ao longo de suas vidas, buscando aperfeiçoar sua arte. Mas eu fiquei satisfeita com Enba. Não que os outros membros da minha casa tenham entendido isso. Consideravam excêntrico que uma mulher da Casa Shuro criasse nyaas. Parece que sou uma espécie de esquisita.
Haruhiro acenou vagamente com a cabeça. Em outra situação, talvez ele tivesse ouvido Setora com atenção. Mas agora não. Ele não queria ouvir. Não podia ouvir. Para ser franco, tinha outras preocupações.
— Haru. — Setora guardou o receptáculo de pseudo-alma de volta no bolso. Kiichi olhou para ela, curioso. — Você ama aquela mulher, não é?
— O quê...? — O rosto de Haruhiro se contorceu, e ele perdeu as palavras. Por que ela diria isso, do nada?
Por que aqui? Por que agora?
Awuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu...
Os vooloos estavam uivando.
Haruhiro olhou para o buraco no teto. Em algum momento, todos os corvos haviam desaparecido. Ele abaixou o olhar, piscou duas vezes e respirou fundo.
— É unilateral — disse ele.
Não posso mentir, pensou. Isso é a única coisa que não posso fazer.
— São só os meus... sentimentos unilaterais, pode-se dizer. Isso não é realmente da sua-
— Tudo bem. — Setora se agachou, estendendo a mão direita e cobrindo a boca de Haruhiro. Então, por algum motivo, ela sorriu levemente e disse: — Eu entendo. Mas ouça, Haru.
A mão de Setora tremia. Ela aplicou mais força.
— Os mortos não voltam.
Haruhiro não conseguiu dizer nada em resposta. Não porque Setora cobria sua boca. Ele podia facilmente afastá-la. Haruhiro estava desconfiado.
Estou sonhando? Um sonho onde os mortos voltam à vida? Mesmo sabendo que a morte é o fim para as pessoas?
Com aquela única frase de Setora, seu sonho conveniente se despedaçou, e ele acordou. Era assim que ele se sentia agora.
1 Rigor mortis, ou rigidez cadavérica, é um sinal de morte que acontece devido a uma alteração química nos músculos. Isso faz com que os músculos do corpo se tornem rígidos e difíceis de mover.

Setora recuou a mão direita, envolvendo-a com a esquerda e apertando-a firmemente.
— O golem foi, de certa forma, um produto de um compromisso. As pessoas que mais tarde passaram a ser conhecidas como necromantes inicialmente tentavam ressuscitar os mortos. A aquisição de uma relíquia permitiu que eles criassem pseudo-almas, e continuaram suas tentativas após a criação do golem. No entanto, nunca tiveram sucesso, nem uma única vez. A morte é um fenômeno irreversível. Não são apenas as pessoas—nenhum ser vivo pode retornar da morte. Mesmo que aquela mulher volte a respirar, do meu ponto de vista, não será o tipo de ressurreição que você espera. A mulher que voltar pode ser uma pessoa diferente daquela que morreu. Espero que, pelo menos, ela não seja algum tipo de monstro desconhecido.
Haruhiro permaneceu em silêncio.
— Ainda assim, se ela for adoravelmente leal como um golem, já é alguma coisa. Mas o que você fará se ela não for?
— O que eu... faria?
— Não — disse Setora. — Não há nada que você possa fazer. Você terá que reconhecer e aceitar tudo.
— Eu... sei disso.
— Sabe mesmo? Pode dizer com confiança que está preparado para isso, Haru?
Se estivesse preparado, ele deveria ter erguido a cabeça e assentido de imediato. Mas não conseguiu.
— Se você não conseguir fazer isso... — Setora suavizou o tom e falou em voz baixa. — ...então há algo que você precisa fazer agora.
— Algo... que eu preciso fazer?
— Sim, exatamente. Tenho certeza de que ainda há tempo. Perfure a cabeça e o coração daquela mulher com seu estilete. Acabe com isso dessa forma. Se não puder fazer isso, eu posso fazer por você. Estou acostumada a carregar o carma ruim dos outros. Posso fazer isso sem hesitação. Farei num instante.
Ainda há tempo. Será? Tenho que fazer isso. Eu. Com minhas próprias mãos. Isso, ou deixar que Setora faça. Não, se alguém tiver que fazer, tem que ser eu. Mas será mesmo necessário? Não é. Resolução. É isso. Se eu apenas tiver a resolução. Se eu puder dizer que estou bem, não importa o que aconteça.
— Urgh... — Um gemido ecoou.
Não foi de Haruhiro. Nem de Setora. Tampouco de Shihoru, Yume ou Kuzaku.
Foi de Mary.
Os membros de Mary se estenderam para fora. Não eram apenas os braços e as pernas. Seu pescoço e torso também se arqueavam como um arco.
— Mary...! — Haruhiro jogou-se sobre ela. Sua cabeça logo foi jogada para trás.
— Uwahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! — ele gritou.
Estava escuro, então ele não conseguia enxergar bem, mas algo estava saindo da boca de Mary—provavelmente de outras partes do corpo também. O quê? O que estava saindo de Mary?
— Ngh... — Haruhiro cobriu a boca instintivamente e prendeu a respiração.
Aquele cheiro.
Sangue?
Poderia ser sangue, talvez? Era semelhante ao cheiro de sangue. Não, mas era mais cru.
— O que...? — Setora recuou.
— M-Mary-chan?! — Yume gritou.
— Mary-san! — Kuzaku gritou.
— Eek! — Shihoru deixou escapar um gritinho.
O que era aquilo? Que diabos era aquilo? Haruhiro acabou ajoelhando-se com a mão esquerda no chão. O sangue, ou o que quer que fosse, ele não sabia direito, mas o líquido que estava saindo de Mary molhou sua mão esquerda e depois seus joelhos. Era uma quantidade absurda.
— Aguh, goh, guh, gah, gwuh, gwah, agah, cack, fugagh... — Mary emitia sons bizarros em vez de sua voz enquanto continuava a vomitar a substância líquida.
O que agora? O que eu devo fazer? Não posso simplesmente ficar parado. Preciso tomar alguma atitude. Tenho que fazer algo. Quero dizer, ela parece estar sofrendo.
— M-Mary...! — Haruhiro deu um passo ousado à frente, abraçando Mary pelos ombros. Ele queria parar aquilo. Parar o líquido de sair. Mas seria certo fazê-lo? Ele podia parar? Como?
O líquido continuava saindo de dentro de Mary. Ela já estava encharcada. Haruhiro também. Suas mãos, braços, pernas, tudo estava coberto. O líquido tinha respingado até mesmo em seu rosto. Provavelmente, aquilo não era sangue comum. Ou será que era sangue?
Haruhiro pressionou o ombro direito de Mary com sua mão esquerda, enquanto estendia a direita até o rosto dela. Não era só a boca, afinal. Parecia que o líquido estava saindo também pelo nariz e pelos olhos. Haruhiro tentou limpar. Era inútil. Continuava a sair. Será que havia uma fonte inesgotável? Não parava, nem por um instante. Mas ele não podia deixar de tentar limpar. Porque não era possível simplesmente não fazer nada.
— Mary, você consegue me ouvir?! Mary! Sou eu, Haruhiro! Mary!
Ele queria fazer algo, mas não podia fazer nada quanto àquela substância líquida. Era impossível parar algo que estava jorrando daquela forma.
— Mary! Mary! Mary! — Haruhiro continuava a chamá-la.
O corpo inteiro de Mary estava rígido, e ela podia começar a se debater novamente a qualquer momento. Aquilo devia ser incrivelmente difícil para ela. Provavelmente, ela estava sofrendo.
Se ela estava sofrendo, isso significava que estava em um estado em que podia sofrer. Nesse caso, não estavam quase lá? Quase onde, exatamente? Era difícil de explicar. Mas, provavelmente, faltava muito pouco.
Haruhiro segurou Mary com força e gritou: — Vai ficar tudo bem! Não precisa se preocupar! Eu estou aqui! Nós estamos aqui! Mary, estamos com você!
Seu corpo está aqui, mas talvez você ainda esteja em outro lugar. Um lugar onde minha voz não consegue chegar. Talvez você nem consiga ouvir minha fraca voz. Nesse caso, vou continuar gritando até que chegue até você. Vou rugir, deixar minha voz ecoar, para que alcance você. Talvez eu não consiga pegar sua mão, onde quer que você esteja, e trazê-la de volta. Mas, nesse caso, vou gritar o mais alto que puder e puxar você para mim.
— Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Maryyy. Maryyyyyy!
Haruhiro apertou Mary com mais força. Tentou gritar seu nome mais uma vez. Sua voz já estava rouca há muito tempo. Ele não se importava se arruinasse a própria garganta. Ele a chamaria pelo nome pelo tempo que fosse necessário.
Mary inalou. Até aquele momento, tudo o que ela tinha feito era expelir a substância líquida.
Ela começou a tossir.
— Ha... ru?
Em meio a uma série de tosses, Haruhiro teve certeza de que ouviu Mary dizer isso.
Então ela conseguiu murmurar: — Haru. Era você, Haru?
O que Mary estava pensando que Haruhiro era? Haruhiro não sabia. Mas não importava.
— Sim! Sou eu, Mary. Haruhiro. Você me conhece. Consegue me ouvir, certo? Mary, você voltou. Mary! Mary...!
Mary assentiu. Parecia que as tosses estavam diminuindo. Sua respiração ainda era extremamente irregular. Mesmo assim, Mary havia demonstrado estar consciente. Claramente, de uma forma que não deixava dúvidas. Mary havia chamado pelo nome de Haruhiro. Ela entendia o que Haruhiro estava dizendo.
O que isso significava...?
Isso é inacreditável.
Não, eu posso acreditar.
Que palavras podem expressar esse sentimento? “Conseguimos”? “Graças a Deus”? Devo dizer, “Bem-vinda de volta”? “Estava esperando por você”? “Obrigado por voltar para nós”? “Eu senti sua falta”? Todas essas são verdadeiras, mas, mesmo se eu dissesse todas, não seriam suficientes. Mas, se Mary está conosco, isso é mais que suficiente.
Awuuuuuu! Awuuu! Awuuuuuu! Awuuuuuu! Awuuuuuuuuuu!
— Haruhiro! — Kuzaku gritou. — São aqueles vooloos!
— Vooloos — disse Mary claramente. Ela tentou se levantar.
Haruhiro imediatamente tentou impedi-la.
— Mary, ainda não-
— Não é hora de dizer isso.
Ela estava absolutamente certa. Não era hora de dizer que ela não estava pronta ainda. Haruhiro ajudou Mary a se levantar.
Mary tentou andar, mas cambaleou. Seu cajado estava encostado nas grades próximas.
Mary pegou-o em mãos.
— Para o equipamento — murmurou, então soltou um gemido baixo e balançou a cabeça. — Seria útil ter um escudo. Um arco e flechas também. Eles devem estar no depósito...
— Mary...?
— Precisamos nos apressar.
Mary se agachou, mexendo no corpo de Jessie, que não era tanto um cadáver quanto uma casca abandonada. O que exatamente ela estava fazendo? Antes que ele pudesse perguntar, Mary se levantou.
— Vou mostrar o depósito pra vocês. É bem perto. Venham comigo.
— Er... Uh, tá bom.
Haruhiro tinha algumas dúvidas, mas as colocou de lado. Não era hora de questioná-las.
Setora e Kiichi estavam perto da entrada, assim como Yume e Shihoru.
Kuzaku estava do lado de fora, um pouco afastado. Sua grande katana brilhava com uma luz branca. Ele deve ter usado o feitiço Saber de magia de luz nela.
Awuuuuuuuu! Awuuuu! Awuuu! Awuuuuuuuuu!
Eles estavam perto. Os uivos dos vooloos ecoavam.
— É enorme! — gritou Kuzaku.
Ele estava falando de um vooloo? Onde estavam? Haruhiro ainda não conseguia vê-los.
— Ó Luz, que a proteção divina de Lumiaris esteja sobre você. Protection.
Mary usou magia de luz. Um hexagrama brilhante surgiu no pulso esquerdo de Haruhiro e de todos os outros.
— Hahhhhh! — Kuzaku brandiu sua grande katana. Um clarão branco surgiu e...
Foi só um vislumbre, mas acho que vi um. Um vooloo. É isso? Mas sério, isso não é grande demais...?
— Kuza... — Haruhiro começou a falar.
— Whoa...?!
A sombra do que parecia ser um vooloo engoliu Kuzaku. Não, ele havia pulado sobre Kuzaku e o derrubado? Haruhiro não conseguia dar um passo sequer. Yume, Shihoru e Setora também estavam paralisadas.
A única que se moveu foi Mary. Deixando Haruhiro e os outros para trás, ela avançou.
— Ó Luz, que a proteção divina de Lumiaris esteja sobre você... — Mary lançou uma luz ofuscante em direção ao vooloo que estava sobre Kuzaku. — Blame!
A criatura soltou um grito, todo o seu corpo tremeu e, embora tenha sido apenas por um instante, dessa vez eles conseguiram vê-la claramente.
Era coberta de pelos, provavelmente de uma cor escura. Marrom-escuro, cinza-escuro ou algo assim. Era um lobo necrófago.
Um lobo? Haruhiro pensou, incrédulo. Como isso é um lobo? Em que parte? Lobos não são tão grandes, certo? Eles são mais esguios, não são? Isso aí é sólido demais. Mas parece que o formato da cabeça é parecido com o de um cachorro. Parece um lobo. Mas, no geral, dá uma impressão bem diferente. Aquilo parece mais com um urso.
No momento em que a palavra “urso” veio à mente, ele se lembrou. Jessie tinha falado sobre eles.
“A leste das Montanhas Kuaron, há vooloos maiores que as panteras da névoa do Vale dos Mil. Eles têm o tamanho de ursos” ele havia dito.
Ursos.
Era isso. Ele tinha mencionado ursos!
— Gwahhryahh! — Kuzaku empurrou o vooloo para longe, saindo debaixo dele. Quase ao mesmo tempo, talvez um pouco antes ou logo depois, Mary girou e acertou a cara do vooloo com seu cajado. Parecia que isso deixou o vooloo desorientado.
Mary gritou: — Haru!
E saiu correndo. Ela estava indo para o tal depósito?
— Estamos indo! — Haruhiro disse, mas logo pensou: Isso é ruim. Eu não estou tomando decisões por mim mesmo. Estou só seguindo o fluxo. Qual é o sentido de eu sequer existir? Não, minha razão de existir não importa agora.
— Ahhh, droga! — gritou Kuzaku. — Obrigado, Mary-san! Ainda bem que você tá bem! Zahhhhhh! — Ele acertou o vooloo com sua grande katana e então virou-se e correu.
— Corram, pessoal! Corram! — Haruhiro gesticulou, apressando-os.
Setora e Kiichi, Yume, Shihoru e, por último, Kuzaku seguiram Mary. Haruhiro veio logo atrás de Kuzaku.
Os vooloos estavam vindo.
Awuuuuuuuuu! Awuuu! Awuuuuuuuu! Awuuu! Awuuuuuuuuu!
Os uivos dos vooloos ecoavam por toda parte. Quantos deles havia? Muitos. Como podia haver vários daquelas coisas enormes, parecidas com ursos? Não, antes de se preocupar com os outros vooloos, ele tinha que se preocupar com aquele de antes.
Fweh, hah, hoh, hah, hah, hahh, hah, hahh.
Haruhiro ouvia sua respiração se aproximando. O vooloo de antes estava avançando em disparada. Ele os alcançaria. Estava vindo para atacar.
— Khhh...! — Haruhiro soltou uma exclamação estranha enquanto saltava para o lado, rolava e se levantava novamente.
Por pouco! Suas garras, ou algo do tipo, quase o acertaram!
O vooloo soltou um grunhido insatisfeito, curvando seu enorme corpo como se estivesse se preparando para algo. Estaria?
Oh, merda, merda, merda!
Haruhiro correu. Correu o mais rápido que podia. Mas sentia que não tinha chances de superar aquilo em velocidade.
Olha só. Tá vendo? O vooloo já tá bem perto.
Era escuro, então ele não conseguia enxergá-lo bem. Mas seus olhos brilhavam.
Está perto. É rápido, rápido demais. Vai me pegar.
— Whaa...! —
Ele tentou escapar de alguma forma. Será que não conseguiu a tempo? Quando percebeu, estava sendo esmagado. Um cheiro intenso de animal o envolvia. Ele não conseguia respirar. Seria devorado? Engolido?
— Toma issoooo...! — gritou Kuzaku.
Será que Kuzaku tinha voltado para atacar o vooloo que tentava comer Haruhiro?
O vooloo soltou um ganido, mas não soltou Haruhiro.
— Ei, você! — gritou Kuzaku, desferindo outro golpe no vooloo. — O que acha que está fazendo com o Haruhiro? Sai de cima dele! Eu vou te matar! Morre, seu urso desgraçado! — Ele golpeava repetidamente com sua grande katana.
Não, acho que essa coisa não é um urso, refletiu Haruhiro. Ou é um urso? Isso importa?
Finalmente, o vooloo saiu de cima de Haruhiro.
Imediatamente, Kuzaku puxou Haruhiro e o ajudou a se levantar.
— Haruhiro, você tá bem?!
— É... de algum jeito...
— Isso tá ruim. Não consigo cortar essa coisa. O pelo dele é meio—Oh...?!
Kuzaku foi arremessado para trás. O vooloo tinha investido novamente. No entanto, Kuzaku instintivamente se defendeu com sua grande katana. Ele conseguiu firmar os pés e não ser derrubado.
Awuuuuuu! O vooloo estava prestes a pular em Kuzaku.
Haruhiro sacou seu estilete. Ele nem sequer tinha preparado uma arma até agora.
O que diabos eu estou fazendo?
Ele se lançou contra o vooloo, que estava prestes a investir contra Kuzaku novamente, agarrando-o e cravando o estilete nele. Ele o esfaqueava repetidamente, definitivamente tentando esfaquear com todas as suas forças. O vooloo se contorcia porque não gostava disso, mas... isso não estava funcionando, estava?
O pelo. Aquele pelo oleoso e resistente era o culpado. O pelo emaranhado não era tão duro, mas era denso e formado em camadas, como uma espécie de almofada. Com algo tão curto quanto o estilete, Haruhiro podia enfiá-lo até o cabo, e, no máximo, ele apenas perfuraria aquela “almofada” de pelos.
Isso era ainda mais complicado que a pele semelhante a uma carapaça do guorella. Se fosse para fazer isso da maneira certa, teria que mirar nos olhos ou algo assim?
O vooloo soltou um uivo enquanto levantava a parte superior do corpo. Estava de pé sobre as patas traseiras.
— Ah?! — Haruhiro gritou.
Será que essa coisa não é mesmo um lobo e, na verdade, é um urso? Quero dizer, quando está de pé, é realmente enorme!
— Whoa?! Ohhhh?! — Kuzaku parecia surpreso.
Haruhiro se agarrou desesperadamente às costas do vooloo. Mas o vooloo uivava e balançava seu corpo violentamente, e ele não conseguia aguentar.
Isso é ruim.
Eu não consigo.
Eu não tenho força.
Ele foi lançado longe, atingindo, em vez do chão, a parede de uma construção. A parede não conseguiu segurá-lo, então ele atravessou direto.
— Ungh... Guh...
Hã?
Está... claro?
— Kyaa! — Aquela era... a voz de Yume?
Haruhiro estava de costas no chão. Ele tinha batido a cabeça com força ao atravessar a parede, aparentemente. Por isso, estava um pouco tonto.
Olhando ao redor, ele finalmente viu Yume. E Shihoru também. Além de Setora e Kiichi.
Oh, então era isso. O depósito. Esse era o depósito. Isso fazia sentido. Por isso as luzes estavam acesas. Por isso Yume estava ali, Shihoru estava ali, Setora estava ali, Kiichi estava ali e, claro, Mary também estava.
— ...Hã?
Que estranho.
Por algum motivo, parecia que Mary não estava vestindo nada.
O que era isso? Uma ilusão? Tinha que ser. Afinal, não havia motivo para ela estar nua ali.
— Haru...!
Mary veio voando em sua direção, não literalmente, é claro. Isso era óbvio. Mary não podia voar. Mas ela foi rápida.
Quando Mary, nua, o abraçou, Haruhiro pensou que talvez aquilo fosse o paraíso. Não, provavelmente não. Não existia um paraíso, certo? Mas, nesse caso, isso era a realidade...?
— Ei, você! — Setora jogou um casaco azul para Mary. — Vista isso, pelo menos!
— Ah...! — Com a cabeça de Haruhiro ainda em seu colo, Mary pegou a peça de roupa e cobriu os seios. — E-Eu estava... hum, minhas roupas molharam, então eu estava trocando...
— O-Oh... — Haruhiro fechou os olhos com força. — ...Certo. Eu não vou olhar. De jeito nenhum.
— Miau! Kuzakkun tá em apuros! — gritou Yume.
— Precisamos ajudá-lo! — exclamou Shihoru.
Yume e Shihoru estavam fazendo um alvoroço por algum motivo. Não, não era por qualquer motivo. Kuzaku estava enfrentando um vooloo sozinho. E eu? O que estou fazendo? É aceitável usar o colo de Mary como travesseiro enquanto ela troca de roupa? Não, não é, certo?
— Hum, Haru, já vesti a parte de cima, então...
— Oh, ohh...
Haruhiro abriu os olhos e se levantou apressadamente. Olhou de relance para Mary.
Mary estava no meio de se levantar. Ela vestia o casaco azul, como deveria. Mas suas pernas estavam nuas. Ela disse que tinha coberto a parte de cima. E a parte de baixo...?
Ele balançou a cabeça. Mesmo que ela estivesse sem nada na parte de baixo, o que importava? Além disso, se ela tinha roupas para trocar, era óbvio que iria querer se trocar. As roupas anteriores estavam completamente arruinadas. Honestamente, Haruhiro também queria se trocar.
Yume estava com um arco, com uma aljava cheia de flechas pendurada no ombro. Setora carregava uma lança e um escudo quadrado.
Shihoru também segurava um escudo, mas não para ela mesma, então provavelmente era para entregá-lo a Kuzaku.
Observando melhor, por menor que fosse, aquele lugar era definitivamente um depósito. As prateleiras estavam cheias de espadas e lanças, e vários escudos estavam encostados nas paredes.
Havia arcos. Havia flechas. Uma prateleira com tecidos e peças de roupa. Não dava para saber o que havia dentro, mas também havia potes. Não eram apenas as lamparinas penduradas nas vigas; havia outras coisas que ele não conseguia identificar de imediato.
Haruhiro olhou involuntariamente na direção de Mary. Imediatamente desviou o olhar. Mary estava agachada, mexendo dentro do casaco. Provavelmente estava colocando alguma roupa.
— Nuwah! Zwah! Seahhhh! — Kuzaku lutava contra o vooloo sozinho.
— C-Certo! — Haruhiro voltou à realidade, mas antes que pudesse dar qualquer ordem...
— O escudo! — gritou Setora, correndo até Shihoru.
— Certo...! — Shihoru reagiu bem, saindo pelo buraco que Haruhiro havia aberto na parede. Yume a seguiu.
Haruhiro deu um tapa na bochecha esquerda com a mão esquerda. Concentre-se, ele disse a si mesmo. Seguiu Yume. Setora trouxe Kiichi e veio junto.
Quando olhou, Shihoru acabava de gritar: — Kuzaku-kun...! — e jogar o escudo. O escudo rolou até os pés de Kuzaku. Ele olhou de relance para ele, mas só isso. Parecia que não tinha tempo para pegá-lo.
Kuzaku avançou contra o vooloo, gritando e brandindo sua grande katana. A lâmina atingiu o ombro esquerdo do vooloo, mas não conseguiu cortá-lo, como era esperado.
Kuzaku recuou a grande katana.
— Keeahh...!
Ele a desceu com força. A lâmina atingiu a cabeça do vooloo, mas a criatura apenas cambaleou e recuou. A espessa pelagem era algo assustador. Como lidar com isso?
— Idiota, não corte! Estoque! — gritou Setora.
Ela não apenas gritou. Correu na direção do vooloo. Com a lança estendida, cravou-a em sua garganta. Incrivelmente, a lança penetrou.
Sem hesitar, Setora soltou a lança e recuou.
— Vai logo, seu idiota!
— Rarrrghhhh!
Kuzaku investiu contra o vooloo. Quando ele entrava no modo de combate, liberando todos os seus instintos de uma vez, ficava violento a ponto de assustar. E foi exatamente assim agora.
Kuzaku colidiu com todo o corpo contra o vooloo. Sua grande katana penetrou fundo no peito da criatura. Surpreendentemente, nesse momento, Setora já havia voltado ao depósito.
— Haru! — Ao ouvir seu nome e se virar, uma lança vinha voando em sua direção.
Por quê? Haruhiro se perguntou, mas instintivamente a pegou.
— Você também, caçadora! — Setora jogou outra lança para Yume e pegou uma para si mesma. — Vamos lá!
Mesmo pensando: Sou um idiota, indeciso, incompetente, inútil e sem esperança, Haruhiro guardou seu estilete e empunhou a lança.
Provavelmente ele nunca tinha usado uma lança antes. Mas e daí?
— Recuando! — gritou Kuzaku, enquanto Setora e Yume avançavam, cada uma tentando chegar primeiro.
O golpe que Kuzaku havia desferido foi especialmente eficaz. O vooloo estava completamente na defensiva.
Dizer que as lanças de Haruhiro, Setora e Yume iriam empalá-lo seria um exagero, mas as três lanças o perfuraram com precisão. O vooloo se arqueou de dor, mas torceu o corpo antes de cair de costas, acabando por tombar de lado. Talvez quisesse se levantar, mas parecia que as quatro lanças e a grande katana de Kuzaku, cravadas em sua garganta, peito e outras partes, estavam atrapalhando.
— Saiam da frente! — gritou Kuzaku, que havia recuado temporariamente, antes de avançar no vooloo em um frenesi. Ele arrancou sua katana e, imediatamente, a cravou novamente.
Ele o perfurou na boca. Kuzaku enfiou a grande katana na boca do vooloo e não parou por aí.
— Nuwohhhhh! — Ele torceu a katana com força bruta, puxando-a para cima. A grande katana cortou a cabeça do vooloo de dentro para fora. Por mais resistente que a criatura fosse, aquilo tinha que ser um golpe fatal.
Haruhiro sentiu alívio. Mas, como se o repreendesse por ser ingênuo, Setora deu uma ordem ao nyaa cinza.
— Kiichi!
Ele estava mesmo sendo ingênuo. Tão ingênuo que teve que se perguntar o que tinha acontecido com ele. Ainda havia vooloos uivando por toda parte, não havia? Isso estava longe de acabar. Eles ainda não tinham superado a situação. Se ainda não tinham saído dessa, por que estava se sentindo aliviado?
Mary saiu do deposito, com seu cajado em uma mão e uma lamparina na outra. Aquele casaco azul, que não parecia nem um pouco sacerdotal, era um visual completamente novo para ela, e Haruhiro não conseguia tirar os olhos dela.
Ele só podia se exasperar consigo mesmo por isso. Algo estava seriamente errado com ele. Não estava conseguindo fazer nada do que um líder deveria. Não era Setora quem estava agindo muito mais como líder? Será que ele estava em uma crise ou algo assim? Era isso?
Não, como poderia chamar isso de crise? Ele nunca foi talhado para ser líder desde o início. Nunca, nem uma vez, tinha sido um bom líder. Ainda assim, não teve escolha a não ser assumir o papel, então fez o que pôde, do jeito que conseguiu, não foi?
Se fosse chamar isso de crise, ele estava em uma crise perpétua. Era normal estar em crise, e ele nunca conseguiria sair disso pelo resto da vida.
Ele era lento, mas tinha que pensar.
Setora tinha dado uma ordem a Kiichi. Parecia que Kiichi tinha ido procurar uma rota de fuga para eles.
Mary estava carregando uma lamparina. Será que aquilo era seguro? A luz parecia chamar a atenção. Mas os vooloos eram noturnos, certo? Eles podiam enxergar no escuro. Se a party não pudesse enxergar, estaria em desvantagem. Melhor ter a luz.
De qualquer forma, por enquanto, precisavam correr. Sair dali.
Era um líder pouco inspirador, e havia muito mais coisas que ele não sabia ou não conseguia fazer do que o contrário, mas não podia se queixar disso, e como não podia sair dessa sozinho, sim, teria que contar com a força de todos os outros.
— Setora! Para onde devemos ir?! — gritou.
— Espere. — Setora fez um som agudo com os dentes. Ela fechou os olhos, girando a cabeça.
Foi sutil, mas havia um leve “Nyaa”.
De que direção tinha vindo? Haruhiro não conseguia decidir. Parecia que Setora tinha ouvido. Ela abriu os olhos, apontando para a esquerda.
— Por aqui, por enquanto. Não posso garantir que é seguro, mas...
— Serve. Kuzaku, vá na frente!
— Tá! — Kuzaku pegou o escudo e assentiu.
— Setora, fique ao meu lado e dê as direções.
— Entendido.
— Yume, fique na retaguarda.
— Miau!
— Mary, você... — Ele quase engasgou com as palavras. Sentiu que poderia chorar. De que adiantaria? Ele só precisava fazer como sempre. Pensar que ainda conseguia dizer o de sempre a Mary era algo bom. — Proteja a Shihoru e fique na frente da Yume!
Sem perder o ritmo, Mary respondeu: — Entendido!
— Shihoru, economize sua magia — acrescentou Haruhiro. — Não sabemos o que está lá fora.
Sua voz estava quase chorosa.
— Certo! — Shihoru respondeu rapidamente, com a voz chorosa também.
— Certo, vamos lá!
Haruhiro e a party começaram a correr.
Ele podia ouvir os uivos dos vooloos. Sentia-os se movendo ao redor, mas quantos eram e onde estavam? Ele não fazia a menor ideia.
Setora frequentemente dizia: “Por aqui!” ou “Por ali!” indicando as direções. Haruhiro apenas as seguia, embora sentisse como se todo o seu corpo estivesse sendo rasgado por uma sensação de impotência. Aceitar que sempre fora assim não fazia essa sensação desaparecer, mas ele conseguia suportar.
Olhando para trás, não era como se nunca tivessem tido momentos em que tudo parecia estar indo bem. Eles aconteciam de vez em quando. Mas, na maior parte do tempo, as coisas não saíam como esperado.
Mesmo quando obtinha resultados, nunca era um placar perfeito, de cem pontos em cem. Sempre pensava: Eu devia ter feito isso, ou Eu devia ter feito daquele jeito, mas simplesmente não consigo. Ele sabia que precisava corrigir suas falhas, mas, ao mesmo tempo, achava cansativo fazer isso e acabava não se comprometendo.
A pontuação que ele dava a si mesmo estava sempre abaixo de cinquenta pontos. Quarenta e sete ou quarenta e oito, talvez.
— Parece que conseguimos uma saída! — gritou Setora.
É agora que preciso me recompor de verdade, pensou Haruhiro.
— Cara, tem alguma graça viver assim? — Ele pensou ouvir a voz daquele idiota do Ranta, e isso o deixou enjoado.
Se você está perguntando se é divertido ou não, não é como se fosse incrivelmente divertido nem nada disso, respondeu ele mentalmente. Mas, acredite, é até um pouco divertido. Não que você fosse entender, Ranta. Quando você vive como eu, não há altos e baixos intensos. Em vez disso, você fica bem feliz ou triste com pequenas coisas. Se alguém quiser chamar isso de uma vida entediante, tudo bem. Não posso evitar. Este sou eu. Só consigo viver como eu mesmo.
Parecia que ele havia voltado ao seu estado normal. Por causa do que aconteceu com Mary, ele havia perdido a compostura de uma forma atípica. Apesar disso, Mary havia retornado de alguma forma, e Kuzaku, Yume, Shihoru, Setora e Kiichi estavam todos bem também. Ele provavelmente devia considerar isso sorte.
Porque Haruhiro, mesmo sendo o líder com todos os seus defeitos, tinha sido inútil. Dado isso, não seria estranho se tudo tivesse acabado em um desastre ainda maior.
Ele estava bem com uma pontuação de cinquenta em cem. Até mesmo algo na casa dos quarenta não era ruim. Procurar por sessenta seria pedir demais. Ele faria o melhor para evitar pontuar menos de quarenta. Ele mesmo era algo como um cinquenta, mas queria fazer com que todos alcançassem sessenta, talvez até setenta.
De alguma forma, ele queria transformar a party em um sessenta ou mais. Ele daria o que fosse possível para que isso acontecesse. Esse era o trabalho de Haruhiro como líder.
Saiba o seu lugar. Não se esforce além do que pode. Se perder o equilíbrio por causa disso, será contraproducente. Apenas mantenha a calma por agora. Olhe. Escute. Sinta. Use tudo o que puder. Especialmente a cabeça. Mesmo que seja repetitivo e não haja progresso, não perca o interesse. Continue fazendo, sem se cansar. Há algo mais importante do que seguir em frente passo a passo sozinho. Mova seus companheiros adiante. Acho que seria bom ter ambições maiores, como “Quero fazer algo grandioso” ou “Quero que as pessoas pensem que sou incrível,” mas no fim, eu mal tenho algo assim. Desejos como “Quero ver novos horizontes” ou “Quero ascender e olhar para a distância” não têm nada a ver comigo.
Mas, pelos meus companheiros, posso me esforçar razoavelmente.
Não odeio isso em mim. Dou o meu melhor pelos meus companheiros. Isso é o meu núcleo. Se eu perder isso de vista, não consigo continuar caminhando. Não, não consigo nem me manter de pé.
Eles saíram da aldeia, reencontrando Kiichi assim que chegaram aos campos.
Awuuuuu! Awuuu! Awuuuuu! Awuuuuu!
Os uivos dos vooloos vinham de trás deles... ou pelo menos era isso que Haruhiro achava, mas ele não tinha certeza. Se fosse verdade, talvez conseguissem fugir assim. Ele realmente esperava que fosse o caso.
— Kiichi! — Setora chamou o nyaa novamente.
Kiichi correu à frente de Haruhiro e da party. Se houvesse vooloos por perto, ele os alertaria.
— Ainda consigo matar mais um ou dois! — Kuzaku estava ofegante, mas sua voz soava firme.
— Mary, apague a lamparina! — gritou Haruhiro.
— Entendido! — respondeu Mary, apagando a lamparina.
Os vooloos tinham uma excelente visão noturna. Manter uma lamparina acesa no meio do campo era como anunciar que sua presa estava bem ali.
Havia muitas nuvens no céu, nenhuma lua e poucas estrelas. A escuridão era sufocante. Mesmo assim, depois que seus olhos se ajustaram, Haruhiro conseguiu distinguir vagamente as silhuetas de seus companheiros ao lado dele.
Os uivos dos vooloos não estavam próximos. Eles tinham se afastado... ou era o que parecia.
— São necrófagos, afinal de contas... — murmurou Setora.
Ela devia estar falando dos vooloos. Eles não se interessavam muito por presas vivas como a party, então talvez não estivessem tão focados neles. Idealmente, essa seria a situação. Mas isso era apenas uma esperança, e eles não podiam baixar a guarda.
— Yume acha que não tem mais nenhum por aqui!
Se Yume sentia isso, talvez fosse verdade. Mas não, eles não podiam relaxar.
Mantenham a cautela. Até o ponto de serem covardes, se for necessário.
— Shihoru?! Você está bem?! — Haruhiro virou-se para perguntar, mesmo sem conseguir enxergá-la direito.
— Estou bem ainda! — respondeu Shihoru.
Imediatamente, Mary acrescentou: — Está tudo bem!
Se Shihoru estivesse se forçando além do limite, Mary teria interrompido em vez de dizer que estava tudo bem.
Setora soltou uma risada curta e irônica.
— Vocês...
— Huh? O quê? — perguntou Haruhiro.
— Nada — disse Setora, balançando a cabeça.
Os passos de Kuzaku eram pesados. Ele parecia estar tendo bastante dificuldade. Era um pouco tarde para perceber, mas Kuzaku devia estar sofrendo desde o início. Haruhiro queria deixá-lo descansar, mas ainda não era o momento. Mesmo que fosse necessário dar um tempo mais tarde, agora não era a hora. Porém, seria um problema se ele desabasse ali.
— Vamos diminuir o ritmo — disse Haruhiro.
— Beleza! — Kuzaku parou de correr e começou a caminhar com passadas largas.
Os uivos dos vooloos estavam bem distantes agora. Será que conseguiriam escapar?
Haruhiro soltou um suspiro profundo. Sempre que havia uma folga, ele tentava relaxar. Essa fragilidade era seu maior inimigo.
Ele era seu próprio maior inimigo. Era irônico que, quando o adversário era ele mesmo, ele se tornava assustadoramente perigoso.
Quase pensou em Ranta, mas afastou a ideia. Por que pensaria nele? Não eram mais companheiros. Mas...
Talvez eu não ache isso? Não acredito que ele tenha nos traído completamente.
Esqueça. Posso dizer, no mínimo, que pensar nisso agora não vai ajudar em nada.
Quero descansar. Honestamente, do fundo do coração, só quero relaxar. Comer algo gostoso e dormir profundamente. Por apenas um dia, não, até mesmo por meio dia, quero passar o tempo assim. É um luxo incrível. Sei disso. Tenho que colocar de lado até mesmo esse sonho, por enquanto.
— Kuzaku — chamou Haruhiro.
— Oi.
— Setora.
— Sim.
— Shihoru.
— ...Certo.
— Mary.
— Aqui.
— Yume.
— Miau.
— Certo — disse Haruhiro, aliviado.
Estou cansado?
Não adianta fingir. Estou cansado. É melhor estar ciente disso. Mas consigo continuar.
Quanto tempo mais temos que caminhar? Até amanhecer? Será que aguento até lá?
Preciso calcular, prever, planejar. É difícil fazer previsões precisas. Mesmo assim, agir sem nenhum planejamento é o pior que posso fazer.
— Estamos indo para o leste, mais ou menos...? — perguntou Haruhiro.
— Indo para o nordeste. Talvez um pouco mais para o leste do que para o norte, né? — respondeu Yume.
De qualquer forma, eventualmente acabaremos entrando nas montanhas. Seria melhor descansar pelo menos uma vez antes disso. As chances são boas de que não haja vooloos por aqui. Vamos descansar. Devo dizer isso agora, antecipadamente? Seria ruim perdermos o foco, então talvez seja melhor esperar até o momento certo.
UnaAAAAAAAAAAAAooOOOO!
Um grito repentino, que parecia vir de Kiichi, ecoou. Setora saiu correndo.
Parecia que algo inesperado tinha acontecido.
Haruhiro, por reflexo, gritou: — Setora, espere! — tentando detê-la.
Setora não parou. Ela já estava fora de vista. Não podia deixá-la assim.
— Não se precipitem! Preparem-se e avancem! — Haruhiro sacou seu estilete, passou por Kuzaku e correu atrás de Setora. Logo percebeu que havia algo à frente. Ele não exatamente viu, mas sentiu. A princípio, parecia que o chão se erguia, como se fosse uma pequena colina.
Gyaa! Gyaa! Gyaaaaaaa!
Kiichi estava uivando. Era um som assustador, como o que gatos fazem quando estão brigando.
A colina se moveu—ou, pelo menos, parecia ter se movido.
— Kiichi, volte! — gritou Setora.
— Haruhiro?! O que é isso? — Kuzaku se aproximou dele.
Haruhiro havia parado em algum momento.
— Não sei, mas...
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN...
Um som grave e profundo, como um tremor vindo da terra, se aproximava. Ele não fazia ideia do que era, mas havia uma certeza. Mesmo sem lógica nenhuma, sabia de uma coisa com absoluta convicção: aquilo era perigoso.
— Uau! Ohhhh! — Yume, com seus bons olhos, talvez pudesse ver algo que Haruhiro não conseguia.
— Magi...! — foi tudo o que Shihoru conseguiu dizer. Ela queria falar algo sobre magia?
— Isso é...
O silêncio de Mary parecia ter um peso maior. Por que Haruhiro sentia isso?
— Eu não sei o que é exatamente — murmurou Kuzaku. — Mas não tem como existir algo assim no mundo de onde vim. Sério, Grimgar é tão-
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN...
Estava chegando. O que era? Haruhiro não sabia. Como poderia lidar com isso se nem sabia o que era? Não tinha como saber. Mas precisava fazer alguma coisa. Era horrível. Por mais que não sentisse o mesmo que Kuzaku, estava cansado das surpresas de Grimgar. Cansado ou não, Haruhiro e os outros estavam vivos. Eles estavam vivendo ali. Em Grimgar.
A imagem de Mary, de olhos fechados, imóvel, passou por sua mente. Isso foi o suficiente para partir seu coração em pedaços. Ele nunca queria passar por aquilo de novo.
— Recuem! — Haruhiro começou a se mover para trás enquanto levantava a voz. — Não se separem!
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN...
O que era aquilo? Algo estava vindo. Isso era claro. Mas o quê? Se ao menos tivesse uma pista...
— Dark...! — Shihoru convocou o elemental Dark.
Yume prendeu a respiração e disparou uma flecha. Acertou? Ou não?
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN...
Mary disse algo em um tom de dor. Era provavelmente “Sekaishu1...” ou algo assim.
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN...
Era um nome? Mas por que Mary saberia esse nome? Isso não importava agora.
Haruhiro saltou para trás. Teve a sensação de que algo tocou a ponta dos seus pés. Não, ele não apenas sentiu. Algo definitivamente o tocou.
— Está vindo de baixo! — gritou Haruhiro, alertando os outros.
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN...
Droga, não consigo ver. NNNNNNNNNNNNNN O que é isso? NNNNNNNNNNNNNN Mas está chegando mais perto, consigo sentir. NNNNNNNNNNNNNNNNN Sinto isso de forma intensa. NNNNNNNNNNNNNNNNN Não é algo... e, ao mesmo tempo, é.
Ele sentiu algo roçar na ponta dos seus pés novamente. Em vez de recuar, Haruhiro pisou firme. Não era rígido. Também não era macio. Ele conseguiu pisar, mas seu pé afundou profundamente, e parecia que seria puxado.
No final, Haruhiro arrancou o pé e pulou para trás. Aquilo foi perigoso? Se tivesse deixado o pé ali, quem sabe o que teria acontecido.
Mesmo assim, era algo. Não importava quão estranho fosse, ele podia tocá-lo. Tinha uma forma física.
Aquilo tocou a ponta dos seus pés mais uma vez. Haruhiro chutou.
— Não tenham medo! É só—só algum monstro esquisito...!
— Ahahaha! — Kuzaku riu. — Ó Luz, ó Lumiaris, conceda a luz de proteção à minha lâmina!
Ele desenhou o sinal do hexagrama com a ponta de sua grande katana, que começou a brilhar. Quando Kuzaku brandiu a espada, alguns pedaços pretos voaram. Pareciam enormes lagartas.
— São só lagartas! — Haruhiro disse, corrigindo-se em relação ao que havia pensado antes. Mas disse isso mais para si mesmo.
Eram lagartas. Apenas lagartas. Eram lagartas, e por isso eram nojentas. Talvez fossem venenosas, então ele precisava tomar cuidado, mas não havia motivo para ter tanto medo.
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN...
Esse
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN... O que era isso? Era irritante, mas, mesmo que ele tentasse entender, não chegaria a lugar nenhum, então era melhor não se preocupar com isso. Haruhiro chutava as lagartas que se aproximavam dele. Recuava aos poucos, chutava, chutava e chutava aquelas lagartas, que lhe davam uma sensação terrível ao fazer isso.
Kuzaku não recuava muito.
— Oooorahhhhh! — Ele brandia sua grande katana em um movimento amplo para afastar as lagartas.
Parecia que Yume também estava usando sua katana.
Será que Mary estava balançando seu cajado? O que Setora e Kiichi estavam fazendo? Ele não conseguia verificar.
— Vai, Dark! — gritou Shihoru. Ela aparentemente havia enviado Dark.
1 世界腫 (Sekaishu) – Tumor mundial ou inchaço do mundo

Era questionável se o elemental fazia algum efeito.
De qualquer forma, esse NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN era irritante. Era como se, no fundo de seus ouvidos, dentro de sua cabeça, uma esfera de metal vibrasse. NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN. Era um som único, um estrondo baixo.
Logo depois de chutar as lagartas pela enésima vez, Haruhiro percebeu que estava com sangue escorrendo do nariz.
NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN. O que poderia ser isso? Atrás de seus olhos parecia quente, até dolorido. NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN.
— Guweh! — Kuzaku de repente vomitou algo, quase caindo de joelhos enquanto sua espada reluzia ao cortar mais lagartas. NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN. Havia lágrimas. Não, não eram lágrimas. NNNNNNNNNNNNNNNNNN. Sangue. Havia sangue saindo, de seus olhos. NNNNNNNNNNNNNNNN. Haruhiro tossiu. NNNNNNNNNNNN. Ele estava tonto. NNNNNNNNNNNNN. Ele foi agarrado. NNNNNNNNNN. Sua perna direita. NNNNNNNN. Pelas lagartas. NNNNNNN. Haruhiro caiu sentado. NNNNNN. Isso NNNNNN era ruim. NNNNN. Ele sentia um frio terrível. NNNNN. Como se tivesse perdido NNNNNNN sua perna direita. NNNNNNN. O que era NNNNNN um Sekaishu? NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN. Não, isso não era bom, não era bom, não era bom. NNNNN. Ele chutou as lagartas com a perna esquerda, chutou e as afastou de sua perna direita, então rastejou para longe e fugiu. Ele precisava escapar. Aquilo ia engoli-lo.
— Dark! — chamou Shihoru.
Dark soltou um som bizarro, como um vwoooooong, enquanto encolhia e voava. Haruhiro pôde ver o arco por onde ele estava indo. Dark ia se chocar contra o corpo principal das lagartas, ou a massa primária delas, aquela coisa que parecia uma pequena colina feita de lagartas.
Mas tudo o que aconteceu foi o som NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN ficar ainda mais forte, sem nenhum outro efeito.
— Ohhhhhhhhhhh! — Kuzaku estava se saindo bem lutando sozinho, brandindo sua grande katana para todos os lados, a cinco ou seis metros de Haruhiro, mas estava sendo gradualmente engolido pelas lagartas.
— Não! Não podemos continuar assim! — Mary praticamente gritou. — Corram! Com tudo o que têm! Mantenham distância disso! Eu vou...!
O que Mary ia fazer? Por que Mary? Jogando fora suas dúvidas, Haruhiro virou-se para correr.
Kuzaku. Kuzaku não fazia nenhuma tentativa de se mover. Ele não tinha ouvido a voz de Mary?
Para Mary, Yume, Setora, qualquer um, ele gritou: — Cuidem da Shihoru!
Protejam-na! Estou contando com vocês! pensou Haruhiro enquanto corria em direção a Kuzaku. Ele pisava e passava por cima das lagartas, afastando-as, abrindo caminho.
— Kuzaku! Saia daí, Kuzaku! — gritou ele.
Kuzaku virou-se para ele.
— Ah! Foi mal!
— Rápido!
— Tá!
Haruhiro corria enquanto as lagartas, um grande número delas—não, talvez fosse melhor dizer um grande volume delas—avançavam de todas as direções.
Kuzaku corria com todas as forças também. Se as lagartas se enrolassem ao redor dele, aquela parte de seu corpo ficaria gelada.
O som NNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN ficava cada vez mais forte.
De algum jeito, Haruhiro conseguiu afastar as lagartas, sacudi-las e correr por sua vida. As lagartas não avançavam particularmente rápido. Isso era sua única salvação.
Por isso, embora ele não achasse por um momento sequer que pudesse lidar com aquela situação, sentia que talvez conseguisse despistá-los.
Alguém, provavelmente Yume, segurou sua mão. Shihoru devia estar ao lado deles. Setora provavelmente estava segurando Kiichi. Além disso, Mary.
Mary.
Mary estava...
— Delm, hel, en, saras, trem, rig, arve!
— Oof?!
— Doh?!
O “oof” provavelmente veio de Haruhiro, e o “doh” de Kuzaku. Haruhiro e Kuzaku tombaram para frente quase ao mesmo tempo, atingidos por uma intensa rajada de vento quente vinda de trás.
Era absurdamente quente. Mais do que vento quente, talvez fosse mais apropriado chamá-lo de uma onda de choque. Haruhiro conseguiu rolar para frente por pouco, mas, ao olhar para trás antes de se levantar propriamente, sentiu seu rosto queimar.
— Augh!
Não, talvez não o tivesse queimado, mas o calor era tão intenso que parecia que ele tinha se chamuscado. Era algo muito maior para ser chamado de pilar de fogo. Era uma parede, ou melhor, um penhasco de chamas erguendo-se diante deles.
Magia.
Isso tinha que ser magia Arve.
Mas não era magia de Shihoru. Shihoru só usava Dark atualmente. Além disso, ela não tinha aprendido nenhum feitiço de magia Arve.
— Ai, ai, ai, ai, ai! — Kuzaku gritou enquanto rastejava para frente com uma velocidade impressionante.
Haruhiro se levantou. Estava quente. Faíscas voavam daquele penhasco de chamas. Era mais do que apenas quente.
Haruhiro embainhou seu estilete, cobriu o rosto com as mãos e tropeçou em direção aos seus companheiros.
Shihoru estava encolhida, encarando o penhasco de chamas. Parecia um pouco perdida
Algumas palavras escaparam dos lábios de Shihoru.
— Blaze Cliff.
Esse devia ser o nome de um feitiço. Mas Shihoru não era quem havia usado aquela magia Arve.
Yume olhou para Mary, que estava ao lado dela. Imediatamente desviou o olhar.
— Eu... — Mary olhou para baixo, pressionando a mão esquerda contra a testa. — Eu... Sekaishu. Remoção. Só com isso. Eu não consigo. Então, eu... magia. Eu usei magia. Enquanto ainda posso. Eu-
Setora, que segurava Kiichi, abaixou-se e colocou o nyaa cinza no chão.
— Sacerdotisa, o que é Sekaishu?
— Sekai...shu — murmurou Mary. — Eu...
Não sei, continuou, mas sua voz foi se apagando até desaparecer.
Haruhiro ficou ali, perplexo. Não havia praticamente nada que pudesse fazer.
“Não sei.” Foi o que Mary disse.
Sekaishu. Mesmo depois de ter pronunciado claramente aquela palavra desconhecida, Mary usou magia. Usou Blaze Cliff. Magia Arve. Provavelmente, era a segunda vez que eles viam aquele feitiço sendo usado. A primeira tinha sido na aldeia, com Jessie.
Mary não sabia. Magia de Luz era uma coisa, mas uma sacerdotisa como Mary não podia usar magia Arve.
— Precisamos correr, enquanto ainda podemos. — Haruhiro fez de tudo para que sua voz não tremesse. Então, caminhando até Mary, estendeu sua mão direita para ela.
Tenho a determinação? ele se perguntou. Eu vou reconhecer tudo. Vou aceitar e encarar.
— Vamos, Mary.
Mary levantou o rosto. Ele não pretendia esperar que ela assentisse. Haruhiro pegou a mão de Mary.
Sim, claro. Tenho a determinação.
Haruhiro segurou a mão de Mary e começou a andar. Primeiro, precisavam se afastar do Blaze Cliff. Ele não sabia o que era Sekaishu, ou seja lá o que fosse, mas fugiriam daquele monstro absurdo. Depois, iriam para o leste.
Se fossem para o leste, chegariam ao mar.
Se alcançassem o mar, dariam um jeito.
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