CAPÍTULO 3
Quando a minhoca foi tirada da terra, a pobre criatura foi cortada ao meio e morreu.
Embora provavelmente não estivesse nem perto do mesmo nível de uma verdadeira toupeira, até mesmo uma toupeira de guerra como Muoru estava acostumado a ver vermes todos os dias. E sempre que apareciam do nada, ele acidentalmente cortava as criaturas ao meio.
Porém, apesar da frequência desses casos, hoje, Muoru foi cativado pelo que deveria ser apenas algo comum. Não sabia por que estava olhando com tanto entusiasmo para o corpo cortado da minhoca, mas no final, largou-a no chão.
Lhe foi ordenado a abrir uma nova cova hoje, talvez tenha se enganado quando pensou que a cova cavada ontem lhe pertenceria. Felizmente, desta vez era apenas um buraco para um humano de tamanho comum. Porém, conforme cavava mais fundo, precisava levar a terra para cada vez mais longe, a ponto de que o tempo necessário para a transportar se tornara maior que a quantia de tempo usada para cavar.
Quanto ao tamanho, bem... já havia cruzado com quatro minhocas. Além disso, como se fosse um idiota, a profundidade que precisava cavar era demarcada com uma longa régua de madeira, amarrada com um pedaço de pano preto. De acordo com o manual, a tarefa de hoje era de aproximadamente um metro e meio.
Porém..., Muoru percebeu que havia cavado uma profundidade da altura de seu joelho. Sem querer, sua falta de atenção fez com que errasse o chão várias vezes e acertasse o próprio pé com a pá.
— Pare de sonhar acordado e tenha foco — murmurou o garoto em voz alta, batendo na própria cabeça.
Mesmo tentando ao máximo, não conseguiu se concentrar durante o dia inteiro. Ou devia dizer que sentia seus pensamentos desviando de sua tarefa. Mesmo assim, seu corpo continuava cavando, parecia que metade de sua mente ainda não havia despertado.
No momento em que terminou de cavar, o sol já havia se posto. Para Muoru, o trabalho de hoje demorou mais que o normal. Não estava exigindo demais de si mesmo, ainda mais porque não havia ninguém vindo para elogiá-lo... sem contar que a forma com a qual era tratado não estava melhorando. Por outro lado, ainda optou por não ir pelo caminho mais fácil, pois sabia que não seria a melhor decisão.
— Senhor Prisioneiro.
Muoru ouviu Daribedor o chamando logo que começou a arrumar seu equipamento.
— Parece que tu acabaras de finalizar. — O velho continuou e, então, olhou para a cova feita por Muoru.
— Bem, sim...
Isso mesmo, foi moleza. Se esforçou para conter a afirmação sarcástica em sua garganta. A sensação de que seria difícil lidar com esse velho sem nariz não havia mudado desde o primeiro encontro dos dois.
— Sei que tu podes estar cansado, mas no momento, ficaria grato se pudesses ajudar com o enterro... ó, não te preocupes, apenas colocar terra sobre algo é simples. Quanto ao local, é onde tu estavas cavando ontem, creio que não haja a necessidade de te acompanhar, correto?
— Sei onde é — respondeu Muoru, de forma simples, distanciando-se com a pá em mãos.
— Ah..., sim, sim.
Porém, quando estava saindo, Daribedor pediu para que esperasse.
— Como vivo nesta terra a mais tempo, tenho um conselho para vós. Mesmo para prisioneiros, se não quiseres acabar dentro de uma cova feita por ti, seria melhor controlar-se e não bisbilhotar excessivamente certos assuntos.
— ...?
Seja qual for a história que ele mencionou, Muoru não entendeu. Mas antes que pudesse perguntar qualquer coisa, o velho rapidamente voltou à mansão.
Enquanto caminhava, Muoru pensava sobre o significado das palavras daquele homem.
Talvez o velho soubesse que ele esteve caminhando por aí durante a noite..., procurando por uma forma de escapar.
Então, o encontro apareceu em sua cabeça.
Mélia.
A garota que tinha o nome de Mélia Mass Grave.
Se acreditasse no que havia dito, ela seria a guarda sepulcral desta terra.
No entanto, por intuição, não sabia quais eram as tarefas de um “Guarda Sepulcral”. Quanto a abrir covas, ele já fazia isso, e os zeladores deste cemitério eram os humanos na mansão, Daribedor e os outros.
Se tivesse que especular, talvez um guarda sepulcral estivesse encarregado com a proteção do cemitério contra ladrões ou pessoas tentando furtar as coisas sob os túmulos. Mas mesmo que pudesse dizer com certeza que este era o caso, ela não parecia ser a pessoa certa para algo tão violento. Porém, ainda que suas palavras parecessem ser algo de outro mundo, aos olhos de Muoru, ela era bem normal e não parecia ser forte... bem, talvez fosse difícil dizer que a aparência dela era apenas normal.
De qualquer forma, talvez pudesse estar fazendo uma busca pelo cemitério esta noite. Bem, pelo menos foi o que Muoru pensou. Toda noite, a garota parecia estar patrulhando a área ou algo do tipo, algo que deveria ser levado em consideração em seus planos quando fosse fugir. E, por esta razão, ele começou a checar se Mélia estava lá ou não.
Mas conforme avançava no cemitério, foi capaz de ver pessoas se reunindo ao longe. Havia muitos homens se reunindo, em grande número, ao redor da cova que abriu no dia anterior.
Acho que estão realizando um enterro.
Entretanto, de longe..., não parecia ser um evento melancólico. Ainda que fosse um enterro, Muoru não sentiu nem um pouco de tristeza, a qual devia ser natural em tal ocasião. Não havia nenhum lamento ou choro.
Quando tentou se aproximar mais, viu que as pessoas estavam de luto, usando roupas e ternos pretos, e... o rosto delas estava coberto por máscaras brancas. Elas não possuíam expressão alguma, exceto pela área dos olhos, onde podia-se ver as fendas semicerradas. Eram muito parecidas com máscaras de morte. E, ainda que o físico das pessoas fosse diferente, todas as máscaras eram idênticas.
Que tipo de evento é este? Não acredito que possa ser um baile de máscaras em um cemitério, pensou Muoru. Claro, o garoto toupeira nunca participou de um baile desses.
Talvez seja falta de educação mostrar o rosto ou algo do tipo...?
Ainda que tivesse dúvidas sobre o motivo, o garoto se curvou ligeiramente para as pessoas que pareciam tê-lo notado e continuou se aproximando... foi então que viu algo estranho.
No meio da gigantesca cova que a garota havia o enterrado pela metade ontem, neste exato momento... havia a cabeça gigantesca de um monstro.
Quando seus olhos encontraram tal cena, ele entendeu na hora o que era aquilo. Claro, isso era compreensível. Seja o que for, era algo fora de seu conhecimento comum. Com pressa, esfregou os olhos, rezando para que aquilo fosse uma alucinação. Então, abriu-os mais uma vez.
Então, conseguiu ver seu rosto refletido nos gigantescos olhos da criatura, os quais tinham o tamanho da cabeça de um humano.
Agora não havia mais dúvida, a coisa sendo enterrada na cova era a cabeça de um monstro gigantesco vindo de outro mundo. Não, para ser mais preciso, era um monstro gigantesco e colossal, cujo o corpo era composto por sua enorme cabeça. O mais inacreditável era que, sob a mandíbula do monstro, a qual era coberta por pelos e onde, se fosse um humano, seria o pescoço, havia um corpo de lagarto crescendo. Comparado à enormidade de sua cabeça, seu corpo de lagarto era extremamente pequeno, mas mesmo assim, parecia ter músculos fortes e garras de aparência perigosa.
O corpo da criatura havia sido perfurado por lanças, e sua mandíbula e lados foram cobertos e amarrados com arame farpado. O monstro não tinha como se mover. Mas ainda assim, sua aparência deixou Muoru com um medo extraordinário. Ele não acreditava que aquela coisa era realmente uma cabeça. Mesmo agora, teve a sensação de que, caso suas restrições fossem retiradas, saltaria direto em sua direção.
— ...
Uma voz estranha saiu de sua garganta, mas no fim, recobrou sua compostura. Suor frio estava jorrando de seu corpo, o centro de seu rosto estava quente, como se estivesse queimando. Seus joelhos se chocavam enquanto tremia. Não sabia para o que estava olhando, mas tinha noção de que uma criatura inacreditavelmente perigosa como essa não era algo que humanos encontravam no dia a dia.
Buscando ajuda, olhou para as pessoas próximas... mas os homens mascarados, parados um ao lado do outro em fila, pareciam estar cercados por uma barreira negra, evitando que Muoru olhasse diretamente nos olhos deles. Daquela fila, uma pessoa deu um passo à frente e se aproximou do garoto.
— Bem, mãos na massa — ordenou uma voz abafada, vinda de trás da máscara.
Sem entender o que o homem queria dizer, Muoru o encarou de volta. Então, lembrou-se que estava segurando a pá em sua mão esquerda com força.
— Rápido! — disse com uma voz irritada o homem baixinho e mascarado. — Se apresse e enterre-o!
Muoru fincou sua pá nos montes de terra que havia feito anteriormente e começou a jogar a terra dentro do buraco freneticamente. Ele não via suas mãos ou corpo... a única coisa em sua vista era o monstro ferido.
O que... é isso? O que diabos... é isso?
Ele não havia ouvido falar de uma existência dessas, apenas em histórias. Aquilo tinha uma forma contorcida e distorcida, ignorando as leis e padrões deste mundo. Por exemplo, sua mandíbula provavelmente poderia comer uma cabeça igual à de Muoru com uma bocada. Apenas um décimo de sua aparência externa já era diabólico ao extremo, e, certamente, adoraria aproveitar o sabor de humanos.
Embora estivesse usando o movimento que devia estar acostumado, pois o fizera várias vezes, já estava ficando sem fôlego. Enquanto o garoto respirava de forma rasa e irregular, algo parecia ter tomado conta de sua mão, fazendo com que não parasse. Não havia distinção entre branco e preto nos olhos do monstro, apenas a cor opaca da cólera. Mas o mais notável era que, ao redor deles, havia muitos outros menores.
E agora, o garoto sentiu que estavam voltados para ele... sem exceções.
Sentindo-se parcialmente espantado, continuou seu trabalho. Quando terminou a última pazada, o solo parecia estar igual à área ao redor. Ninguém jamais pensaria que um monstro daqueles estava enterrado ali.
De repente, parecia que o cemitério havia se expandido, aumentando de tamanho.
Não pode ser... criaturas como essa são a única coisa enterrada aqui? Sob essas lápides, há apenas cadáveres de monstros como esse?
Embora suas perguntas repletas de medo corressem sobre sua cabeça, parecia que não havia ninguém para respondê-las. Do grupo de homens mascarados, um se moveu em direção ao local onde Muoru enterrou a coisa gigante com uma cabeça que tinha o dobro do tamanho da sua. O homem colocou uma lápide em forma de cruz que carregava no ombro, no mesmo instante, ele ouviu um gemido emitido do chão.
Parecia que os mascarados sentiam que não era necessário oferecer coisas como escrituras ou oferendas ao monstro e, assim, observaram em silêncio até que a lápide fosse colocada. Quando tudo ficou pronto, partiram.
Na distância, Muoru conseguiu ouvir um fraco som de exaustão sendo expelido de um veículo grande na direção da entrada do cemitério. Mas o som logo desapareceu, deixando-o completamente sozinho e encarando o chão em um estado de choque semelhante ao de quando estava abrindo esta cova.
Embora sentisse que estava em um pesadelo, parecia não conseguir acordar, não importava quanto tempo passasse.
Isso é... verdade? Uma coisa dessas?
Muoru precisava que alguém batesse em seu ombro e dissesse que era apenas uma piada. Mas mesmo se esperasse o sol desaparecer sob o dossel das árvores, ninguém apareceria.
Sua cabeça fervia e ele não conseguia pensar em nada na hora. Tudo isso era muito estranho.
Se tentasse pensar com calma..., esse tipo de monstro provavelmente não existia. Sim, isso mesmo, talvez eu devesse cavar. Se cavasse ali mais uma vez, com certeza, nada sairia. Tudo não passou de uma alucinação.
O garoto pegou sua pá e cravou-a no chão. No entanto, quando levantou o primeiro amontoado de terra... sua mão parou e seu ânimo desapareceu. Se tentasse expressar isso com palavras, teria dito que era um absurdo se sentir desta forma.
Não importa o que está enterrado aqui, quando escurecer, não serei capaz de enxergar nada mesmo.
Com a força sendo drenada de sua mão, soltou o cabo e a terra se espalhou sobre o chão.
Será que devo voltar...? Para onde...?
Era possível ouvir o som de seus dentes rangendo. Voltar? Ele era um prisioneiro. Este era o lugar onde estava preso, um escravo forçado a trabalhar. Não era possível sair dali. E mesmo que tentasse, não haveria para onde voltar. Supôs que a cama no estábulo acabado e em ruinas era o único bônus neste cemitério, mas fora isso, para onde realmente poderia ir?
Por que estou hesitando? Vamos, mova-se...
Sua perna direita parecia muito pesada, mas conseguiu dar um passo à frente. Porém, seus dedos não estavam apontando para o estábulo, eles apontavam em direção à entrada do cemitério. E depois de se forçar a dar o primeiro passo, o próximo foi muito mais fácil.
Ele largou a porcaria da pá e, com toda a energia que tinha, começou a correr como se estivesse fugindo de um campo militar totalmente destruído.
Embora não tivesse nenhum destino ou plano em mente, e mesmo que pudesse se ferir, evitou todos esses pensamentos e, com uma naturalidade imprudente, correu, correu e correu. Só sabia que cada passo o distanciava pouco a pouco daquele monstro.
Correr com toda sua energia não era agradável. Porém, apesar da profunda escuridão e a luz fraca do luar, realmente sentiu como se o mundo estivesse ficando cada vez mais brilhante, como se o sol estivesse nascendo logo à sua frente.
Mas logo percebeu que a esperança de escapar não passava de uma ilusão.
Não havia avançado muito, na verdade, nem mesmo saiu do cemitério, quando sentiu um tipo de vento se aproximando por trás. A única coisa que o garoto imaginou foi o monstro com a cabeça gigantesca, o qual saiu tranquilamente de sua cova e estava atrás dele.
O medo trouxe-o de volta à realidade e, em resposta, levou seu corpo aos limites e disparou. Era como se fosse um herbívoro fugindo de um carnívoro, porém, já estava pateticamente ficando sem ar. Visto que a especialidade de toupeiras era cavar buracos, sua capacidade de corrida era baixa até demais.
Então, sentindo que a perseguição chegaria ao fim de uma forma ou de outra, Muoru juntou toda a coragem que tinha e se virou.
E, sem dúvidas, uma criatura sombria estava atrás dele. Porém, não chegava perto da que enterrou mais cedo.
Ao invés disso, ela rapidamente movia seus membros e sua cauda como se fosse um espanador de pó... Então, a perna direita de Muoru se contorceu tanto que sentia como se estivesse pegando fogo.
A criatura passou por ele com ímpeto, fazendo que a gravidade puxasse Muoru para baixo. Ele colapsou enquanto tentava acertar um golpe.
— Ugh... maldito cachorro!!
Muoru estendeu seu braço em uma tentativa de quebrar o pescoço do cachorro, o qual mordia sua coxa e foi responsável por levá-lo ao chão. Entretanto, no instante em que tocou a pelugem preta do mesmo, seu mundo foi virado de cabeça para baixo mais uma vez. Quando estava aprendendo artes marciais no exército, precisou aprender como ser derrubado pelo seu instrutor sem se machucar. Mas, quando o cachorro o forçou para baixo, não conseguiu fazer nada e acabou beijando o chão. Uma dor estranha e fraca o atingiu quando seu nariz tocou o solo. Tentando aguentar a dor, cerrou os punhos e pensou, vou quebrar o crânio deste cachorro com minha perna.
— Dephen, pare!
A voz veio de longe.
Foi a voz firme e séria de uma jovem mulher.
Os movimentos do cachorro pararam. Ele retirou a força de sua mandíbula, restando apenas um som úmido e de sucção à medida que suas presas saíam da coxa do garoto. Um líquido vermelho preencheu a superfície e, depois de alguns segundos, sangue fluiu livremente do vaso sanguíneo machucado.
Quando viu que o cachorro não voltaria a atacá-lo novamente, Muoru observou seu ferimento repugnante. Sua calça de linho foi rasgada como papel e, sob ela, conseguia ver buracos em sua perna. Ao olhar para o cachorro, viu carne fresca pendurada em suas presas. Pelo fato de estar repleto de adrenalina, não sentia nada além de um formigamento; no entanto, sabia que uma ferida suja igual a essa doeria bastante depois.
— Droga — murmurou o garoto.
— Muoru?
A garota de capuz escuro foi ao lado do cachorro para confirmar sua identidade. E, ainda que não fosse intenção dele, eles estavam em posições onde ela o olhava de cima, da mesma forma que durante a noite passada.
— Está doendo...?
A garota olhou para a perna direita encharcada de sangue sem vacilar.
Muoru olhou de volta para seu ferimento em silêncio, se perguntando sobre o que ela pensaria dele por não responder. Por um tempo, a garota ficou parada ao lado do garoto, mas, no fim, como se falasse para si mesma, suspirou.
— Não gosto da dor — ela murmurou.
Com um salto, Muoru ficou sobre um pé.
O rosto da garota tinha uma expressão levemente perplexa. Além do ferimento dele, ela também percebeu que o estado de Muoru estava diferente do de ontem.
Muoru encarou ferozmente a garota preocupada. E, em resposta, ela ficou inquieta, o olhando com hostilidade nos olhos, como se ele fosse uma fera ferida... é realmente hostilidade, ou medo?
— Você disse que era a guarda sepulcral deste lugar — disse Muoru com um tom ameaçador —, então você não sabe o que está enterrado sob este solo? — Enquanto gritava, apontava para o chão.
As emoções estavam fervendo internamente, e o medo que sentia daquele monstro misterioso havia travado seus pensamentos. Também conseguia sentir a dor forte em sua perna direita, tudo isso acabou com seu raciocínio e comportamento calmo.
Mas ainda assim, sabia que a raiva para com ela era apenas um desabafo e não fazia sentido, mesmo assim, a garota continuou o encarando com olhos tão claros quanto um lago. Ele não fazia ideia se ela podia ou não mostrar outra expressão.
No entanto, aquela beleza e transparência o irritava.
— O que era aquilo, me diga!? Ou você é amiga daquela coisa...?
Como se fosse bater nela, Muoru esticou os braços e segurou-a pela lapela... melhor, tentou. Justo quando as grandes mãos do garoto a tocaram, ela imediatamente caiu no chão com um grito fraco, “Ah”.
Não houve resistência, foi como enfiar a mão na água.
Ela caiu na hora. Mas como Muoru estava apoiado sobre um pé, para que pudesse proteger seu ferimento, quando ela caiu do nada, ele também perdeu o equilíbrio. Seus joelhos atingiram o chão e, então, acabou deitado de bruços, exatamente sobre o corpo da garota.
Era como se tivesse tentado derrubá-la...
Quando corpo a corpo, Muoru finalmente teve certeza de que a garota tinha um corpo, peso, cheiro humano... e pele quente. Ela piscava como se não soubesse o que havia acabado de acontecer. E, como ele estava sobre ela, o corpo dos dois se tocavam a partir dos cotovelos até os dedos, ela observava diretamente os olhos dele.
Quanto a Muoru, ele congelou, como se fosse uma criança em choque por ter derrubado um prato no piso. Esta não era sua intenção. Foi um acidente..., mas era provável que ainda havia a machucado. Ao pensar nisso, finalmente voltou aos seus sentidos.
— Você tem o cheiro do sol... — sussurrou a garota bem ao lado de sua bochecha, completamente coberta pelo corpo do garoto.
Apressadamente, ele se afastou do corpo dela.
— Eu... eu sinto muito. Você bateu a cabeça ou algo do tipo? — Esquecendo-se da atitude arrogante que mostrou anteriormente, as palavras saíram de sua boca de repente. Suas emoções sobrecarregadas pareciam ter voltado ao normal.
Pensou em tentar ajudar a garota a se levantar, mas quando tentou levantar seu próprio corpo, descobriu que não conseguia. Havia esquecido do ferimento em sua perna direita, mas então, ela ficou mais pesada e uma dor severa disparou pelo seu corpo até chegar ao centro de sua cabeça.
Ele conseguiu fazer com que seu corpo ficasse agachado, mas ainda foi incapaz de conter o gemido de dor. Por um momento, não conseguiu pensar direito e a dor tomava conta de todos os outros sentidos. Até que passasse, não havia nada que pudesse fazer a não ser ficar parado e esperar. Fechou bem os olhos, cerrou os dentes e, sem movimentar-se, resistiu à dor em silêncio.
Depois de um tempo, levantou seu rosto suado, mas Mélia já havia desaparecido.
— Bem, não é de admirar.
Depois do que fez, fazia sentido ela se afastar dele. Ele provavelmente teria se desculpado se ainda não estivesse zangado com aquele maldito cachorro..., porém... apesar de estar pagando pelos seus erros, por alguma razão, um gosto amargo tomou conta de sua boca. Suas ações fizeram com que se arrependesse e se sentisse culpado por sua imprudência com Mélia.
Ao tentar estancar o sangramento de suas veias rompidas, Muoru checou novamente a condição de sua coxa.
A perna direita de sua calça foi completamente rasgada e o tecido estava encharcado de sangue. Ele conseguia ver as terríveis marcas de dentes em sua carne. Porém, felizmente, mesmo que as marcas de mordida fossem profundas, não parecia que alguma de suas artérias principais, ossos ou nervos foram tocados..., no entanto, um desconforto tomou conta dele. Ao ver a mandíbula forte do cachorro, soube que, caso tivesse usado toda sua força, provavelmente teria sido fácil arrancar sua coxa.
Justo quando pensou nisso, virou a cabeça e viu a besta preta sentada de forma tranquila, o cheiro de sangue não o atiçou, nem um pouco. Era como se não estivessem brigando agora há pouco. Os cantos da boca do garoto formaram um leve sorriso.
Haha... então você pegou leve comigo.
Mesmo que tenha sido apenas uma piada quando Daribedor disse que o cachorro era seu “caçador superior”, Muoru teve que admitir, o título fazia jus ao animal. Ele realmente era um estorvo, e era mais de cem vezes melhor que um guarda humano, o qual cochilava às vezes. E mesmo que suas ações tenham sido ou não um bom ensaio de fuga, o preço pago fez com que fizesse uma careta.
No entanto..., se deixasse o ferimento como estava, com certeza iria infeccionar. Mesmo se usasse um curativo limpo ou um desinfetante, precisaria de pelo menos algum tipo de álcool, então poderia limpar o ferimento e sua boca. Mas era improvável que a velha avarenta entregaria essas coisas a um prisioneiro que falhou em sua tentativa de fuga.
E, por isso, seu futuro parecia miserável. Especialmente quando sentiu que, caso voltasse ao estábulo em seu estado atual, não passaria apenas uma noite se dormisse[1].
Enquanto ainda estava ali, pensando em desistir, viu uma luz laranja do outro lado do cemitério, a qual balançava de um lado para outro lentamente e se aproximava.
Se fosse a mesma pessoa de algumas horas atrás, poderia ter se enganado feio, achando que fosse uma alma penada ou algo do tipo...
Mas não se assustou como antes. Esta com certeza era uma situação onde ficar assustado era benéfico, mas, para onde foi seu medo?
Bem... ele estava com medo de algo muito maior que fantasmas e aparições... Esse algo estava enterrado logo abaixo de seus pés.
Esperou mais tempo e viu que a luz vinha de um lampião quadrado. É mesmo. Não faz sentido uma luz de cor quente pertencer a uma alma penada.
À medida que a lampião se aproximava, viu-se que estava sendo segurada pela mão esquerda de um humano de manto negro. Surpreendentemente, era Mélia Mass Grave. A garota realmente não se movia rápido, mas vê-la caminhando era o suficiente para fazê-lo ficar ofegante. Ainda assim, talvez ele estivesse se preocupando por nada; era quase certo que sua falta de ar se dava pelo fato de estar fora de forma.
Na outra mão de Mélia, havia uma caixinha de madeira.
Depois de um breve silêncio, a garota agachou-se ao lado do garoto, colocou o lampião no chão e estendeu a caixa. Antes mesmo de pegá-la, Muoru conseguiu sentir o fraco cheiro de uma solução desinfetante.
Quando pegou, percebeu que se sentia nervoso por aplicar a solução antisséptica em sua ferida.
Desde que chegou, ela permaneceu em silêncio, e Muoru não conseguia saber que tipo de emoção estava presente em seus grandes olhos... Olhos que o encaravam sem parar. Depois de entregar os suprimentos médicos, ela não tentou correr ou algo do tipo, tampouco mostrou sinais de medo em seu rosto. E por estar agachada, seu manto curvou-se ligeiramente para cima, revelando sua canela, com uma pele tão lisa quanto porcelana.
— Não tem problema se eu usar isso?
Ainda que fosse engraçado se ela dissesse não, Muoru pensou ser melhor perguntar. A garota afirmou com um aceno de cabeça.
— Obrigado pela ajuda.
Dentro da caixa havia um conjunto completo de produtos, como gazes, algodão absorvente, desinfetante, compressas e coisas para aquecer o ferimento, tudo fornecido metodicamente. E nenhum deles possuía traços de uso, mostrando que ainda eram novos.
Murou limpou novamente o sangue com o tecido da perna direita da calça, então, aplicou o algodão encharcado de desinfetante. O álcool estimulou seus nervos, fazendo com que sentisse uma dor intensa.
Mélia estava em silêncio, encarando-o sem parar, como se estivesse olhando para uma rara apresentação teatral ou algo do tipo.
Por algum motivo, ele não conseguia se acalmar e, como resultado, a mão que aplicava a atadura tremia de forma desajeitada. Além disso, não gostava do fato de ela conseguir ouvir sua respiração frenética.
Depois que conseguiu terminar o próprio tratamento, devolveu a caixa de madeira a Mélia, então, ela se levantou.
Com um tom baixinho, disse:
— Não sou A Escuridão.
— ... A... esc...?
O garoto tentou repetir a frase estranha que ela usou, mas lembrou-se repentinamente das palavras que dissera no momento em que a derrubou... “Você é amiga daquela coisa?”.
No instante seguinte, como se o combustível tivesse sido cortado, houve um “whoosh” e a chama desapareceu. Já que seus olhos haviam se acostumado com a luz, quando foi consumido pela escuridão, acabou perdendo a garota de vista.
Então, antes que Muoru fosse capaz de dizer qualquer coisa, de algum lugar, ouviu-a dizer:
— Adeus.
Aquela voz monótona soou terrivelmente solitária. Mas essa impressão foi apenas em engano de sua parte... ou era justamente o que ele queria ouvir...?
Seja o que for, o garoto foi deixado sozinho e não havia ninguém para quem pudesse perguntar.
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