Capítulo 95

“Cada um possui o seu próprio passado.” — Foram essas palavras que me vieram à mente.
Eu sempre achei que o velho Moran fosse uma pessoa incrível, mas nunca pensei que ele pudesse ter sido um candidato ao cargo de Primeiro-Ministro. Não havia como ter imaginado isso. A história foi cheia de informações importantes e fiquei feliz ao saber que no passado, tantas pessoas se preocuparam com o território Helan. Entretanto, existia algo que eu precisava perguntar antes de qualquer coisa.
— Moran-ji, você ainda tem sentimentos pela Harp?
— …Sim, é claro que ainda tenho.
— Entendo…
Graças à história que ele me contou, pude colocar em ordem uma série de coisas que eu tinha guardadas dentro de mim, assim como entender suas palavras quando me disse que poderíamos salvar esta terra.
— Então, Moran-ji. Em outras palavras, você acha que eu posso cumprir a missão passada para o descendente da lenda? Que sou aquele que foi suposto a nascer trezentos anos depois?
— O jovem mestre é bastante perspicaz. A criança da profecia que meus velhos amigos, Petel e Harp descreveram, não é outro senão o senhor. Eu não posso acreditar que só pude reconhecer isso depois que a situação se tornou tão desastrosa. Algumas vezes, estar muito próximo da verdade pode deixá-lo ignorante a ela.
— Então ainda não é tarde demais… Eu aprendi um monte de coisas ouvindo a sua história. Moran-ji, tenho algo que quero te mostrar, então espere aqui um pouco.
De alguma forma me sentia revigorado. Meu espírito estava elevado como uma nascente jorrando.
Saí para buscar as coisas que queria mostrar ao velho Moran, a carta que recebi no outro dia e algo que poderia acabar se tornando a chave para salvar o território.
— Aqui está.
Retornei para a biblioteca e entreguei a carta para o velho Moran. O conteúdo dela foi algo que pensei não passar de uma brincadeira alguns dias atrás.
“O Território Helan está em maus lençóis ou algo assim. É provável que medidas precisem ser tomadas em breve. A grande seca virá em um mês, mais ou menos! Nós temos procurado formas de lidar com isso, mas ainda não conseguimos achar uma solução ou coisa parecida. Senhor Feudal, comece os preparativos para evacuar sua população ou algo do tipo! Se apresse ou algo assim! O Território Helan está prestes a ser assolado por uma maldição ou coisa parecida!”
— Eu acho que esta carta foi enviada pelo Petel que você me falou. Ele provavelmente se estabeleceu em algum lugar aqui em Helan e continuou a travar sua batalha desde então.
O velho Moran recebeu a carta, leu e releu o seu conteúdo diversas vezes. Em verdade, ela não era tão longa, mas ele continuou a olhá-la cuidadosamente, como se estivesse com algo precioso em mãos. Antes que eu percebesse, seus olhos ressecados começaram a se encher de lágrimas.
— Mais uma vez, o jovem mestre é bastante perspicaz. Sim, não há dúvida de que esta é a letra de Petel, meu velho amigo. Aah, hmm, então ele ainda está lutando…
As lágrimas que com tanto esforço suprimia começaram a rolar em seu rosto. De algum modo, entendi que foram lágrimas repletas de alegria, nostalgia e mais alguns outros sentimentos misturados. Por algum tempo, o velho Moran mergulhou nestas sensações antes de se voltar para mim novamente.
— O senhor possui algo mais, não é mesmo? Senti que havia um brilho em seu olhar quando saiu agora a pouco.
— Pode apostar que tenho! Veja isso!
Após a carta, o que lhe entreguei foi um pequeno livro. O 5º volume do livro de magia.
— Entendo, então ele já estava em suas mãos. Eu o tenho procurado por tantas décadas, mas parece que ele já estava em seu devido lugar.
O livro foi algo que encontrei alguns anos atrás por acaso, quando um grupo de criminosos invadiu a mansão. Nunca imaginei que ele viria a ser algo tão importante para mim.
— Graças a você Moran-ji, tenho gravado na memória os quatro primeiros volumes. Se eu conseguir dominar o quinto agora, nós conseguiremos acabar com a maldição, não é mesmo?
— De acordo com a lenda… não, de acordo com a história de Harp, você certamente conseguirá. Não acredito que ela estivesse enganada.
— Isso quer dizer! Que podemos salvar o território Helan!
— Mas há um preço. Sua vida. Da mesma forma que trezentos anos atrás quando Helan se ofereceu em sacrifício.
— Se é o meu destino, irei aceitá-lo de coração.
Encarei o velho Moran com determinação em meus olhos. Não havia espaço para discussão e ele foi capaz de presenciar a minha resolução. Agora, tudo que restava era agir.
— O senhor não precisa se preocupar com os outros. O grande desafio que lhe aguarda agora irá garantir o futuro de todos os homens e mulheres que vivem nesta terra. Por hora, foque apenas em adquirir este último feitiço.
— Tudo bem, mas…

Olhei para o lado de fora da mansão. Não havia nada além de areia e o ar seco se espalhando por toda parte. Apenas ficar exposto a isso já tomariar todas as energias do seu corpo, além disso, não havia água ou comida, tornando impossível sobreviver neste lugar por muito tempo.
— Talvez devêssemos buscar ajuda de meu velho amigo, Petel.
Fiquei surpreso com a sugestão do velho Moran. Por alguma razão, ele falou aquilo do nada como se tivesse acabado de ter uma realização. A forma como falou dava a impressão de que ele sabia o que Petel estava fazendo.
— Petel ainda está lutando contra a maldição dentro do território. O que significa que ele está fazendo os preparativos naquele lugar.
— “Naquele lugar”? Você quer dizer…
— Sim, o lugar onde tudo começou e onde tudo irá chegar ao fim. O “Pântano Amaldiçoado”. É provável que ele esteja lá.
Com olhos de quem tinha total confiança em seu companheiro, o velho Moran parecia jovem novamente.
O que ele disse fazia sentido. Além do mais, de acordo com a lenda, aquele lugar era onde os efeitos da maldição foram mais brandos. Nesse caso, seria o melhor lugar para me focar em aprender o conteúdo do 5º volume.
— Você sabe onde fica?
— O senhor não faz ideia de por quantas décadas eu só estive pensando nisso. Posso achar aquele lugar mesmo de olhos vendados.
Nosso próximo destino estava decidido.

◇◇◇

O velho Moran e eu reunimos o mínimo de bagagem necessária e partimos em nossa jornada. A adversidade do ambiente foi severa, mas considerando pelo que o primeiro Helan passou na história, comecei a achar que não estava tão ruim.
— O Pântano Amaldiçoado…
Sua localização foi o extremo sul do território. Comparado com exuberante porção norte de Helan, aqui as terras não haviam sido cultivadas. Também não havia qualquer rota de comércio e a medida em que nos aprofundávamos na região, menos casas eram visíveis.
— É por aqui.
Nosso destino veio a vista. Assim como na lenda, ainda havia algumas plantas verdes crescendo, como um oásis no meio do deserto. Havia água também e eu queria muito encher minha garganta o mais breve possível.
Em última análise, não parecia um local que merecesse o nome aterrador de “Pântano Amaldiçoado”. Quanto mais nos aproximávamos, mas sentíamos que aquele local estava protegido contra os fortes ventos ressecantes que assolavam o território. Aquele claramente não era um fenômeno natural. Não havia dúvidas de que alguém estava manipulando as condições da região. Embora a maldição, a contínua e poderosa magia que foi o início de tudo ainda estava presente aqui.
— Moran-ji, vou indo pegar um pouco de água. Você deveria descansar um pouco na sombra de alguma árvore.
— Sinto muito por isso, jovem mestre. Esta jornada tem sido um desafio para estes ossos velhos. Irei obedientemente esperar aqui.
Deixei nossa bagagem com o velho Moran e fui procurar água para encher os nossos cantis.
O pântano amaldiçoado parecia mais uma floresta e dando a sensação de ser isolado do mundo lá fora. A temperatura e a umidade também foram completamente diferentes. Quando as coisas mudam de tal maneira, a impressão que se tem é a de que você acabou de entrar em um outro mundo.
Não foi preciso andar muito, meus instintos me guiaram e logo fui capaz de encontrar uma fonte de água. Havia uma nascente limpa, larga e linda.
Tomei um punhado em mãos e enchi a minha boca.
“Mmm, deliciosa. Definitivamente é água potável.”
Depois daquilo, submergi meu rosto inteiro na água e bebi até me saciar. Minha barriga estava totalmente cheia.
Eu abri os cantis e os enchi até a boca. O velho Moran estava esperando por mim, então eu queria levar água para ele o mais rápido possível.
Quando os tampei e comecei a correr de volta, tive a impressão de ouvir alguém me chamando. Talvez fosse apenas o vento, mas de alguma forma ressoava forte. Por isso eu decidi me virar e olhar a volta.
— …Ku, Kururi-sama?
A origem da voz… foi uma mulher que estava sozinha na floresta. Além disso, uma mulher pela qual eu estive muito, muito preocupado. Alguém que procurei e procurei. Por que ela estava aqui? Por que a Eliza estava em um lugar como este…
— El, Eliza… Eliza, é você mesmo?
— Eu poderia perguntar a mesma coisa. É você mesmo, Kururi-sama?
Antes que percebêssemos, já estávamos caminhando na direção um do outro. A uma distância onde poderíamos ver claramente a face, eu precisava ter certeza de que ela era real.
— ...
— ...
Sim, não havia dúvidas de que era Eliza.

Ela não estava usando o belo vestido de sempre. Suas roupas pareciam um pouco com as de Iris agora, ainda assim, o seu esplendor não estavam nem um pouco ofuscado. Mesmo em um lugar como esse, o seu senso de dignidade era visível.

A mão de Eliza se estendeu e tocou em minha face. Nesse momento, ela apertou os seus dedos e beliscou a minha bochecha.
— Au…
— Então não é um sonho.
Eh!? Normalmente não se apertaria a própria bochecha? Por que apertar a bochecha dos outros!?”
— O fato de estar aqui agora, significa que você é o descendente da profecia.
— Como é que você sabe sobre isso?
— Ouvi isso de Petel. Eu tenho estado em débito com ele até agora. Além do mais, eu também tenho uma forte ligação com estas terras então tenho ajudado ele aqui.
— Isso significa que o homem e a mulher misteriosos da carta eram vocês?
— Bem… Isso é um pouco embaraçoso…
“Então foi isso que aconteceu. Mas, apesar disso, por que a Eliza estava aqui e como ela acabou virando assistente do Petel…? Eu não fazia ideia de que ela tinha uma forte ligação com este lugar também.”
Acima de tudo, ela desapareceu da Capital Real e veio até aqui sozinha. Acho que eu já disse isso antes, mas ela é uma garota bem durona. Talvez, se quisesse, ela poderia se tornar a filha de um fazendeiro.
— Eliza, tem muitas coisas que preciso te dizer e muitas coisas que eu quero te dizer. Simplesmente há muito o que precisamos conversar, mas antes, preciso levar essa água ao velho Moran ou ele pode acabar morrendo de sede.
— É claro! Eu também tenho muito o que conversar. Vamos encontrar o Petel assim que tiver terminado, afinal, o nosso propósito é o mesmo, certo?
— Certo.
Depois que o velho Moran recebeu a água, Eliza nos guiou até onde Petel morava, numa cabana de madeira perto do pântano. Segundo a lenda, trezentos anos atrás, Helan e seus companheiros também construíram suas casas aqui e conduziram sua pesquisa.
Eliza chamou por Petel do lado de fora e um homem respondendo com “nari, nari” abriu a porta.
— Eliza-san, você está de volta, nari?
Ele abriu a porta para Eliza, que havia ido buscar água, mas quem estava do lado de fora não era apenas ela, Moran e eu estávamos também. Ele olhou para ela, então para mim e por fim o velho Moran. Petel inalou profundamente e exalou de forma lenta.
— O maior prodígio de toda Kudan. Quanto tempo faz desde que você deixou a Capital Real, hein, nari? Há muito tempo atrás ouvi falar que um bibliotecário extraordinário havia começado a trabalhar na biblioteca da mansão Helan, nari. O falecimento de Harp foi a tanto tempo, nari. Eu esperei por tanto, tanto tempo, nari. Moran, você está um pouquinho atrasado.
A voz de Petel parecia oscilar um pouco, mas ele conseguiu terminar suas palavras.
— Eu sinto muito. Te fiz esperar por tanto tempo que agora nós somos uma dupla de velhos.
A voz do velho Moran também tremeu.
— É falta de educação deixar os amigos esperando, nari… o túmulo de Harp fica aqui perto, nari. Você viria comigo, nari?  
— Sim, você me mostraria o caminho? Petel?
— Siga-me, nari.
Os dois caminharam juntos. Eles estavam indo visitar o túmulo de Harp agora. Quantas décadas havia se passado? Ainda assim, os dois continuaram a lutar através do fluxo do tempo e se reencontraram mais uma vez.
Eliza e eu fomos deixados para trás. Nós poderíamos ter entrado na casa para conversarmos o que quiséssemos, mas de alguma forma, parecia difícil dizer alguma coisa nesse clima. O pior era que eu tinha muito o que falar.
— Estou feliz que decidi fugir de casa. Que cheguei até aqui e que fui capaz de te encontrar de novo.
—  Você nos deixou muito preocupados.
— Sinto muito por isso, mas foi uma jornada realmente emocionante e divertida.
Ela tinha uma expressão tão alegre enquanto dizia isso que não pude deixar de rir. Para a primeira aventura de uma garota superprotegida, ela deve ter experimentado muitas coisas.
— Você pode me contar sobre isso? Sobre essa emocionante e divertida grande aventura que teve?
— Bem, suponho que devo lhe fazer este favor.
Dentro da tranquila cabana, eu estava com toda minha atenção voltada para a bela voz de Eliza. Lá, aprendi sobre uma nova história. Sobre a sua grande aventura.

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