Rakuin no Monshou Volume 01 — O Dragão Ruge para a Estrela do Crepúsculo
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Capítulo 1.2 [Sangue e Ferro — Parte 2]
— Dois anos...
O gladiador Orba, encarando a escuridão que o rodeava, murmurou essas
palavras em sua boca. Apesar de fazer apenas dois anos desde que
ingressou neste ramo de trabalho, ele já estava atolado até o pescoço
com as dificuldades, o sangue e os cadáveres. Quantas vezes lutou por
sua vida, apenas para ter os pés acorrentados, passar a noite nas
senzalas dos escravos, onde seu único passatempo era treinar a manhã
inteira para continuar vivendo como um espadachim-escravo? E então, no
dia seguinte haveria uma nova luta.
Ninguém, exceto o próprio Orba, esperava que ele fosse capaz de viver
por mais de cinco batalhas. Dois anos atrás, quando pisou na arena pela
primeira vez, ele só tinha quatorze anos. Seu corpo era ainda mais magro
do que agora e mal conseguia segurar uma arma também.
No entanto, no momento da verdade, ele sobreviveu. Ele brandiu a arma
em suas mãos, escolhida entre as poucas que ele conseguia empunhar
dentro dos limites de sua força. A única coisa que sabia era correr para
cima do inimigo de forma imprudente, mas a medida em que ganhava
experiência, sua habilidade, a espessura de cada fibra muscular, o
domínio de novas armas, bem como os cadáveres do adversário por onde
pisava, aumentava toda vez em que emergia vitorioso.
Assim, dois anos se passaram. Orba não sabia se isso era muito ou pouco
tempo e, às vezes, ele pensava que em si mesmo como uma pessoa
consideravelmente velha. Ao mesmo tempo, ele também pensava que ainda
era aquele garoto que não sabia nada sobre lutar até a morte.
De qualquer forma, talvez isso tenha a ver com o fato de ele não ter
sido abençoado com a oportunidade de ver o próprio rosto. Deitado de
bruços, ele ainda estava com a mesma máscara de ferro que usou no ringue
de batalha. Por ela nunca ter sido removida durante esses dois anos, os
outros espadachins-escravos do mesmo Grupo Gladiatorial Tarkas não
tinham como saber sua verdadeira face.
— Levantem-se, seus escravos! Vocês acham ruim ter de acordar dedo?
Pois saibam que hoje vai ser o pior dia das suas vidas!
Quando a manhã chegou, outro dia para os escravos teve início. O
supervisor geral dos escravos e responsável por treinar os
espadachins-escravos, Gowen, colocou todos para fora de suas celas e os
fez limpar as acomodações.
Quando terminaram, ainda tinha os cuidados com os leões, serpentes,
javalis, tigres e similares – em suma, todos os animais utilizados na arena. Em particular, cuidar dos dragões era um trabalho árduo. Mesmo os dragões de pequeno e médio porte eram demais para uma única pessoa, mas cuidar dos enormes Sozos de tamanho grande foi ainda
pior. Embora fosse esperado que os escravos morressem pela espada,
muitos também encontraram seu fim esmagados por esses dragões que foram
propositadamente treinados para não se acostumarem com seres
humanos.
Orba pôs os pés na enorme jaula dos dragões, que era muito maior do que
as habitações dos escravos – muito, muito maior do que elas – que mais
se assemelhava ao pátio de um castelo. No entanto, ele parou quando
percebeu as costas de uma mulher.
O nome dela era Hou Ran. De todos os outros escravos ordenados a
alimentar os dragões, ela foi a única que conseguia tocar diretamente as
suas escamas. Obviamente, os dragões foram acorrentados nas suas pernas
e no pescoço, mas isso não era, de forma alguma, garantia de que o
exemplo de ontem não se repetiria. A uma distância que faria até um
gladiador hesitar, ela cumprimentou cada dragão um por um, tocando
gentilmente as escamas com a ponta dos dedos.
— Orba.
Dizendo o nome dele, ela rapidamente se virou.
— Parece que fui descoberto.
— Foi a "voz" dos dragões que me disse.
Ran sorriu. Ela parecia realmente inadequada em um campo de detenção só
para homens, sem mencionar os violentos espadachins-escravos. Orba ainda
não tinha se acostumado com seu sorriso indefeso.
Sua pele como ébano polido, combinada com cabelos que pareciam ter
empalidecido, emitia um charme misterioso. Originária da tribo nômade
dos adoradores do Deus Dragão, que vagavam pelas montanhas ao oeste de
Mephius, diferente de seus parentes reclusos, Ran estava cheia de
curiosidade sobre o mundo a fora e, por isso, embarcou secretamente em
uma caravana que passava por perto de sua tribo. Como ela nunca o contou
exatamente o que aconteceu depois disso, ele não sabia quando foi que
Tarkas a comprou, ou como ela conseguia cuidar dos dragões sozinha
assim.
— Eles sabem o meu nome?
— Suas "vozes" vêm como imagens na minha cabeça. Todos conhecem o seu
rosto, Orba. Você é querido pelos dragões.
Embora pareça tolice, os olhos de Ran passavam uma impressão profunda,
como se o atraísse para as profundezas do mar. Ou melhor, como se
possuíssem algum tipo de conhecimento antigo, perdido para sempre pelos
homens civilizados.
Do outro lado da cerca, os dragões de pequeno porte colocavam seus
focinhos para fora da gaiola, rosnando e bufando para ele.
— Não é assim que parece — disse Orba com um leve sorriso.
Quando ele chegou, dois anos atrás, Hou Ran já estava no campo de
detenção. Naquela época, ela não fazia sequer contato visual com os
outros escravos de Tarkas, muito menos abrir a boca para ele. Para ter
um pouco de entretenimento, os escravos logo começaram a apostar se eles
veriam primeiro o rosto de Orba ou a voz de Ran.
Mas, uma vez, Ran estava prestes a ser violentada por um grupo
recém-chegado de Espadachins-Escravos, quando Orba chegou e espancou a
todos. Desde então, ela vem ao menos trocado algumas palavras com
ele.
— Ouvi dizer que você foi atacado por um Sozos em Ba Roux.
— Fui eu quem o atacou, na verdade. O Sozos começou a ficar
violento.
— Mesmo com as drogas, é inútil tentar aprisionar seu coração pela
força. Se eu tivesse supervisionado, isso nunca teria acontecido.

Ela mordeu os lábios, mas não por estar frustrada pelo que aconteceu
com Orba ou os espectadores. Com a figura da garota acariciando a nuca
de um dragão da raça Baian no canto da vista, Orba terminou seu trabalho
e deixou a jaula dos dragões para trás.
Após a alimentação dos animais e a limpeza, era a vez de conferir seus
armamentos. Já que suas vidas dependiam dessas armas, os gladiadores
cuidadosamente conferiam uma a uma. No entanto, sempre que chegava a
hora de fazer a manutenção, guardas fortemente armados ficavam de
guarda, vigiando cada movimento deles. Naturalmente, essa era uma medida
necessária para evitar que qualquer revolta acontecesse.
Então, depois de terminarem de comer uma quantidade lamentável de pão e
sopa – enquanto que os sobreviventes da lua do dia anterior eram
servidos com carne e frutas como recompensa – eles começariam seu
treinamento até o meio dia. Da mesma forma de quando fizeram a
manutenção das armas, soldados foram colocados para vigiar, mas, havia
uma diferença agora, as correntes que os prendiam pelas pernas tinham
sido retiradas.
Espadachins escravos que sobreviviam por mais de dois anos como Orba
eram extremamente raros. Vidas foram perdidas uma após a outra, enquanto
novas faces iam aparecendo rotineiramente ao longo dos dias. Gowen os
ensinava incansavelmente o trabalho de pés necessário ao se manejar uma
arma ou uma espada, e os acompanhava até que estivesse totalmente
preparados.
Orba também engajava em lutas-treino com os recém-chegados. Algumas
vezes, eles cruzavam espadas, assim como numa luta de verdade, e não era
incomum que alguém acabasse perdendo um pedaço dos seus membros ou às
vezes a própria vida no meio de um treino...
Hoje, porém não houve casualidades, mas isso não significava que eles
estavam com sorte. No dia seguinte, um destino ainda mais miserável
poderia acontecer e uma morte sangrenta os espreitava a todo
instante.
Quando o rosto de todos os espadachins-escravos se nublou e suas peles
se cobriram de suor e areia, Orba foi até a cerca que separava o campo
de treinamento do corredor que levava até o outro lado, e avistou a
figura de Tarkas.
Gritando "Descansar!" para um novato, Orba correu logo em seguida na
direção dele.
Percebendo a aproximação do homem mascarado, Tarkas parou o que estava
fazendo. Um sentimento de desconfiança era visível em sua face
envelhecida.
— O que você quer, Tigre de Ferro? Ah, e... bom trabalho ontem.
O seu rosto dizia que ele acabara de se lembrar que precisava jogar um
osso para seu fiel cão.
— Verne se tornou um gladiador famoso muito rápido e por isso os outros
grupos de gladiadores começaram insistir que gostariam de colocá-lo
contra você. "Assim, nós não conseguiríamos recuperar todo o dinheiro
que investimos nele?". Não me venham com essa merda! Bem, eu suponho que
preciso agradecê-lo por se livrar dele por mim. Agora, quanto a ter
matado aquele Sozos...
— Tarkas, quanto mais tempo eu vou precisar continuar ganhando?
— Como é?
— Já faz dois anos e eu continuei ganhando o tempo todo. Quantas vezes
vou ter que ser o "evento principal" como ontem? Não está na hora de
você tirar essas correntes dos meus pés?
Espadachins-escravos, todos eles, quando comprados, eram obtidos
através de um contrato com algum comerciante. Embora parecesse que
Tarkas dificilmente lidava com isso diretamente.
— Não pense que eu não sei ler! Até um escravo deveria ter o direito de
examinar o seu contrato. Eu tenho esperado aqui, Tarkas! Eu deveria ter
saído há muito tempo!
Quando Orba falou isso na sua cara, Tarkas lançou um olhar furioso com
os olhos.
— Então, para onde planeja ir? Você pode até escapar das minhas mãos,
mas ainda continuará sendo um criminoso! Você não tem dinheiro para
pagar a fiança da pena que ainda te resta. Ou talvez você queira
trabalhar nas minas de Tsaga ao longo da fronteira oeste? Gases
venenosos, bestas devoradoras de homens, tribos Geblin que caçam humanos
e - é claro - trabalho extremamente miserável e rigoroso. Você acha que
um inferno assim é melhor do que aqui? Se não, então trate de voltar
logo para o treino e nunca mais fale comigo como se fôssemos iguais! Não
até que você tenha se tornado espadachim completo que ganha seu próprio
salário!
Enfiando o dedo na cara de Orba, Tarkas rapidamente saiu, indo para o
escritório. Atrás dele, rostos desconhecidos seguiram o exemplo.
Considerando que este era um lugar onde as pernas estavam amarradas em
correntes, provavelmente eram escravos recém-adquiridos.
Orba ficou calado. No entanto, seus olhos estavam cheios de raiva, mas as palavras de Tarkas também
eram verdadeiras. Em relação à lei de Mephius, você pode basicamente,
vender sua vida ou ir para a prisão. Assim como as Minas de Tsaga das
quais Tarkas falou - ele deveria solicitar o serviço público do país,
acompanhado pelos perigos, e se vender como escravo lá?
Segurando a cerca com força em suas mãos, seus dedos acabaram ficando
dormentes antes que ele percebesse.
Orba permaneceu ali parado no lugar.
— O que você está fazendo, Orba!? Volte já aqui!
Depois de finalmente ser repreendido por Gowen, ele voltou a praticar.
Como sempre.
Poucas horas depois, após lavar o corpo com um copo cheio de água,
chegou a hora da segunda refeição do dia. Orba, arredondando seu corpo
como um corcunda no canto da sala de jantar, estava quase abraçando sua
comida. Como hábito, ele não podia fazer uma refeição sem ler um
livro.
Foi então...
— Bom trabalho na luta de ontem, Orba.
Outro espadachim-escravo, aquele chamado Shique, chegou se apoiando nas
costas de Obra, que logo empurrou para trás com a mão.
— Verne da Bola de Aço. Quando ouvi que a luta tinha sido arranja, eu
não sabia o que fazer. Cheguei até a considerar em atirar nele de fora
da arena, caso você ficasse numa situação de vida ou morte.
— Fica longe de mim. A menos é claro que você queira que eu esmurre
essa sua carinha bonita.
— Wow, que assustador. Mas eu não me importaria de ficar com uma
cicatriz no meu lindo rosto se isso criar uma ligação entre você e
eu.
Apesar do comportamento zombeteiro de Shique, era difícil de se dizer
se ele estava falando sério ou não. De qualquer forma, Orba não queria
socializar com ele também.
O belo Shique deixou seus cabelos crescerem e usava até mesmo maquiagem
antes de uma luta na arena, assim, ele se tornou extremamente popular
entre as mulheres. Embora o mesmo se auto proclame um imenso
misógino.
Rudy: Misógino é alguém que tem aversão a mulheres. É diferente de um
Ginófobo, que tem um medo incontrolável de mulheres.
— Mas, eu não esperava menos de você, Orba. Mesmo sem a minha ajuda,
você conseguiu fazer uma performance magnífica. Isso não te faz agora,
tanto em nome como na realidade, o melhor gladiador de Tarkas?
— Eu não diria que foi “magnífica”.
De repente, o homem encarregado de treinar os gladiadores, Gowen, fez a
sua aparição. Embora Orba tivesse uma cara aborrecida quando ele se
sentou na mesma mesa, a verdade era que não se incomodava.
— Você se saiu bem, mas se arriscou demais. Quando partiu para cima,
ainda era muito cedo. É péssimo hábito seu partir para cima quando está
encurralado, mesmo que seja só um pouco. Você deveria colocar mais
esforço em assegurar a sua dominância. Quanto ao Verne, embora ele fosse
um espadachim brilhante, o ponto fraco dele era não saber aproveitar as
fraquezas do oponente. Qualquer um com mais experiência iria facilmente
perceber esse seu pavio curto e puxar o tapete dos seus pés.
Gowen era um homem com cabelos grisalhos no meio dos seus cinquenta
anos, mas apesar disso, se corpo bronzeado era forte. Além disso, o
olhar afiado que ele dava aos outros espadachins-escravos foi cheio de
intensidade.
— Mas o oponente dele era o Verne. Querendo ou não, aquele cara estava
em perfeita forma.
Uma outra voz se juntou ao grupo. Desta vez, foi o gigante número um do
Grupo Gladiatorial Tarkas, Gilliam.
Ele esteve na mesma arena que Orba e Shique no dia anterior, carregando
um machado de batalha no ombro, e com isso, os três gladiadores mais
fortes estavam reunidos. Com longos cabelos ruivos em tanta desordem
quanto possível, seu rosto, sorrindo com dentes cerrados, parecia tão
intimidador quanto o de um leão selvagem.
— Quando soube que você tinha que lutar contra o Verne, sinceramente
achei que você tinha ficado sem sorte. Bem, você não tem habilidades
ruins, mas, como sempre, não sabe o que significa ser um gladiador. Não
vale nada se você ganhar sem graça. Não vai satisfazer o público assim.
A maneira como tu continuou correndo de um lado pro outro e, de repente,
decidiu a partida com um só golpe, não foi nada divertido. Você precisa
abater o oponente lutando de frente com ele.
Para um espadachim-escravo, não se tratava apenas de vencer a partida.
Você tinha que ser popular, em suma, garantir que muitos espectadores
viessem apenas para vê-lo. Gladiadores sem fama, depois de ganharem uma
pilha de dinheiro para seus donos, seriam atirados contra dragões ou
feras, apenas para satisfazer os desejos sádicos do público.
Foi por isso que os gladiadores – todos eles – se esforçaram para
aprimorar suas habilidades e também tentaram apelar para o público com
personalidades chamativas, a fim de sobreviver. Alguns decoraram seu
corpo com armaduras berrantes, outros fizeram um show arrastando o
coração de seu oponente após a morte, enquanto teve aqueles pintaram
seus corpos com tatuagens misteriosas.
Quanto a Shique, ele afirmou dramaticamente ser "um descendente de uma
antiga dinastia real".
— Desta vez, venha contra mim, Orba. Vou te ensinar o que é lutar de
verdade!
— Não interessado.
— Haha, você tem medo de mim?
— Ah, como estou com medo. Muito, muito medo... Se estiver feliz agora,
vá embora e não em encha mais.
— Não fode comigo, seu pequeno bastardo!
Enquanto Orba continuava comendo com seu comportamento habitual,
Gilliam o empurrou pelas costas.
— Pare com isso! — Ordenou Gowen.
Se houvesse qualquer perturbação, os soldados de Tarkas viriam
correndo. E assim, Gillian fez a sua saída com a cara vermelha de
raiva.
— Agora que parei para pensar nisso, um grupo estranho de novatos
apareceu hoje.
Disse Gowen, depois que se lembrou o que aconteceu durante o dia.
Aparentemente, ele se referia ao grupo que Orba viu seguindo Tarkas hoje
mais cedo.
— Estranho? Tipo, com chifres no cabelo e um rabo enorme saindo das
costas? — Perguntou um espadachim-escravo chamado Kain.
Ele era apenas um garoto, da mesma idade que Orba, que chegou por volta
de um ano atrás e acabou se estabelecendo. Ele não era muito forte
fisicamente ou mesmo segurando uma a espada, mas mostrou grande destreza
ao manejar pistolas ou rifles.
— Ou quem sabe, algum sobrevivente da tribo Ryuujin? Soa meio que
romântico, não?
Rudy: Ryuujin, povo dragão. Outra parte importante do folclore é a
existência de Geblins. Eles não dão as caras na história, mas
aparentemente é alguma referência aos Goblins.
— Ryuujins, Geblins, ou qualquer outra coisa que apareça, eu não
ficaria nem um pouco surpreso. Afinal, essa é uma companhia de
espadachins-escravos, um lugar para toda e qualquer raça.
— Na verdade, a história é muito mais simples do que vocês imaginam.
Pelo que eu ouvi dizer, nenhum deles tem qualquer habilidade com
espada.
— Como é?
Kain moveu os braços para os lados, indicando que não tinha o menor
interesse.
— Eu quase não acreditei quando me disseram que o Tarkas comprou um
bando de inúteis sem nem pestanejar. Mas aparentemente, ele estava com
um humor muito bom mesmo depois disso.
— Oh?
— Eu sei. Alguém como o Tarkas, que sempre fica hipnotizado pelo brilho
do ouro, fazer algo assim pode soar estranho, não é?
— Mas, sério. De bom humor? Aquele cara? — Disse Orba, se lembrando da
reação de Tarkas hoje mais cedo.
— Eu o conheço a mais tempo do que vocês. A única coisa capaz de deixar
aquele homem de bom humor é a chance de fazer uma boa grana.
— Eu me pergunto se algum nobre veio visitá-lo sobre uma exibição ou
coisa assim. Talvez esses novatos sejam de origem nobre e tenham sido
trazidos por causar alguma ofensa política contra o Império Mephius, ou
coisa assim. Poderia ser, uma execução pública usando os dragões?
— Você parece estranhamente animado com isso. Tanto que até acho
difícil de ler a expressão no seu rosto.
— De qualquer forma, onde está o meu livro novo? Faz três meses que o
pedi.
Perdendo o interesse na conversa, Orba perguntou sobre outra coisa e os
demais também passaram a conversar sobre questões diferentes. Amanhã,
eles provavelmente se enfrentariam como inimigos, mesmo sendo
gladiadores à serviço do mesmo empregador. A ideia de aprofundar uma
amizade mais do que o necessário nunca esteve na mente de Orba desde o
início.
— Ahh, já foi comprado. Estará aqui amanhã. No entanto... embora pareça
um pouco tarde para dizer isso, você também é meio excêntrico. Entre os
caras daqui, mesmo aqueles que sabem ler e escrever, duvido que algum já
tenham lido mais de cem palavras em toda sua vida.
Devorando o pedaço de uma pele de galinha, Gowen olhou para Orba.
— Às vezes, até eu penso em arrancar essa sua máscara. Que tipo de
rosto tem aí por baixo? Há momentos em que acho que você é apenas um
jovem pirralho selvagem e há vezes em que acho que você é um homem de
cabeça fria que já sobreviveu a inúmeros campos de batalha. Ontem foi
assim. Você tomou as ações apropriadas contra um Sozos sem vacilar um
instante sequer.
— Você está me elogiando ou não?
— Estou te elogiando. Além de pegar uma espada e lutar por si mesmo,
você considera as circunstâncias com calma. Embora, se não fosse por
esse seu pavio curto, eu acho que você serviria melhor como líder de um
time. Você gosta de livros sobre história e pessoas, fica absorvido
nisso até tarde da noite e devora todo o conhecimento.
Quando eles se viram pela primeira vez, isto é, quando Tarkas comprou
Orba, o rosto dele já tinha sido coberto pela máscara. Desde então, ela
nunca tinha sido removida uma única vez. Claro, todo mundo queria saber
o motivo. Todo mundo queria ver o rosto por trás dela. Por isso, os
escravos tentavam adivinhar qual era a origem daquele menino.
No início, Gowen estava preocupado que Orba e os outros escravos
começassem a trocar socos por causa da curiosidade deles. Foi então que
meio ano depois, ele teve a ideia de espalhar o rumor de que “um feitiço
colocou uma maldição naquela máscara” e assim, quando completou um ano
desde a sua chegada, ninguém mais o questionou sobre isso. Embora,
sempre que chega algum novato, a primeira coisa que eles fazem é ir
perguntar sobre isso, mas agora Orba já é capaz de ignorá-los
completamente.
— O que é que se ganha lendo um livro? Ao menos no lugar onde eu nasci,
ninguém ganha mais respeito, independente de quantos desses você
tenha.
— Isso faz parecer que você foi criado por alguma tribo de macacos ou
de Geblins.
— Olhe como você fala comigo, Orba. Considerando as circunstâncias, eu
acho que tenho sido muito bom com você. Se isso não te agrada, então
posso muito bem adotar a sua mesma atitude.
Agir como se não tivesse entendido a piada era um dos hábitos que Gowen
mais gostava. Orba respondeu com um sorriso no rosto, mas
inesperadamente, o responsável por treinar os espadachins-escravos
respondeu com um olhar ainda mais a sério.
— Normalmente, um espadachim-escravo se preocupa apenas em dar o melhor
para viver outro dia. Alguns conseguem sair dessa vida infernal, mas,
como a maioria não consegue viver sem cometer algum tipo de crime,
muitos acabam sendo gladiadores pela vida toda. Apesar de que a “vida
toda”, provavelmente será bem curta… Mas você é diferente, Orba. Você
não se deixou ser engolido pela carnificina e continua focando no seu
futuro. Eu sempre me perguntei o que falar para um homem assim? Deveria
aconselhá-lo a esquecer disso e viver o agora? Mesmo depois de te ver
insistindo tanto apesar do inferno em que vivemos? Ou será que eu
deveria te falar para nunca perder a esperança? Talvez isso te desse a
coragem suficiente para superar isso.
— Velho, por acaso não andou bebendo escondido? Você está muito mais
falante que o normal hoje.
— Ei, eu estou tentando ser sério aqui.
Gowen sacodiu a cabeça para os lados em desapontamento, mas Orba
decidiu apenas considerar que ele tinha realmente ficado bêbado. Afinal,
o treinador dos escravos jamais permaneceria em silêncio depois de ser
chamado de “velho”.
— Pelo que você luta, Orba? Pelos outros espadachins-escravos? Por si
mesmo? Ou por algum outro objetivo em sua vida?
— E-Eu mesmo q-queria saber...
Gaguejando como uma criança, Orba desviou o rosto. Ele não queria que
seus sentimentos internos fossem expostos.
Terminando o jatar, Orba saiu rapidamente do refeitório. Embora
gladiadores pudessem andar livremente, não tinha nada além do refeitório
e dos quartos no campo de detenção. Podiam chamar de "quarto", mas a
verdade era que não diferia muito de um estábulo onde o gado ficava
preso. Quando ele se deitou em um canto, Orba olhou para suas próprias
mãos.
Fazia dois anos desde então. Ainda hoje, ele conseguia se lembrar de
tudo perfeitamente. E se ele não tivesse vivido isso pessoalmente, esses
"dois anos" não seriam mais que um número. Por dois anos, Orba mal se
manteve vivo, cercado pelo cheiro de sangue, tripas e ferro.
No entanto, ele matou, sobreviveu, fez tudo de novo, e qual era o
sentido disso tudo?
Ele se virou no chão. Seu corpo já havia se acostumado com a sensação
da máscara dura tocando o solo. Foi como disse Tarkas, mesmo que
deixasse de ser um escravo, ele não sabia mais como viver uma vida
"limpa", mas parecia que Gowen tinha entendido uma coisa errado – Orba
não tinha esperanças para um futuro melhor. Tudo o que ele tinha
era...
Sob a sombra fina formada pelas presas da máscara, Orba rangeu seus
dentes com força.
Mesmo que eu sobreviva a tudo isso, o que vou fazer depois?
Não havia mais retorno. Ele já estava cansado de repetir as coisas
indefinidamente na arena. Já estava cansado dos massacres, do sangue,
das lutas, de matar uns aos outros. Em seu caminho, ele nunca foi capaz
de pensar que "está tudo bem, não importa" ou "com o tempo, ficará mais
fácil".
Uma raiva inexplicável emanava de seus olhos, do outro lado da
máscara.
Eu vou pegar a minha vida de volta de volta. Eu vou tomar tudo o que é
meu outra vez. E para aqueles que tiraram tudo de mim, mesmo que não
seja o suficiente, farei com que experimentem toda a dor e os gritos
agonizantes das pessoas que matei nos últimos dois anos.
Tradução: Rudeus Greyrat
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