CAPÍTULO 4-2

— Pata... — A garota ordenou e, em resposta, o cachorro preto estendeu o antebraço, o qual tinha quase o mesmo tamanho do dela, sobre sua palma branca.
Quando Muoru viu Mélia no cemitério, já estava anoitecendo... não, ele não a viu, ele a encontrou. Este encontro foi diferente da primeira vez, quando estava dentro da cova e era visto de cima por ela, ou da segunda, quando estava fugindo do cachorro. Desta vez, foi algo proposital.
Mesmo que a história do Corvo seja verdade, sua tarefa de abrir covas permanecia a mesma. Para Muoru não havia grandes diferenças entre abrir covas para humanos ou para monstros. E parecia que seu trabalho não mudaria até o fim de sua vida. Isso... não era brincadeira.
Devo fugir.
Mas em seu estado atual, sabia que o cachorro, o qual recebia carinho na cabeça, era uma ameaça muito maior que os monstros dentro dos túmulos.
Apenas ver Dephen já fazia com que sua perna doesse. Ainda que tenha sido graças a Mélia o fato de seu ferimento não infeccionar, correr ainda era algo impossível no momento. No entanto, mesmo se fosse capaz disso, os eventos da noite anterior apenas iriam se repetir.
Além do mais, só havia uma saída do cemitério, por isso, caso mantivesse o foco naquela direção, conseguiria fugir em algum momento.  Agora, se pudesse fazer um desejo, pediria por um mapa.
Mas também havia a coleira.
Não a do cachorro preto, mas sim a sua. Recentemente, havia ficado tão acostumado com ela que esqueceu por completo de sua existência, mas ainda assim, precisaria se livrar dela. Mesmo que apenas seu número de prisioneiro estivesse escrito, parecia que ela estava gritando “sou um prisioneiro!” enquanto ele andava. Era óbvio que a polícia militar e os xerifes locais o capturariam para acumularem pontos com seus superiores ou iguais. Porém, da mesma forma, não poderia sair na rua sem cuidado algum, pois as pessoas poderiam denunciá-lo.
Mesmo sabendo que seria ótimo ter a coleira retirada de seu pescoço, as pessoas que a colocavam pareciam estar bem cientes deste fato. Por este motivo, o centro da coleira de couro usava uma fibra especial, chamada de “Fio da Bruxa”. Por centenas de anos, assassinos, vigaristas[1] e pessoas desse tipo normalmente usavam este material para vários propósitos. Era fino, mas extremamente resistente, ao ponto em que até mesmo alicates ou tesouras de alta qualidade não podiam o cortar.
E para piorar a situação, quando estavam falando que sua sentença o condenou a mais de cinco anos de prisão, também disseram que a coleira estava conectada à sua artéria carótida direita. Se qualquer prisioneiro tentasse retirá-la à força, a artéria seria cortada pelo “Fio da Bruxa” como se fosse um ovo cozido, acabando com sua vida. Já que assassinos o usavam como garrote[2], sua confiabilidade era alta.
Felizmente, em geral, Muoru não estava incomodado com isso, porém, havia alguns prisioneiros que não conseguiam aguentar a ameaça constante à vida, a qual estava presa aos seus vasos sanguíneos..., por isso, acabaram enlouquecendo e arrancando as coleiras. Um dos médicos carecas tentou intimidá-lo durante a cirurgia, dizendo que esta loucura tomou a vida de cinco ou seis pessoas em um ano.
Mas mesmo se a coleira fosse removida com sucesso, ainda se sentiria isolado e impotente.
Sua mãe, pai e irmãos deviam estar vivos, mas isso não significava que poderia voltar para casa. Todavia, mesmo mentindo ao dizer que não queria os ver, já fazia cinco anos que saiu de casa e não sentia saudades do lar ou algo do tipo.
Sobretudo, já que foi negligenciado quando estava sendo criado, não poderia contar com a ajuda deles, pois nunca mostraram qualquer tipo de sentimento amoroso. Mais do que isso, seu retorno ao lar agora, depois de tanto tempo, seria uma inconveniência para sua família, como também, talvez, pensariam que seria melhor nunca o ver novamente pelo resto de suas vidas.
Era estranho, mas não estava muito triste com isso. Isso podia ser devido ao fato de haver muitas coisas mais importantes em que devia pensar. Ou, talvez, poderia simplesmente ser uma pessoa fria. Entretanto, o garoto sabia que havia uma grande diferença se um terceiro se envolvesse ou não.
E o primeiro..., não, o único apoio que tinha era Mélia.
Ela era misteriosa, isso era certo. Até mesmo sua personalidade era vaga. Mas, ontem, havia lhe dado medicamentos e não evitava a área de trabalho dele, mesmo sabendo que era um prisioneiro. Com certeza não havia chance de ela ser uma pessoa ruim.
Além disso, se conseguisse informações da garota conhecida como guarda sepulcral, e se a mesma fosse capaz de cooperar com ele, um pouco que seja, as chances de escapar com sucesso poderiam aumentar.
Claro, ambos eram estranhos um para o outro neste lugar. Por este motivo, se tentasse perguntar algo abruptamente, como: “Quero fugir, você vai me ajudar?”, ao invés de cooperação, provavelmente o mandaria de volta para o campo de detenção. Mas o melhor método para se aproximar era fazendo com que baixasse a guarda. Se isso acontecesse, no final, o ajudaria por vontade própria.
Ah, como era chamado esse tipo de coisa mesmo? Era uma palavra que não usava normalmente, mas quando lembrou, apertou o punho. Isso, ludibriar.
E agora que seu objetivo foi decidido, sentiu que ficou muito mais fácil agir do que ficar encolhido e pensando sobre isso. Por isso, Muoru voltou ao cemitério à noite e preparou-se para emboscá-la, a fim de surpreendê-la um pouco, porém...
— Muoru?Agachada, a garota de cabelo castanho-claro chamou o seu nome, enquanto acariciava o cachorro ao seu lado e olhava com incerteza para o garoto.
Após ouvi-la hesitante chamando seu nome, Muoru pensou no que falar.
— Humm... isso... ah, é, nada — gaguejou o garoto e, novamente, o silêncio ficou entre os dois.
Muoru, se acalme! Então, deu uma dura em si mesmo por não ser capaz de pensar em palavras adequadas. Sua futura liberdade dependia de ser capaz de chamar sua atenção ou se ela rejeitaria.
A primeira ideia que teve foi a das conversas agradáveis que teve com seus amigos soldados ao redor da fogueira do acampamento. Mas então, lembrou que as essências daquelas piadas envolviam pilotos veteranos de blindados se gabando de quão grande eram seus rifles.
Agachada a uma distância pequena dele, a garota observava com curiosidade sua dificuldade para falar, o rosto dele ficou perplexo e sua garganta prendia as palavras.
Os olhos dela eram tão escuros quanto o mar frio, e o azul era de uma cor tão profunda que parecia sugá-lo.
Novamente, silêncio. Mas nada podia ser feito; a garota diante dele simplesmente o fazia ficar mudo.
Aqueles olhos o encaravam, esperando para que falasse, mas sua mente estava completamente branca e nenhum pensamento surgiu. Ela era totalmente diferente daqueles oficiais militares, que só faziam seus deveres com rostos rabugentos, e do Corvo, que falava tão casualmente como se fossem bons amigos.
Então, do nada, percebeu uma falha básica em sua tática anterior.
Como eu deveria ludibriar uma garota mesmo?
Muoru Reed, soldado E-1, mestre das toupeiras de guerra.
A qualquer momento, não importava o clima, as toupeiras eram obrigadas a cavar buracos sem parar. Com apenas as roupas do corpo, eram capazes de rastejar por mais de cinco quilômetros. Também eram capazes de desmontar e limpar seus rifles militares em instantes.
Mas ele não tinha ideia de como se aproximar da garota à sua frente...
— Mélia...
Este era o máximo que conseguia. Sua tendência de permanecer em silêncio não conseguia ir além disso.
Ele engoliu em seco. Por quanto tempo ficará nervoso? Não imaginava que apenas engolir saliva resultaria em um barulho tão alto.
Quando seus pensamentos ficaram em ordem, imediatamente disse:
— Gostaria de ser minha amiga? — Palavras essas que parecia já ter ouvido em algum lugar.
A garota piscou algumas vezes, então, perguntou:
— Como? — Sua voz estava baixa e confusa.
Eu não devia ter perguntado isso. Foi uma falha, pois abordou um assunto completamente errado. Seu rosto e cabeça ficaram vermelhos em um instante, como na vez em que tomou uma bebida forte em um gole só. O impulso de agarrar uma pistola, apontar para sua têmpora e explodir seus miolos idiotas brotou dentro de si.
Enquanto o garoto pensava em desmaiar de agonia por causa de sua ignorância, a garota próxima, por outro lado, parecia não ter entendido suas palavras. Mas então, com a lentidão da areia caindo em uma ampulheta, suas bochechas ficaram profundamente vermelhas.
E, depois de um tempo, desviou o olhar dele e disse:
— Não posso...
Foi a primeira vez que falou sem olhar diretamente para seus olhos. Ele conseguia ver que os lóbulos da orelha dela, aparecendo na beirada do capuz, ficaram vermelhos.
Era estranho, mas mesmo tendo o recusado com clareza, Muoru sentiu-se aliviado.
Rindo para si mesmo, perguntou:
— Por quê?
Mélia o respondeu com o rosto virado para o lado:
— Porque não entendo. Quando disse amigo, o que realmente quis dizer?
— Bem, isso... é, até eu não consigo dar uma definição exata.
Muoru também desviou o olhar, pensando por um tempo, antes de explicar algo incorretamente:
— Amigos, bem, hm... é o próximo passo depois de conhecidos... isso é... mútuo? Não, mais que isso... para se conhecerem melhor, duas pessoas ficam mais próximas... tipo isso.
Basicamente, tudo o que disse a Mélia era igual a frase “deixe-me me aproximar de você”.
Transbordando de vergonha, Muoru não conseguiu prosseguir com sua explicação.
Então, como se descartasse uma ideia que teve, baixou a cabeça em silêncio. Enquanto esperava, Muoru observava, à medida em que a luz cintilante do lampião, colocado no chão, fazia a sombra da linha do queixo dela tremeluzir desordenadamente.
 Depois de um tempo, ela levantou a cabeça, mas não era para retirar a recusa anterior.
— Muoru, de onde você veio? — perguntou ela.
Depois de uma rápida hesitação, ele respondeu:
— Campo de Detenção de Rakasand.
— Rakasand?
— Ah, é no Reino do Leste. Nunca ouviu falar?
Mélia, com o rosto vermelho, assentiu profundamente:
— Nunca saí deste lugar.
Muoru ficou perplexo por um momento, então, como se espiasse por um buraco, encarou o pescoço branco dela. Não havia evidência de que ela era uma prisioneira ali, por este mesmo motivo, ficou difícil acreditar. Mas ao mesmo tempo, fazia muito sentido.
Entendi. Ela realmente foi separada do resto do mundo.
Havia uma coisa em que ele acreditava um pouco na história do Corvo. Antes de as máquinas a vapor serem inventadas, em outras palavras, até cem anos atrás, o melhor método de viajar sobre terra era a cavalo. Além disso, a única coisa que podia ser feita era caminhar. Naquela época, cidadãos comuns não podiam sequer pensar em viajar. Exatamente por este motivo, eles não só não participavam de campanhas militares, como também, a grande maioria, nunca deixava sua cidade natal.
Mesmo agora, se uma pessoa vivesse em algum tipo de país ou vila agrícola, provavelmente não seria incomum.
Olhando para o garoto, ela perguntou:
— Então, diga-me... como era o lugar de onde você veio?
Depois de um tempo, ambos conversavam enquanto a luz do lampião cintilava entre eles.
Mélia ouviu cada palavra dele com seriedade, mas só perguntava se algo lhe interessasse. E quando perguntava, Muoru, mesmo para seus padrões usuais, respondia grosseiramente.
Da mesma forma que ficava quando havia bebida por perto, ele estava tagarela. Contou-lhe sobre a cidade em que nasceu, sua família, o que era um blindado, a importância de trincheiras bem pensadas, suas rações favoritas, como repolhos eram cultivados...
O que estou falando? Não falo dessas coisas para amigos ou para qualquer um que seja.
Era fácil lidar com as perguntas dela, mas sentir o seu olhar focado nele o fazia se sentir envergonhado. Porém, ao mesmo tempo, também era um pouco assustador.
Ele usou um galho para desenhar um mapa no chão, e ao olhar para o céu, fingiu relembrar de algo, mas não olhou nos olhos da garota. Foi neste momento que, inesperadamente, entendeu como tirar algumas palavras dela.
Além de já ter um plano, Mélia parecia ser uma ouvinte incrível. Pelo fato de nunca ter saído deste cemitério, não entendia a premissa de algumas histórias. Todavia, mesmo que a explicação do garoto fosse difícil, ela mostrava uma ótima habilidade de depreender seu coração do que ele estava tentando dizer.
Mas precisou de um pouco de esforço para entender o conceito de “animal domesticado”.
Ele lhe contou como os cozinheiros da campanha prepararam um leitão assado para ele e seus companheiros durante uma comemoração de vitória. Muoru se lembrou da essência aromática da gordura animal e temperos, então, começou a perceber sua falha em notar a baba se acumulando em sua boca. Mas Mélia não estava interessada no sabor da comida ou como foi preparada; ao invés disso, mostrou interesse no que ele falou depois.
— Depois disso, aquele “porco” recebeu um enterro apropriado?
— Não... não lembro se usamos os ossos para fazer dashi.
— Dashi?
— Coloque os ossos em uma grande panela e cozinhe por bastante tempo. No final, se transformará em um caldo de sopa.
— Vocês comem até o cadáver? Isso é... cruel — murmurou Mélia com tristeza, parecendo decepcionada com a conversa.
Mas no caso de animais domésticos, eles não acham que isso seja cruel, na verdade, não pensam em nada.
Com grande esforço, tentou explicar. Tentou persuadir Mélia de alguma forma, dizendo que animais existiam para serem criados como animais de estimação para serem comidos (ou mortos), mas as palavras certas não saíram. Para ele, este era um conhecimento comum que parecia extremamente natural, mas não conseguia pensar em outras palavras para fazer com que entendesse.
A conversa escapou à tangente antes que percebesse. Algumas das perguntas loucas da garota faziam o assunto seguir uma direção completamente diferente, então, devido a mal-entendidos, a conversa mudava e, abruptamente, eles voltavam ao assunto que discutiam antes.
E se descobrisse como dizer algo, mesmo que fosse um pouco eloquentemente, acabava desviando o assunto mais uma vez... e assim por diante, até que a conversa ficasse tão empacada quanto um carro que não se movia há muito tempo. Por isso, no fim, ele não conseguiu tirar as dúvidas dela.
No entanto, graças às tangentes, a conversa dos dois continuou, sem que parasse do nada. Muoru sentia que era um grande milagre...
— Acho que entendo um pouco... — disse ela enquanto se levantava. A lua, entre as nuvens distantes, havia se movido para o centro do céu.
O perfil calmo e silencioso da garota parecia, de forma estranha, tenso. Era como se tivesse descoberto uma verdade avassaladora.
— A Escuridão, eles não existem no mundo de onde você veio, né? — A palavra que a garota disse no dia anterior saiu de seus lábios mais uma vez.
Ele estava tentando entender o significado de tal palavra.
— Sim — murmurou ele.
O garoto olhou para a garota.
Com o fraco luar, o rosto dela, escondido pelo capuz e olhando de forma desanimada para o chão, era lindo. Era algo que não imaginava pertencer a este mundo.
Encarando-a naquele momento, Muoru não conseguiu se levantar, a razão não estava relacionada ao ferimento em sua perna.
E mesmo que emoções nunca aparecessem no rosto dela, no interior de seus olhos calmos, conseguiu sentir com clareza que seus sentimentos mais internos foram abalados.
Igual ao choque que teve quando descobriu a existência daquele monstro.
A ideia de que havia um mundo onde aquele monstro não existia era um choque muito grande para aquela garota, que ali viveu por muito tempo.
Os dois eram muito semelhantes, e por esta mesma razão, eram totalmente diferentes. Assim como a lua e o sol, que nunca se chocavam, a distância entre eles era algo inevitável.
A fria brisa noturna do verão soprou sobre as inúmeras lápides enfileiradas no chão.
— Está quase na hora de eu ir — disse Muoru, levantando-se de forma brusca —, amanhã também estarei abrindo covas durante o dia todo.
Ele pôde ver Mélia acenando com a cabeça.
— Até mais... — O garoto disse, esperando vê-la acenar mais uma vez.
Mas não houve resposta.

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