CAPÍTULO 2.2
Sua memória mais antiga era a de um som... De vez em quando, uma batida alta podia ser ouvida, kiin kiin, vinda da área próxima ao seu quarto. Ele estava olhando para o teto de aparência velha, algo que já estava familiarizado... o teto de sua casa... o teto da casa de sua cidade natal.
Tentando não acordar seus irmãos, o jovem garoto saiu da cama silenciosamente. Com os pés no chão, seu campo de visão ficou muito mais baixo do que era agora... Havia apenas uma leve ideia de que isso era um sonho de sua infância.
Kiin... kiin...
Logo percebeu do que se tratava o som. Seu pai, um escultor, estava empunhando uma talhadeira e um martelo.
O jovem encarou fixamente as costas arredondadas de seu pai, enquanto o mesmo estava em uma escadinha e focava toda sua mente e energia em esculpir a pedra.
Porém, não conseguia se lembrar da voz dele. Mas ainda se lembrava que era uma pessoa teimosa e quieta. Na verdade, era extremamente quieto... muito igual a uma pedra. Possivelmente, encarar uma pedra por tanto tempo poderia fazer com que o corpo e coração ficassem duros como uma. A barba aparada parecia ser espinhosa como a escova que usava. E as palmas de suas mãos levemente sujas eram tão ásperas quanto a pele de um elefante.
Também havia sua altura. O homem não era mais alto que o garoto de agora. Na verdade, se pensasse nisso nesse momento, era até estranho que alguém como ele fosse filho de um homem tão baixinho. No entanto, em suas memórias, seu pai parecia ter uma altura considerável. Além disso, essa imagem forte e sólida deixou uma impressão forte.
Enquanto o garoto, imóvel, continuava a encarar as costas de seu pai, o mesmo virou a cabeça em sua direção.
— XXXXX, perdeu o sono? — perguntou, chamando o nome do garoto.
Ele não conseguia se lembrar direito do som da voz, talvez porque era um sonho. E a voz que ouvira parecia mais rápida do que quando seu pai realmente falou. Mesmo assim, o garoto sentiu um certo alívio. Muito provavelmente porque seu pai disse seu nome...
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Desde quando comecei a sonhar com meu pai...? O prisioneiro pensou em meio ao seu sono.
Ele rapidamente despertou... se possível, precisava se preparar para o trabalho diário antes que a velhota rabugenta voltasse. Porém, por alguma razão, o conforto e aconchego eram tanto que não sentia vontade de se levantar. Era semelhante à sensação maravilhosa de ter os sentidos e consciência começando a relaxarem em uma banheira agradável. E por isso, mesmo sendo por pouco tempo, achou que não havia problema em sonhar com seu pai.
Um gosto de terra preencheu sua boca.
Quando a sensação desagradável tomou conta, o garoto abriu os olhos.
No entanto, apesar de suas tentativas, por algum motivo, seu lado esquerdo estava completamente escuro. Tentou piscar, mas uma dor aguda atingiu seu olho esquerdo. E como estava deitado de lado, à sua direita, conseguiu ver uma parede de terra.
— Mas o quê...?
Com pressa, se levantou e, ao invés de um futon, de todas as coisas possíveis, terra caiu de seu corpo. Metade dele estava enterrada no chão... não, melhor, havia sido enterrada. O fato de que o garoto estava dentro da mesma cova que cavara antes não era nenhuma brincadeira.
É mesmo, eu desmaiei.
Antes que pudesse compreender a situação, montes de terra caíram e cobriram sua cabeça.
— Ei, mas o, ugh. — cuspindo a substância estranha, olhou para cima.
— Você estava vivo? — disseram os lábios cor de flor de cerejeira.
A lâmina de uma pá, exatamente igual à nova que ele recebera, parecia brilhar com uma luz prateada, sendo este o reflexo do luar no metal. Nela, havia um amontoado de terra, mas o mais interessante era a garota que segurava a pá e olhava para ele à beira do buraco.
— ...
O manto azul escuro que a garota usava era exatamente o mesmo que vira antes de desmaiar. E o que ele viu dentro do capuz antes de desmaiar, com toda certeza, parecia ser humano, mas na realidade, era algo lindo. Pelo menos foi isso que pensou. Apenas por causa do medo, vê-la fez com que até mesmo se esquecesse de respirar.
Por um tempo, ela olhou de forma misteriosa para o garoto imóvel dentro do buraco. Mas então, levemente dobrou a cabeça para o lado e perguntou:
— Ou está se movendo, mesmo estando morto?
— Do que está falando...? — O garoto proferiu uma resposta à pergunta extremamente estranha, seu comportamento rígido havia desaparecido por completo.
A voz dela era leve e linda; seus olhos azul-escuro pareciam estar cheios de suspeita, e pelo seu capuz, um cabelo castanho-avermelhado aparecia. E ele pensava que jamais veria algo tão bonito no futuro.
Espere, não se irrite... Já se esqueceu de onde está? O garoto perguntou a si mesmo, estreitando os olhos.
Tentando acalmar seu coração agitado, um grande número de dúvidas surgiu em sua mente.
Não eram necessárias palavras, a expressão da garota mostrava que não havia o visto trabalhando no cemitério nos últimos dias. Mesmo com um olhar rápido, acreditava que jamais poderia esquecer seu rosto. Mas o que diabos ela estava fazendo em um lugar desses a essa hora? Não, ele achava que não era natural uma garota estar sozinha em um cemitério a essa hora da noite.
Ela parece humana, mas não posso dizer com certeza se não é simplesmente um fantasma bonito.
Não, para começo de conversa...
— Quem é você? — perguntou o garoto ao ficar de pé.
A garota encapuzada, como esperado, o encarou com um olhar misterioso. Ainda que não mostrasse pânico ou medo, sua expressão parecia estar entre confusão e interesse. Era como se, no meio de uma estrada, cruzasse com um pintinho saindo do ovo.
No começo, ela não disse nada, mas quando ele começou a se perguntar se seu silêncio se dava pelo fato de não ter entendido a pergunta, a resposta finalmente veio de sua boca:
— Mélia Mass Grave[1].
Levou um tempo para que entendesse aquela série de palavras no nome dela.
— Mélia? — Para ter certeza, acabou repetindo o nome, e ela assentiu levemente.
Em seguida, o garoto perguntou:
— O que diabos faz aqui no meio da noite?
Ela respondeu:
— Não há nada de estranho nisso, já que sou a guarda sepulcral.
Como se essas poucas palavras explicassem por completo, a garota..., Mélia, não disse mais nada.
Sem conseguir aguentar mais seu olhar silencioso, o garoto virou os olhos e decidiu se focar em sair dali. Enquanto tentava sair da cova, a qual tinha uma profundidade igual à sua altura, notou as pegadas desordenadas de onde havia perdido o equilíbrio.
Parecia que, quando imaginou-a sendo um fantasma, tentou fugir, mas acabou caindo e batendo a cabeça, perdendo a consciência. Esta também devia ser a razão por trás da forte dor no pescoço. Com certeza não havia nada mais desagradável que aquela dor. Bem, o fato de que a garota não estava dando muita atenção ao seu esforço fez com que seu rosto ardesse. Então, com uma face vermelha, escalou a parede da cova.
Quando seus pés finalmente tocaram a superfície, ele ficou de pé e percebeu que agora a garota o olhava de baixo. Lado a lado com ela, sua altura era próxima ao seu peito. Ele podia dizer que, por ser uma garota, era bem comum neste aspecto.
Aparentemente, eles tinham a mesma idade, no máximo, ela seria um pouco mais nova. Seu corpo pequeno estava coberto pelo manto azul-escuro da cabeça até os tornozelos e, além de seu rosto, a única parte que estava descoberta eram seus pés brancos.
— E quem é você...? — perguntou ela, dobrando a cabeça para um lado.
A imagem dele foi refletida em seus olhos azuis, os quais eram como a superfície de um lago calmo.
Quem é você?
Esta pergunta e seu olhar pareciam ter perfurado diretamente as profundezas de sua mente.
Bem... afinal... quem sou? Se perguntava como deveria responder, e várias respostas possíveis passaram pela sua mente.
O terceiro filho de um escultor, uma toupeira de guerra, um assassino de superiores, Prisioneiro 5722. E agora, o coveiro sem nome. Cada um desses nomes estava correto e certamente o representavam bem.
Porém...
Para mim, qual nome prefiro?
— Muoru.
Seu nome verdadeiro... foi tomado...
— Meu nome é Muoru Reed[2].
Quando nasceu... foi esse o nome que seu pai lhe deu...
Esta palavra foi diferente da terra que estava em sua boca. Ele foi capaz de cuspir sem se sentir desconfortável ou perdido.
Se pensasse mais a respeito, veria que era um nome idiota. Mas contanto que a memória não fosse perdida, seria impossível retirá-lo dele.
— Muoru, né? — Como se estivesse imitando a expressão perplexa do garoto, ela repetiu o nome dele.
Ele deu um passo para trás, distanciando-se dela.
Então, como se protegesse seu coração, segurou o peito.
Por que fiquei tão surpreso, sendo que apenas falou meu nome?
Surpreso por ter ficado chocado com uma coisa dessas, pensou muito em uma razão. Talvez, embora conseguisse dizer, havia esquecido completamente como era realmente ouvir seu nome.
Deve ser isso. É a única razão.
A garota inclinou a cabeça para o lado novamente, seu cabelo liso balançou levemente sobre seu peito.
— Então, o que está fazendo? —perguntou.
— Eu só estava... Miiii....
— ...
— ...
— Mi? — perguntou Mélia com uma voz suave, repetindo a frase incompleta que ele estava evitando dizer.
— Fazendo uma necessidade. — Muoru, com o peito apertado, reformulou a frase.
— Entendo. — Ela acenou com a cabeça, e quando o fez, no espaço entre o capuz e seu cabelo, foi possível vislumbrar sua clavícula magra.
— É, umm... — Ele buscava por palavras enquanto murmurava.
Ainda que houvesse muitas perguntas que poderia fazer, os pensamentos em sua cabeça estavam estranhamente reagindo de forma lenta, e não conseguia pensar em nada. Ao fixar os olhos na garota, conseguiu sentir sua mente ficar mais confusa, como na vez em que ficou bêbado e cheirou flores[3]. No entanto, foi a primeira vez que sentiu isso por simplesmente conversar com alguém. E isso estava muito longe de ser desagradável...
De repente, a garota se virou.
— Bem, então... — disse Mélia, rapidamente começando a ir embora, como se tivesse perdido o interesse nele.
— Es... espere um segundo! — gritou Muoru impulsivamente.
— ...?
— Não... é... — Embora tenha conseguido pedir para que parasse, pelo fato de sua mente não estar funcionando direito no momento, não tinha ideia do que dizer em seguida. Ela olhou por cima do ombro. Com seu capuz, apenas metade de seu rosto ficava à mostra. A garota olhou diretamente para ele, sem piscar, como se os dois fossem crianças tentando ver quem ficava mais tempo sem piscar.
Ele não sabia se ela estava sendo muito conscienciosa ou não, mas mesmo que o garoto não conseguisse juntar duas palavras, a garota esperou sem se mexer, como se o tempo tivesse parado.
— Esta pá é minha... Me desculpe sobre isso, mas poderia deixá-la aqui? — perguntou com um tom pouco confiante enquanto apontava para a pá.
Mélia ficou segurando a pá, mas depois que ele falou, como se finalmente se lembrasse, olhou para as próprias mãos. Então, olhou para a cova de Muoru, a qual estava enchendo, antes de se virar em sua direção.
— Você é o responsável por esta cova? — perguntou.
O garoto assentiu, e Mélia, com uma expressão difícil de compreender em seus olhos, continuou encarando-o.
Então, sem avisar, correu até sua direção, quase caindo por causa da velocidade. Mas antes de chegar perto, parou a quase um passo de distância e entregou a pá de metal. Por reflexo, o garoto aceitou-a. Da mesma forma que antes, nenhuma piada ou brincadeira veio à sua mente.
Ao invés disso, disse:
— Obrigado.
Embora sentisse que educação não era necessária ao ter sua própria propriedade devolvida, não seria capaz de dizer qualquer outra coisa mesmo.
— ...
Por alguma razão, a garota rapidamente piscou os olhos. Enquanto ela o encarava, ele conseguia ver o reflexo da bela lua. Então, subitamente, se afastou dele, como se estivesse recuando.
— Adeus — disse a garota —, é... Muoru?
— Sim...
Enquanto ele permanecia ali como uma estátua, Mélia, sem olhar para trás, foi embora.
Muoru encarou o manto dela, mas depois de um tempo, desapareceu dentro da escuridão... como se fosse um fantasma...
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