CAPÍTULO 6
O que quero fazer? E o que devia fazer para conseguir?
Muoru viu-se fazendo a mesma pergunta várias vezes. Talvez fosse porque, quando se tratava de atingir seu objetivo, não havia muitas opções para escolher.
Devo escapar.
Quantas vezes murmurou isso para si mesmo desde que chegou? Era uma expressão que devia ter agido como propulsor para continuar seus pensamentos, mas, agora, para acabar com sua indecisão, isso tomou conta de sua mente.
Isso, preciso dar o fora daqui. Mas, em primeiro lugar, o próprio fato de eu ter me tornado um prisioneiro não é um tanto quanto estranho?
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— Ei, Muoru, me diga, que tipo de crime você cometeu? — perguntou a garota enquanto tocava gentilmente a coleira dele com a ponta do dedo.
Por reflexo, Muoru escorou-se na árvore, sentindo-se um pouco inquieto com seu toque. Ele queria que ela perdoasse seu desconforto, porém, ao mesmo tempo, estava bem ciente de como a coleira estava presa à sua pele, e as possíveis implicações deviam ser removidas. E, mesmo confiando nela, por acidente, se a coleira fosse deslocada, sua vida chegaria ao fim.
E, depois disso, ficou muito relutante para discutir sobre os assuntos que ela tentou perguntar. Mas Mélia estava séria. Não, não era bem isso. Mesmo tendo brincado até agora, seus olhos, neste momento, pareciam brilhar mais do que nunca. Ele sentia que não era apenas curiosa, também estava ansiosa para saber mais.
Com dificuldade, como se seus lábios pesassem toneladas, Muoru disse:
— Assassinato. Por isso. — Bem, isso era o que o mundo pensava e o que estava escrito no registro de julgamento do tribunal.
Em uma manhã, seu superior, o Segundo Tenente, Hedger Reeve, foi encontrado morto no canto de uma trincheira. Pelo fato de a força de autodefesa do país vizinho, que não tentou sair de sua fortaleza, e os altos superiores ao seu lado, que não tentaram forçar uma entrada através das defesas inimigas, a situação da guerra estava praticamente parada. Por isso, o assassinato do Segundo Tenente da Décima Sexta infantaria causou um grande alvoroço. Durante toda esta agitação, o desaparecimento da pá favorita de um soldado de segunda classe parecia algo trivial.
Então, trinta horas após encontrarem o corpo, os cães farejadores do regimento da polícia militar encontraram a pá em uma pilha de madeira descartada. E ela estava manchada com o sangue do Segundo Tenente.
Infelizmente, como um jovem soldado fora de serviço, sem um álibi que pudesse ser verificado, em uma semana, a Corte Marcial terminou e “Muoru Reed” foi considerado culpado.
Com toda a honestidade, o cara foi muito inteligente ao usar minha pá no assassinato.
O garoto, que se tornou o Prisioneiro 5722, riu.
Não era como se não houvesse motivo o bastante. Hedger Reeve era um lixo humano.
Ele usava coisas como safiras roubadas e ouro sujo ao redor do pescoço. E, muitas vezes, gabava-se sobre os terríveis detalhes de como os conseguiu. Era o pior tipo de bêbado e, dependendo de seu humor, espancava seus subordinados com frequência. Também amava jogar dados e, se perdesse muito, ficava quase que completamente vermelho e virava a mesa de jogo. Embora ele fosse o comandante das toupeiras, nunca foi visto com uma pá em mãos. Quase sempre, em sua forma arrogante, ficava em uma sombra fresca e observava os cavadores.
No dia de seu enterro, seria quando Muoru estaria cercado por fogueiras, junto de seus companheiros toupeiras, rindo sem parar durante toda a noite. Realmente, isso precisava acontecer no mesmo dia em que o corpo de Hedger Reeve fosse enterrado na beira do campo de batalha.
O garoto, preso, insistiu muitas vezes, tanto para a investigação quanto na corte militar: “Não fiz nada, é uma falsa acusação.” Porém, além disso, havia mais alguma coisa que eu pudesse ter feito? Eles o culparam por algo que não sabia. E, claro, sem um álibi ou evidência, não teria ninguém que acreditasse nele.
— Isso não é verdade — disse Mélia, sua voz calma pareceu agitar o ar do cemitério quando trouxe Muoru de volta de suas memórias sombrias.
— Tenho certeza que você não fez isso — continuou ela, olhando diretamente para ele. A partir do rosto dela, Muoru teve a impressão que não havia nem um pouco de dúvida sobre sua inocência... Sentiu que ela acreditava nele.
— Aaw. — Algo como um bocejo saiu da garganta de Muoru. Entendeu quando sua resolução começou a enfraquecer.
Em sua mente, recitou seu objetivo. Devo escapar... então, uma segunda vez, e uma terceira...
Depois, limpando as lágrimas dos olhos azuis da garota, disse:
— Obrigado. Se você fosse a juíza, eu teria sido inocentado. — Então sorriu para retirar a dúvida que girava em seu peito.
Claro, se fosse absolvido, nunca teria sido enviado ao cemitério e jamais teria encontrado Mélia toda noite.
— Bem, você realmente é alguém que não devia estar aqui — murmurou Mélia com uma expressão pesada. De alguma forma, até ela parecia se sentir do mesmo jeito que ele.
Como era esperado, Muoru se perguntava sobre como devia reagir às suas palavras... como devia reagir à expressão no rosto dela.
De repente, sua boca se moveu de forma automática:
— Ei, é apenas uma hipótese, mas... — disse ele, sem olhar para a garota —, se eu tentasse fugir daqui... você gostaria...
Ao perceber que estava prestes a deixar escapar algo que não devia, parou repentinamente. Hesitou por um momento, sentindo o olhar de Mélia. Então, para aliviar seu olhar, falou:
— Depende totalmente de você, mas... caso eu tente escapar em algum momento, quer vir comigo?
Ela piscou algumas vezes, então olhou para o chão.
Por outro lado, Muoru sentia-se calmo conforme observava com cuidado e silêncio a reação dela.
As palavras haviam pulado de sua boca como se tivessem vontade própria, mas, no fim, não imaginou que seu convite era tão ruim. Porém, pensou que não teria bases para garantir isso, não acreditava que Mélia seria capaz de dedurá-lo a Daribedor, mesmo se revelasse sua vontade de fugir.
Mesmo tendo pensado nisso várias vezes, sua ideia de fuga ainda não era algo que podia chamar de plano. No entanto, independentemente da forma que buscasse ajuda nisso, com certeza, quando fugisse do cemitério, o plano envolveria Mélia. Se este fosse o caso, pensou que também pudesse haver algum tipo de benefício para ela.
Mesmo eu não tendo um plano exato, talvez seja uma boa ideia colocá-la no centro do esquema, né? Talvez sua existência não seja um grande obstáculo...
Tendo ciência de que era um pensamento muito otimista, não podia ignorar o fato de que, em algum lugar dentro de seu coração, estava esperando que fosse verdade.
Conseguia imaginar com facilidade que a garota recebera o mesmo tratamento, algo semelhante ou pior, no cemitério em massa.
Inimigo natural da humanidade, os monstros que possuíam muitos nomes.
Os coveiros antes dele com certeza encontraram um fim, por serem incapazes de lidar com o terror dormindo sob seus pés e a repulsa daqueles que precisavam enterrar.
E, definitivamente, esta não era uma história limitada apenas à abertura de covas.
Lembrou-se da figura de Mélia enquanto permanecia diante do monstro feito de carne. Seu braço, o qual foi arrancado e saiu voando. Seu tronco, o qual foi perfurado.
Sim, Muoru já sabia qual o nível de sofrimento o guarda sepulcral precisava enfrentar.
— ...
Sem mudar de expressão desde que foi questionada, a garota permaneceu completamente quieta e parada. Às vezes, era como se estremecesse, seus pequenos lábios tremiam.
No entanto, mesmo não tendo dito “Não”, Muoru sentiu que, ao final de seu conflito interno, palavras de rejeição entraram em sua mente.
Não há mais nada que posso fazer?
Então, como já havia feito antes, tentou agarrar sua mão...
Mas seus dedos não se encontraram com os dela; ela havia puxado a mão.
— Sinto muito — disse Muoru, com pressa. — O que estou dizendo? Esqueça. Só estava...
— Não — Mélia o interrompeu —, é minha culpa — disse ela, balançando a cabeça. — Não é sua culpa.... Meus pés... meus pés não podem sair deste cemitério.
Muoru ficou sem saber como responder.
Essas palavras, de alguma forma, pareciam ser completamente literais. Não era como uma resistência psicológica ou algo do tipo; na verdade, soava como se fosse impossível em um sentido físico.
Como assim?
— Muoru — Ao ouvi-la chamar seu nome, Muoru levantou o rosto —, pode vir comigo um pouco?
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Com a garota segurando um lampião e guiando o caminho, os dois caminhavam lentamente pelo cemitério noturno.
Ao longo do caminho, ninguém falou.
Além de seus pés, os quais mal conseguia ver com toda a escuridão, Muoru focou sua visão nas costas de Mélia enquanto ela caminhava à sua frente. Seus ombros pequenos, a protuberância de suas omoplatas sob a roupa e quase toda sua nuca estavam cobertos pelo capuz.
Por que ela sempre usa o capuz?
A pergunta apareceu em sua mente de forma repentina enquanto a encarava.
Não era como se estivesse elogiando, só sentia que era um desperdício esconder todo o seu belo cabelo, a não ser algumas mechas. Só a viu sem o capuz duas vezes. A primeira foi quando tomava banho e a segunda quando o monstro rasgou todo seu manto. Na primeira vez, quando estava toda molhada, foi algo rápido..., na segunda, quando estava coberta de sangue... por isso não viu muito. E, ao pensar mais sobre isso, supôs que nunca mais poderia vê-la diretamente de novo.
Se eu me aproximar e puxar o capuz, o que vai acontecer?
Enquanto pensava nessa ideia, foi pego repentinamente por uma mistura de ideias impuras e impulsos maliciosos... Porém, ao pensar uma segunda vez, estapeou-se no rosto.
Sei que faz pouco tempo, mas será que ela já esqueceu o quão estúpido eu fui antes?
Seus pensamentos voltaram para alguns minutos atrás, quando tentou agarrar a mão branca dela, mas só conseguiu segurar o ar de forma desajeitada. E, realmente, quando pensou naquilo, sentiu que, se puxasse seu capuz sem motivo algum, ela provavelmente não reagiria muito diferente caso levantasse sua saia.
Mas, algum dia, quero ver como ela fica quando está brava.
Enquanto tinha esses pensamentos bobos, a garota, que caminhava à sua frente, parou.
Diante deles, havia uma árvore gigante no centro do cemitério. As folhas espessas na copa da árvore tapavam o luar e criavam uma sombra no chão.
E, diante da garota, estava uma lápide. Embora Mélia tivesse lhe trazido ali de propósito, ficou imóvel e em silêncio.
Mesmo estando atrás dela, Muoru ainda leu o epitáfio.
Viu uma data de dois anos atrás e...
— Ma... ri... a...? — Era o nome de alguém que o garoto não conhecia.
Era o nome que havia escapado dos lábios da garota antes.
— Maria também era uma guarda sepulcral. — A garota disse exatamente o que estava na lápide.
— Era sua mãe? — supôs Muoru, já que os nomes eram parecidos. No entanto, ela balançou a cabeça lentamente.
— Não creio que seja o caso.
— Não?
— Maria e eu não somos relacionadas. E mesmo que nossas idades não sejam muito diferentes, vivo aqui faz tanto tempo que nem me lembro mais, porém, nunca encontrei alguém que dissesse ser minha mãe.
Aquela maneira silenciosa de falar não era diferente de seu tom normal, no entanto, enquanto estava diante do túmulo, pela tristeza ao juntar as mãos, como se estivesse relembrando, e sua seriedade, Muoru foi capaz de entender quanta falta Mélia sentia dessa pessoa chamada Maria.
— Talvez... acho que irmã seria o mais próximo..., isso se Maria me deixasse dizer isso. — Mélia ficou quieta novamente.
Ele encarou a garota. Mesmo já tendo se acostumado com sua aparência, ainda sentiu que era linda. E sua testa franzida, logo acima das pálpebras, parecia expressar a hesitação em seu coração.
Muoru finalmente sentiu que a hora de a questionar era agora.
— O que é um guarda sepulcral? — perguntou ele.
— Um ladrão de túmulos, o qual rouba o poder da Escuridão — respondeu Mélia.
O garoto permaneceu em silêncio.
Não sabia a razão para estar incomodado. Era bom ela ter lhe respondido, mas, ao mesmo tempo, não sabia o que fazer. E, sem conseguir pensar, nenhuma palavra apareceu em sua mente.
Enquanto olhava sobre o ombro dela, a garota encarou os pés dele.
— Muoru, você não está com medo de mim?
Ele deu de ombros. Felizmente, foi capaz de dar uma resposta apropriada.
— Você disse antes que não era amiga daquelas coisas.
— Eu disse? — A garota inclinou a cabeça para o lado.
— Não se lembra? Foi na segunda vez? Ou foi na... — acabou hesitando.
Na segunda vez em que viu um dos monstros, na vez em que aquilo ainda estava se movendo sobre o solo, ele perdeu toda a compostura. Por isso, relembrar dessas memórias o deixavam envergonhado.
Se virando vagarosamente, a garota disse:
— Muoru, você sabe sobre o poder da Escuridão?
— Hm... só um pouco.
A Escuridão tinha muitos nomes. Eram demônios. Mortos-vivos. E, de forma mais simples, monstros. Só apareciam à noite; eram imortais e o maior inimigo da humanidade.
Essas pequenas informações foram lhe dadas por Corvo, porém, mesmo agora, Muoru não sabia até onde podia confiar. Mesmo depois de ter confirmado um pouco deste conhecimento com seus próprios olhos.
Isso também incluía o corpo da garota.
— Até mesmo eu não sei o que são essas coisas — disse Mélia —, mas o termo “guarda sepulcral” se refere às pessoas que têm o poder da Escuridão dentro delas.
— Dentro?
— Aham. É como você viu, eles não estão vivos e também não são inanimados... Entenda, para A Escuridão, a forma deles não importa. Não consigo explicar de forma clara, porém... use uma maçã como exemplo. Depois de comê-la, tudo o que sobra é o miolo. Por isso, não é mais uma maçã, certo? — À medida que a garota explicava, às vezes, adicionava gestos para acompanhar suas palavras.
— No caso de coisas vivas, é exatamente pelo fato de preservarem a forma de seus corpos que são capazes de se manterem. Se perderem sua forma, se tornam algo diferente do que eram — continuou ela —, no entanto, quanto à Escuridão, pense neles como argila moldável com intenção assassina. Não faz grande diferença se é feita de vidro ou argila. Não são algo que “morrerão”. Por isso, não importa que método comum seja usado para machucá-los, sempre voltam para a mesma forma de antes.
Então, Mélia entrou em pânico, achando que havia feito com que ele tivesse entendido errado.
— Mas, é..., claro, a argila não passa de uma metáfora. A Escuridão não se mistura com os outros. Não é assim, é o contrário, ela os repele. Talvez seja correto dizer que, quando são tocados por uma Escuridão de nível mais alto, são suprimidos. Então, entram em um estado de semimortos.
Muoru desesperadamente tentou entender a explicação da garota várias vezes em sua cabeça.
Isso com certeza era algo que ouvira em uma aula uma vez. Todos os organismos vivos, se olhados com um microscópio, eram feitos de partículas muito pequenas, chamadas “células”. Não sabia por que mantinham sua forma, ao invés de se despedaçarem, porém, de qualquer jeito, aprendeu que animais tinham coisas como “células ósseas” e “células conjuntivas”, as quais se ligavam, formando um ser vivo.
No entanto, aqueles monstros não pareciam seguir as mesmas regras vitais dos outros seres vivos. Seus corpos eram feitos de algo que não podia ser morto ou destruído.
— Tenho uma parte deles dentro de mim — disse Mélia enquanto pressionava uma mão no peito.
— Como? — perguntou Muoru. — Você é humana, não é?
A garota assentiu, então, com os olhos ainda fixados nos pés, continuou:
— A Escuridão enterrada neste cemitério não foi ressuscitada, entretanto, seus corpos estão sob o solo... e...
Olhou para as densas saliências dos galhos acima.
— Foi me dito que, sob esta árvore, está enterrada a mais poderosa Escuridão, algo que pode ser chamado de rei deles. Da semente que surgiu de seu corpo, raízes cresceram e, daquele corpo, a árvore sugou seus nutrientes e cresceu. Por isso, dentro desta árvore, em seu tronco, flui o poder da Escuridão que foi formada... E, claro, o mesmo vale para sua fruta.
No instante que ouviu isso, Muoru relembrou da época em que ela estava sob a árvore comendo algo.
A fruta escura, a qual parecia estar acumulando toda a escuridão. A fruta que pulsava, como se tivesse vontade própria.
Então, ela está dizendo que é uma mistura tanto de uma planta quanto de um monstro?
— Esta árvore gigante só dá um fragmento da Escuridão. Por isso, o guarda sepulcral, eu, come-a e rouba seu poder. Roubar o maior poder faz com que me sinta um ladrão de túmulos. E, com ele, mesmo se outra Escuridão me tocar ou agir de forma hostil contra minha pessoa, no fim, torna-se incapaz de se mover. — Mélia fez uma pausa. — Respondendo à sua pergunta... sou humana, porém, ao mesmo tempo, uma parte de mim é como A Escuridão. Por isso, não posso me separar do cadáver que está enterrado debaixo desta árvore... ou, em outras palavras, do cemitério... E... não posso morrer.
Sério?
Com um tom levemente surpreso, o garoto deparou-se com a dúvida que tinha em mente há um tempo.
— Pera aí; você não disse que essa tal de Maria também era uma guarda sepulcral?
Caso “Maria”, quem Mélia considerava uma irmã mais velha, fosse uma guarda sepulcral, ela também teria roubado o poder dos monstros. Se assim for, não é estranho não existir outro guarda sepulcral? O epitáfio foi feito por luto a um humano que morreu, mas, os guardas sepulcrais não deviam ser capazes de morrer... testemunhei isso com meus próprios olhos.
Ou ainda há coisas que ela não me disse? Se for verdade, Mélia... Também pode morrer?
— Maria — com uma voz aflita e trêmula, como a de uma pessoa que estava vomitando sangue, conseguiu forçar algumas palavras para responder à sua dúvida. —, Maria... cometeu suicídio.
Como se estivesse prestes a irromper em lágrimas, seus lábios tremeram e, quando continuou, mostrou pressa:
— Quando Maria estava aqui, eu não era a guarda sepulcral. O poder tem um limite, dois humanos não podem ser guardas ao mesmo tempo. Mesmo assim, naquela vez, eu não sabia por que ela se matou. Porém, na primeira noite antes de me tornar uma guarda sepulcral, A Escuridão, na forma de um tigre de seis pernas, devorou meu braço direito...
A garota passou a mão no antebraço direito, perto das juntas do ombro.
Pela sua expressão dolorosa, o garoto podia ver que ela estava relembrando das memórias de quando o monstro arrancou seu braço. Revivia o medo e dor que sentira.
— A dor... odeio-a — disse ela.
Sob suas roupas, Muoru sentiu o ferimento em sua perna direita doer. Foi onde Dephen havia mordido quando ele tentou escapar. Sem dúvidas, o grande cachorro preto pegou leve. Mesmo assim, apesar de sua mandíbula demoníaca, sua perna não foi arrancada. E, conforme os dias passavam, conseguiu até esquecer de que havia uma cicatriz.
No entanto, logo após a mordida que acontecera, lembrou-se da dor aguda que tomou conta de seu ser. Mesmo tendo pegado leve, a dor por causa da mordida do cachorro foi quase insuportável. E, se apenas isso já doía esse tanto...
O que é um corpo que não pode morrer?
Pouco tempo atrás, teve um leve vislumbre disso.
Pelas inúmeras foices do monstro de carne, Mélia foi morta diversas vezes. Foi perfurada; esmagada; rasgada; dividida ao meio; quebrada... foi morta.
Foram ferimentos que deviam ser fatais. E, tendo sorte ou não, com machucados daqueles, não era necessário perguntar o estado da vítima. Por ter apenas uma vida, um humano comum não poderia sofrer mais de um ferimento grave.
Porém, em apenas uma noite, quantas vezes o corpo dela experimentou a dor da morte?
Ficou claro que as feridas que recebera desapareceram, independentemente da profundidade. Entretanto, as memórias não poderiam ser apagadas. A memória da dor e a do medo não podiam ser aliviadas e acabavam se acumulando. Era como uma tortura. Era algo terrivelmente ruim.
Não importava quem fosse, algum dia, seria incapaz de suportar essa experiência. E, se sofresse a dor equivalente à morte várias vezes, sem dúvidas, passariam a preferir a morte.
Guardas sepulcrais não podiam morrer, foi o que Mélia disse.
Mas isso era mentira.
Eles morriam.
O coração deles morria.
Cediam a Thanatos[1].
Mélia não era exceção.
— A garota se dissolveu à luz do sol — disse com um tom honesto e cruel. — Quando o leste brilhou, as estrelas desapareceram. Quis pará-la, não sabia o que fazer. Ela não deu ouvidos a nada do que eu disse, então, não pude fazer nada além de assistir. Depois, o primeiro raio de luz atingiu Maria. Ainda que a luz da primavera devesse ser gentil, para Maria, parecia ser óleo fervendo, e, quando todo o seu corpo foi banhado pela luz do sol, como se fosse um verme, contorceu-se no chão. Parecia que o poder da Escuridão dentro dela estava a rasgando...
Muoru conhecia a pessoa que Mélia estava descrevendo. Por isso, quando fechou os olhos, a imagem que teve foi a de uma garota, que, ao invés de ter cabelos castanhos avermelhados, queimava à luz do sol.
Era impossível confirmar a precisão de sua imaginação, porém, de uma coisa tinha certeza, sabia o que acontecera ali... neste túmulo... aos seus pés.
— A garota coberta pela luz parecia estar sofrendo muito. Mesmo assim, também mostrava felicidade. Ser capaz de morrer a deixou feliz, pude perceber isso enquanto observava de perto. Mas, então, Maria chorou. Chorou por mim, pela garota que estava abandonando. Entenda, ela sabia que, depois de ter o corpo destruído, eu me tornaria a próxima guarda sepulcral.
A garota esfregou a borda da lápide com gentileza quando falou.
— Então, enterrei seu corpo sem alma aqui.
Silêncio.
Muoru não conseguiu encontrar nenhuma... nenhuma... nenhuma palavra mesmo para dizer. Seus sentimentos foram fortemente abalados por este evento, algo que nunca lhe acontecera antes.
— Sinto muito, Muoru — disse ela de repente.
Por que ela precisava se desculpar? A sua confusão se intensificou mais uma vez. A pessoa que precisa pedir perdão sou eu... mas... mas... eu...
A garota olhou em sua direção, porém, seus olhos não se encontraram.
— Você não veio aqui porque queria, então acho que não devia ouvir essas coisas... — disse ela, porém, quando continuou, seu tom ficou muito mais alegre: — Desde que me tornei uma guarda sepulcral, estivesse sozinha e nada de bom me aconteceu. Não fui capaz de ver o sol e... tive muitos pensamentos dolorosos. Não posso ir para qualquer lugar também, por isso, pensei que apenas ficar de guarda neste cemitério já seria o suficiente..., mas nunca fui feliz.
Usando o capuz para cobrir ainda mais o rosto, colocou a mão sobre a boca.
— Até que você me deixou ser sua amiga.
Espiando seu rosto, Muoru conseguiu ver vagamente a expressão de Mélia suavizar... e, pela primeira vez, também viu... seu sorriso.
As têmporas dele pulsavam.
Vou fugir. Novamente, recitou aquelas palavras em sua mente. Foi por este motivo que me aproximei de você.
A fim de conseguir fazer alguém que conhecesse bem o cemitério cooperar consigo, precisava se aproximar dela primeiro. Este era seu plano e, agora, estava prestes a gerar frutos.
Ela confiava nele e entendia que ele não devia estar ali.
Ficou evidente que isso podia ser considerado um grande sucesso. Porém...
Se é um sucesso, por que me sinto tão vazio? Será que estou apenas cobrindo os sentimentos de ódio de mim mesmo?
Para simplesmente conseguir seu grande objetivo, não havia muitas opções disponíveis para um prisioneiro como ele. E tudo seria em vão caso não conseguisse atingi-lo através de seus métodos. Por isso, perguntou a si mesmo com força:
O que devo fazer? Qual a melhor forma de fugir deste lugar?
Essas perguntas deviam ser o único e mais importante problema em suas mãos.
Entretanto, mesmo estando bem ciente deste fato, não conseguia parar de pensar se havia algo que pudesse fazer por Mélia.
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